Reinaldo Lobo*
Um idoso entra no banco , dirige-se ao
caixa, retira um dinheiro e pede que o
funcionário troque uma nota de 50 reais, para que ele possa pagar sua condução.
O rapaz do caixa responde: "Ah, não vai ser possível, pois minha gaveta
não tem trocado". Diz isso com um certo prazer em negar o pedido, e
despacha o idoso.
Logo depois, chega uma mulher elegantemente
vestida paga suas contas com cartão e pede para retirar algo do seu dinheiro em
trocados, "para ter na carteira". O homem do caixa não hesita em lhe
fornecer o que pede.
Parece uma cena banal do quotidiano, quase
ninguém aparentemente notou a diferença de reação do funcionário do caixa aos
dois clientes, nem o seu prazer em negar um pedido a quem não apreciou ou teve
algum "motivo" para rejeitar.
O que ocorreu foi o sadismo implícito na
vida social, no dia-a-dia. A pessoa do idoso provocou desprezo no jovem que
atendia na caixa do banco. Este não hesitou em demonstrar.
O desprezo é o contrário do respeito e do
reconhecimento, elementos emocionais e éticos de que todos os seres humanos têm
necessidade na vida social e pessoal. O não-reconhecimento, o desprezo
explícito pelo outro, é tanto maior quanto for o preconceito ou a indiferença
pela pessoa que se apresenta em uma situação pública.
O idoso é um "invisível", assim
como os pobres, os negros , os mal-vestidos e os que não exibam os signos da
superioridade social. O objeto da violência sádica -- dizia,aliás, o próprio
Marquês de Sade em "Justine"-- é tão mais visado quanto mais se
aproxima da condição de "coisa". Quando um corpo é reduzido a essa
situação não é exatamente erotizado, no sentido explícito do termo, mas
transformado em alvo de um poder. Às vezes, um pequeno poder, como no caso do
rapaz no caixa do banco.
O prazer sádico nestas situações, como em
muitas outras, não está no exercício direto e visível da sexualidade, mas na
imposição de uma submissão e de uma humilhação.
O gozo está justamente na indiferença em relação ao outro, no seu uso,
na manipulação do objeto , a partir de
uma posição de "triunfo" maníaco e de superioridade narcísica.
O
desprezo é parte integrante do jogo sádico em inúmeras situações da vida. É
bastante conhecida a antiga relação entre as "patroas" e
"empregadas" na privacidade doméstica. Hoje, isso mudou um pouco,
pois essa mão-de-obra é mais escassa e as domésticas ganharam cidadania. Passaram a ter mais força porque
são úteis, não porque se tornaram respeitadas.
A raiva e a desconsideração com que certas
donas de casa de classe média ou ricas ainda se referem às suas auxiliares
revelam todo o distanciamento e a coisificação a que as submetem na esfera
psíquica e moral. Com freqüência, falam
dessas pessoas como "'elas' são
isso... 'elas' são aquilo..." , ou seja, uma espécie estranha de gente.
É até possível avaliarmos que uma parte da
raiva seja diretamente proporcional à dependência dessas patroas em relação ao
trabalho de sua empregada doméstica. Esse trabalho é o que garante o tempo
livre da patroa, seu lazer ou mesmo outras atividades. Lembra muito a relação
dialética entre o senhor e o escravo.
Todos já tivemos algum grau de contato com a invisibilidade
social dos maltrapilhos ou dos mendigos nas ruas de uma cidade grande. Também
sabemos como uma sociedade branca promove a "invisibilização" dos
negros, seja pela simples exclusão da cena social relevante , seja pela
atribuição de atividades marginais e trabalhos subalternos.
Os exemplos não faltam, mas todos ocorrem
porque vivemos numa "sociedade do desprezo", como diz o filósofo
social Axel Honneth. Inspirado nas teorias de Adorno e Habermas, bem como na psicanálise -- sobretudo na teoria das relações de objeto, em Winnicott e também na concepção
de sujeito de Lacan --, esse autor mostra que a "invisibilização" é
um processo ativo, no qual se evidencia o desprezo. É um tipo de comportamento
em relação a uma pessoa como se ela não estivesse presente ou existisse, e que,
para essa pessoa, torna-se muito real.
A visibilidade, ao contrário, significa
reconhecer as características relevantes de uma pessoa. Dessa maneira, Honneth apresenta a
possibilidade de identificação individual ou singular como primeira forma de
"conhecimento" . Esse momento é um ato social, uma vez que o
indivíduo envolvido sabe de sua invisibilidade pela falta de reações
específicas por parte dos demais. Já a
visibilidade o coloca num pólo da interação. Além disso, a falta de atos
expressivos de visibilidade também pode ser percebida pelo resto das pessoas
presentes.
É possível falar, portanto, de uma invisibilidade
social, o que conduz a uma diferenciação entre "conhecer" e
"reconhecer". Conhecer é a
identificação não-pública de uma pessoa, enquanto reconhecer diz respeito à apreciação
como ato público.
De um modo semelhante como ocorre nos
bebês, segundo as contribuições de Winnicott e de Daniel Stern, os adultos
também mostram abertamente sinais de que foram aprovados socialmente -- e
sentem necessidade disso. Uma prova reside em considerar o sentimento que se
produz nos casos em que se nega essa
aprovação a uma pessoa.
A
violência quotidiana, aparentemente "não traumática", consiste
justamente em negar o reconhecimento a um ser humano. Já todas as expressões de
aprovação, por outro lado, são interpretadas como um sinal, simbolicamente sintético,
de toda uma série de disposições que fazem referência a um conjunto de atuações
que se pode esperar legitimamente numa interação, como, por exemplo, ser
tratado respeitosamente.
A
luta pelo reconhecimento começa na infância e percorre toda a vida dos
indivíduos, atingindo inclusive as formas mais sofisticadas de cidadania e
participação. Quando um trabalhador faz reivindicações e aspira melhores
condições de vida, isso envolve a busca do reconhecimento de sua significância
e do seu lugar na sociedade. Está buscando reconhecimento pelos outros e por
parte de si mesmo -- auto-reconhecimento.
A busca
pelo reconhecimento, que começa de forma elementar por meio do amor pessoal, evolui
também para idéias sobre solidariedade e respeito, que situam as pessoas em
diferentes esferas de relacionamento, com as diferentes formas de atuações
que podem ser legitimamente esperadas.
A
invisibilidade social é justamente a
negação desse reconhecimento. Por isso mesmo, é não só a indução de um trauma,
mas também uma espécie de crime do dia-a-dia.
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