quarta-feira, 24 de setembro de 2014

A VIOLÊNCIA QUOTIDIANA


                                     

 

                                                                    Reinaldo Lobo*

 

       Um idoso entra no banco , dirige-se ao caixa, retira um dinheiro e pede  que o funcionário troque uma nota de 50 reais, para que ele possa pagar sua condução. O rapaz do caixa responde: "Ah, não vai ser possível, pois minha gaveta não tem trocado". Diz isso com um certo prazer em negar o pedido, e despacha o idoso.

      Logo depois, chega uma mulher elegantemente vestida paga suas contas com cartão e pede para retirar algo do seu dinheiro em trocados, "para ter na carteira". O homem do caixa não hesita em lhe fornecer o que pede.

      Parece uma cena banal do quotidiano, quase ninguém aparentemente notou a diferença de reação do funcionário do caixa aos dois clientes, nem o seu prazer em negar um pedido a quem não apreciou ou teve algum "motivo"  para rejeitar.

    O que ocorreu foi o sadismo implícito na vida social, no dia-a-dia. A pessoa do idoso provocou desprezo no jovem que atendia na caixa do banco. Este não hesitou em demonstrar.

     O desprezo é o contrário do respeito e do reconhecimento, elementos emocionais e éticos de que todos os seres humanos têm necessidade na vida social e pessoal. O não-reconhecimento, o desprezo explícito pelo outro, é tanto maior quanto for o preconceito ou a indiferença pela pessoa que se apresenta em uma situação pública.

    O idoso é um "invisível", assim como os pobres, os negros , os mal-vestidos e os que não exibam os signos da superioridade social. O objeto da violência sádica -- dizia,aliás, o próprio Marquês de Sade em "Justine"-- é tão mais visado quanto mais se aproxima da condição de "coisa". Quando um corpo é reduzido a essa situação não é exatamente erotizado, no sentido explícito do termo, mas transformado em alvo de um poder. Às vezes, um pequeno poder, como no caso do rapaz no caixa do banco.

   O prazer sádico nestas situações, como em muitas outras, não está no exercício direto e visível da sexualidade, mas na imposição de uma submissão e de uma humilhação.  O gozo está justamente na indiferença em relação ao outro, no seu uso, na  manipulação do objeto , a partir de uma posição de "triunfo" maníaco e de superioridade narcísica.

   O desprezo é parte integrante do jogo sádico em inúmeras situações da vida. É bastante conhecida a antiga relação entre as "patroas" e "empregadas" na privacidade doméstica. Hoje, isso mudou um pouco, pois essa mão-de-obra é mais escassa e as domésticas ganharam  cidadania. Passaram a ter mais força porque são úteis, não porque se tornaram respeitadas.

   A raiva e a desconsideração com que certas donas de casa de classe média ou ricas ainda se referem às suas auxiliares revelam todo o distanciamento e a coisificação a que as submetem na esfera psíquica e moral.  Com freqüência, falam dessas pessoas como  "'elas' são isso... 'elas' são aquilo..." , ou seja, uma espécie estranha de gente.

    É até possível avaliarmos que uma parte da raiva seja diretamente proporcional à dependência dessas patroas em relação ao trabalho de sua empregada doméstica. Esse trabalho é o que garante o tempo livre da patroa, seu lazer ou mesmo outras atividades. Lembra muito a relação dialética entre o senhor e o escravo.

     Todos já tivemos algum grau de contato com a invisibilidade social dos maltrapilhos ou dos mendigos nas ruas de uma cidade grande. Também sabemos como uma sociedade branca promove a "invisibilização" dos negros, seja pela simples exclusão da cena social relevante , seja pela atribuição de atividades marginais e trabalhos subalternos.

     Os exemplos não faltam, mas todos ocorrem porque vivemos numa "sociedade do desprezo", como diz o filósofo social Axel Honneth. Inspirado nas teorias de Adorno e Habermas, bem como na  psicanálise -- sobretudo  na teoria das relações  de objeto, em Winnicott e também na concepção de sujeito de Lacan --, esse autor mostra que a "invisibilização" é um processo ativo, no qual se evidencia o desprezo. É um tipo de comportamento em relação a uma pessoa como se ela não estivesse presente ou existisse, e que, para essa pessoa, torna-se muito real.

      A visibilidade, ao contrário, significa reconhecer as características relevantes de uma pessoa.  Dessa maneira, Honneth apresenta a possibilidade de identificação individual ou singular como primeira forma de "conhecimento" . Esse momento é um ato social, uma vez que o indivíduo envolvido sabe de sua invisibilidade pela falta de reações específicas por parte dos demais. Já a  visibilidade o coloca num pólo da interação. Além disso, a falta de atos expressivos de visibilidade também pode ser percebida pelo resto das pessoas presentes.

    É possível falar, portanto, de uma invisibilidade social, o que conduz a uma diferenciação entre "conhecer" e "reconhecer".  Conhecer é a identificação não-pública de uma pessoa, enquanto reconhecer diz respeito à apreciação como ato público. 

     De um modo semelhante como ocorre nos bebês, segundo as contribuições de Winnicott e de Daniel Stern, os adultos também mostram abertamente sinais de que foram aprovados socialmente -- e sentem necessidade disso. Uma prova reside em considerar o sentimento que se produz nos casos em que se nega  essa aprovação a uma pessoa.

     A violência quotidiana, aparentemente "não traumática", consiste justamente em negar o reconhecimento a um ser humano. Já todas as expressões de aprovação, por outro lado, são interpretadas como um sinal, simbolicamente sintético, de toda uma série de disposições que fazem referência a um conjunto de atuações que se pode esperar legitimamente numa interação, como, por exemplo, ser tratado respeitosamente.

     A luta pelo reconhecimento começa na infância e percorre toda a vida dos indivíduos, atingindo inclusive as formas mais sofisticadas de cidadania e participação. Quando um trabalhador faz reivindicações e aspira melhores condições de vida, isso envolve a busca do reconhecimento de sua significância e do seu lugar na sociedade. Está buscando reconhecimento pelos outros e por parte de si mesmo -- auto-reconhecimento.

     A  busca pelo reconhecimento, que começa de forma elementar por meio do amor pessoal, evolui também para idéias sobre solidariedade e respeito, que situam as pessoas em diferentes esferas de relacionamento, com as diferentes formas de atuações que  podem ser legitimamente esperadas.

    A invisibilidade social é justamente  a negação desse reconhecimento. Por isso mesmo, é não só a indução de um trauma, mas também uma espécie de crime do dia-a-dia.

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