domingo, 18 de maio de 2014

UMA QUESTÃO DE LINGUAGEM


  
                                                                                             Reinaldo Lobo*

 

      A expressão "o brasileiro" costuma freqüentar inúmeras conversas entre nós, brasileiros. Dizem : "o  'brasileiro' é isso ou aquilo...assim ou assado..."  

   "O brasileiro" quem, cara pálida? Esse clichê passa, às vezes, despercebido no meio de uma discussão. Muitos não notam que, dita por brasileiros, a fala pressupõe uma estranha distância , como se falasse de um outro ser ou, quem sabe, de um estrangeiro. Implica também, geralmente, numa posição de superioridade em relação a esse ente no qual se projetam várias qualidades negativas: " o 'brasileiro' é preguiçoso, corrupto, ignorante, desorganizado..."

    A expressão muitas vezes significa racismo e preconceito. Parte da ótica das civilizações "superiores". Pretende encarnar valores e referências atribuídos a outras culturas. É como se o colonizador aqui chegasse , visse os nativos e alguns dos seus comportamentos e reduzisse tudo à declaração : lá está "o brasileiro", com seus hábitos estranhos.

   "O brasileiro" quem, cara pálida? Refere-se ao paulista, ao carioca, ao nordestino, ao pobre, ao rico, ao honesto , ao picareta? A generalização é cômoda para quem a promove e a quem desresponsabiliza por pertencer ao País onde vivemos nós, os brasileiros, no plural.

   Como é possível falar dos paulistas e dos paulistanos, por exemplo, que são descendentes de uma mistura de portugueses, africanos, italianos, árabes, judeus, alemães, russos, poloneses e índios? Se examinarmos um pouco haverá até mais origens desse povo que habita São Paulo. Em outros Estados também é um pouco dessa maneira. Ziraldo, o humorista, costuma dizer brincando que só existem três povos no Brasil : o povo mineiro, o baiano e o gaúcho. O resto, diz ele, são brasileiros.

   Bom humor à parte, o mais importante é assinalar que a expressão "o brasileiro" contém uma operação implícita de natureza psicológica e ética. Sua estrutura, além de pertencer à gramática de nossa língua, é a base da discriminação. Ou seja, o preconceito é também um dispositivo lingüístico.

  Há, portanto, uma semântica que exige a decodificação de certos termos. Existe um sistema preconceituoso de dar nomes e rótulos.

 Fica fácil detectar isso quando se ouve alguém dizer : "o 'nordestino' é isto ou aquilo..." Podem imaginar de que parte de alguém do "sul maravilha".Paulistas aludem, às vezes, ao "baiano" , velho apelido para os trabalhadores da construção civil que reuniam baianos, alagoanos , pernambucanos, cearenses e até paulistas , e que formavam, dos anos 60 em diante, a mão de obra que serviu de esteio para a edificação das cidades da região, sobretudo a capital."Baiano" vira todo nordestino.

   A operação psicológica é simples , maciça e grosseira. Consiste em projetar no outro, inclusive como bode expiatório, todas as características negativas que se encontram, virtual ou explicitamente, em quem faz a declaração. É como lembrou o filósofo Spinoza (século XVII) muito antes, portanto, de Freud: "O que Pedro diz sobre Paulo revela mais sobre Pedro do que sobre Paulo".

    Constrói-se um estereótipo, projeta-se nele tudo o que há de ruim e se passa a ter medo e/ou ódio desse ente criado. Algo assim  como o monstro do Dr. Frankenstein, uma invenção na qual se depositava a função de representar o que há de mais primitivo, infantil e bruto no ser humano. E ,depois,  os "civilizados" passavam a caçá-lo como um monstro.

   É possível que o objeto-alvo corresponda, em certos casos,  ao que foi atribuído a ele, mas isso não justifica, em absoluto, o ataque feito originalmente por quem declara o desprezo. Se alguém diz "negro é bandido" e encontra algum negro que realmente seja bandido, isto não significa que o autor da frase não tenha , dentro dele, um bandido em potencial. Nem que esteja certo ao fazer uma generalização.

    O aspecto ético do dispositivo de linguagem é evidente. Constitui uma separação de valores "positivos" de quem fala daqueles "negativos" atribuídos ao outro. É uma "ética do desprezo", do não-reconhecimento, da alegada superioridade social e/ou racial daqueles a quem que um ex-governador de São Paulo, Cláudio Lembo, chamou, num momento feliz, de "minoria branca".

     Essa  "minoria branca" ainda não se apercebeu das mudanças profundas da sociedade brasileira nas últimas décadas. Não se deu conta de que vivemos, para o melhor e o pior, em uma heterogênea sociedade de massas. O tempo das elites racistas já passou. Somos, mal comparando, algo entre a Índia e os Estados Unidos. Mas com características singulares.

    A convivência e a integração são fenômenos inevitáveis, ainda que alguns setores resistam e tentem manter nichos de privilégios semelhantes aos do Brasil Colônia. Os "sinhozinhos" e "sinhás" refugiados nos bairros chiques das nossas grandes cidades terão de aprender a viver junto, a assistir aos "rolêzinhos" nos shoppings, às manifestações de rua contra o aumento do ônibus e do trem, e a procurar entender esse outro obscuro que emerge das periferias.

    Uma forma semelhante de operação psicológica e moral ocorre hoje , também, nas discussões políticas brasileiras.  Vejamos a palavra "corrupto". Ora, no debate, "corrupto" sempre é o outro, nunca quem fala. Muitas vezes temos visto personagens como comerciantes ou taxistas que esbravejam com eloqüência contra a "corrupção política", depositando todos os males nacionais no colo da classe política e, em seguida, esse comerciante específico rouba no preço ou o taxista rouba no troco. Não faltam empresários sonegadores que protestam contra a "corrupção do Estado", etc.

   Há, porém, uma forma insidiosa de debate político entre nós que se supera nos truques com as palavras. . É  o julgamento de intenções. Atribui-se um propósito ou uma intenção ao outro, baseando-se em alguns sinais interpretáveis, em seguida condena-se o réu e se desqualifica seus argumentos.

   Por exemplo: se alguém defende o governo porque considera que, nas últimas décadas, foram os atuais líderes os que mais cumpriram o que prometeram ou os que mais fizeram pelas maiorias pobres do país, então deve haver "algo por trás", a intenção dessa pessoa só poder ser a de obter algum benefício governamental ou, quem sabe,  cargos e privilégios.

    O argumento não interessa. O que importa é a intenção.

    Se alguém critica o fato de ter havido uma ditadura de 21 anos não é porque se trata de uma pessoa democrática, mas porque quer esconder sua adesão à ditadura de Cuba ou da antiga URSS.

    Não custa lembrar que foi Stálin, o ditador da antiga URSS, quem inaugurou os processos por intenções. Nos chamados "Processos de Moscou", entre 1936 e 38, dezenas de aliados e membros do seu partido foram julgados, condenados e fuzilados porque tiveram alguma discordância ou fizeram crítica pontual ao funcionamento das instituições. Isto era um sinal "evidente" de que tinham a "intenção" de aliar-se ao trotskismo e ao nazismo, colocados assim no mesmo pé.

     Faça um exercício. Quando ouvir alguém dizendo "o 'brasileiro' é isso ou aquilo" ou ,então, usando as palavras como forma de desprezar ou julgar o  outro, pergunte: "De quem está falando, cara pálida? Quem é o sujeito psicológico da oração?"

 

 

 

 *Reinaldo Lobo é psicanalista e jornalista. Tem uma página no Facebook: www.facebook.com/reinaldolobopsi. E também um blog: imaginarioradical.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário