Reinaldo Lobo*
A expressão "o brasileiro" costuma freqüentar inúmeras
conversas entre nós, brasileiros. Dizem : "o 'brasileiro' é isso ou aquilo...assim ou
assado..."
"O brasileiro" quem, cara pálida? Esse clichê passa, às vezes,
despercebido no meio de uma discussão. Muitos não notam que, dita por
brasileiros, a fala pressupõe uma estranha distância , como se falasse de um
outro ser ou, quem sabe, de um estrangeiro. Implica também, geralmente, numa
posição de superioridade em relação a esse ente no qual se projetam várias
qualidades negativas: " o 'brasileiro' é preguiçoso, corrupto, ignorante,
desorganizado..."
A expressão muitas vezes significa racismo e preconceito. Parte da ótica
das civilizações "superiores". Pretende encarnar valores e
referências atribuídos a outras culturas. É como se o colonizador aqui chegasse
, visse os nativos e alguns dos seus comportamentos e reduzisse tudo à
declaração : lá está "o brasileiro", com seus hábitos estranhos.
"O brasileiro" quem, cara pálida? Refere-se ao paulista, ao
carioca, ao nordestino, ao pobre, ao rico, ao honesto , ao picareta? A
generalização é cômoda para quem a promove e a quem desresponsabiliza por pertencer
ao País onde vivemos nós, os brasileiros, no plural.
Como é possível falar dos paulistas e dos paulistanos, por exemplo, que
são descendentes de uma mistura de portugueses, africanos, italianos, árabes,
judeus, alemães, russos, poloneses e índios? Se examinarmos um pouco haverá até
mais origens desse povo que habita São Paulo. Em outros Estados também é um
pouco dessa maneira. Ziraldo, o humorista, costuma dizer brincando que só
existem três povos no Brasil : o povo mineiro, o baiano e o gaúcho. O resto,
diz ele, são brasileiros.
Bom humor à parte, o mais importante é assinalar que a expressão "o
brasileiro" contém uma operação implícita de natureza psicológica e ética.
Sua estrutura, além de pertencer à gramática de nossa língua, é a base da
discriminação. Ou seja, o preconceito é também um dispositivo lingüístico.
Há,
portanto, uma semântica que exige a decodificação de certos termos. Existe um
sistema preconceituoso de dar nomes e rótulos.
Fica fácil detectar isso quando se ouve alguém
dizer : "o 'nordestino' é isto ou aquilo..." Podem imaginar de que
parte de alguém do "sul maravilha".Paulistas aludem, às vezes, ao
"baiano" , velho apelido para os trabalhadores da construção civil
que reuniam baianos, alagoanos , pernambucanos, cearenses e até paulistas , e
que formavam, dos anos 60 em diante, a mão de obra que serviu de esteio para a
edificação das cidades da região, sobretudo a capital."Baiano" vira
todo nordestino.
A operação psicológica é simples , maciça e grosseira. Consiste em
projetar no outro, inclusive como bode expiatório, todas as características
negativas que se encontram, virtual ou explicitamente, em quem faz a
declaração. É como lembrou o filósofo Spinoza (século XVII) muito antes,
portanto, de Freud: "O que Pedro diz sobre Paulo revela mais sobre Pedro
do que sobre Paulo".
Constrói-se um estereótipo,
projeta-se nele tudo o que há de ruim e se passa a ter medo e/ou ódio desse ente
criado. Algo assim como o monstro do Dr.
Frankenstein, uma invenção na qual se depositava a função de representar o que
há de mais primitivo, infantil e bruto no ser humano. E ,depois, os "civilizados" passavam a caçá-lo
como um monstro.
É possível que o objeto-alvo corresponda, em certos casos, ao que foi atribuído a ele, mas isso não
justifica, em absoluto, o ataque feito originalmente por quem declara o
desprezo. Se alguém diz "negro é bandido" e encontra algum negro que
realmente seja bandido, isto não significa que o autor da frase não tenha ,
dentro dele, um bandido em potencial. Nem que esteja certo ao fazer uma
generalização.
O aspecto ético do dispositivo de linguagem é evidente. Constitui uma separação
de valores "positivos" de quem fala daqueles "negativos"
atribuídos ao outro. É uma "ética do desprezo", do
não-reconhecimento, da alegada superioridade social e/ou racial daqueles a quem
que um ex-governador de São Paulo, Cláudio Lembo, chamou, num momento feliz, de
"minoria branca".
Essa "minoria branca"
ainda não se apercebeu das mudanças profundas da sociedade brasileira nas
últimas décadas. Não se deu conta de que vivemos, para o melhor e o pior, em
uma heterogênea sociedade de massas. O tempo das elites racistas já passou.
Somos, mal comparando, algo entre a Índia e os Estados Unidos. Mas com
características singulares.
A convivência e a integração são fenômenos inevitáveis, ainda que alguns
setores resistam e tentem manter nichos de privilégios semelhantes aos do
Brasil Colônia. Os "sinhozinhos" e "sinhás" refugiados nos
bairros chiques das nossas grandes cidades terão de aprender a viver junto, a
assistir aos "rolêzinhos" nos shoppings, às manifestações de rua
contra o aumento do ônibus e do trem, e a procurar entender esse outro obscuro
que emerge das periferias.
Uma forma semelhante de operação psicológica e moral ocorre hoje ,
também, nas discussões políticas brasileiras.
Vejamos a palavra "corrupto". Ora, no debate,
"corrupto" sempre é o outro, nunca quem fala. Muitas vezes temos
visto personagens como comerciantes ou taxistas que esbravejam com eloqüência
contra a "corrupção política", depositando todos os males nacionais
no colo da classe política e, em seguida, esse comerciante específico rouba no
preço ou o taxista rouba no troco. Não faltam empresários sonegadores que
protestam contra a "corrupção do Estado", etc.
Há, porém, uma forma insidiosa de debate político entre nós que se
supera nos truques com as palavras. . É
o julgamento de intenções. Atribui-se um propósito ou uma intenção ao
outro, baseando-se em alguns sinais interpretáveis, em seguida condena-se o réu
e se desqualifica seus argumentos.
Por exemplo: se alguém defende o governo porque considera que, nas
últimas décadas, foram os atuais líderes os que mais cumpriram o que prometeram
ou os que mais fizeram pelas maiorias pobres do país, então deve haver "algo
por trás", a intenção dessa pessoa só poder ser a de obter algum benefício
governamental ou, quem sabe, cargos e
privilégios.
O argumento não interessa. O que importa é a intenção.
Se alguém critica o fato de ter
havido uma ditadura de 21 anos não é porque se trata de uma pessoa democrática,
mas porque quer esconder sua adesão à ditadura de Cuba ou da antiga URSS.
Não custa lembrar que foi Stálin, o ditador da antiga URSS, quem
inaugurou os processos por intenções. Nos chamados "Processos de
Moscou", entre 1936 e 38, dezenas de aliados e membros do seu partido
foram julgados, condenados e fuzilados porque tiveram alguma discordância ou
fizeram crítica pontual ao funcionamento das instituições. Isto era um sinal
"evidente" de que tinham a "intenção" de aliar-se ao
trotskismo e ao nazismo, colocados assim no mesmo pé.
Faça um exercício. Quando ouvir alguém dizendo "o 'brasileiro' é
isso ou aquilo" ou ,então, usando as palavras como forma de desprezar ou
julgar o outro, pergunte: "De quem
está falando, cara pálida? Quem é o sujeito psicológico da oração?"
*Reinaldo Lobo é psicanalista e jornalista.
Tem uma página no Facebook: www.facebook.com/reinaldolobopsi. E também um blog:
imaginarioradical.blogspot.com
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