Reinaldo Lobo*
Uma pergunta que me fazem com freqüência,
seja por provocação ideológica ou simples curiosidade, é: qual seria o modelo
adequado de socialismo preconizado para o Brasil? A minha resposta é bem simples: nenhum.
A interrogação é quase sempre uma armadilha preparada por aqueles que
professam uma ideologia anti-socialista ou, se quiserem, anticomunista. Ou
seja, uma pegadinha sectária vinda da direita, formulada pelos que pregam o
individualismo possessivo -- o capitalismo e a propriedade privada -- como
caminho único para a organização da sociedade.
A questão capciosa visa a obrigar o
interlocutor a optar entre os vários exemplos históricos que reclamam o rótulo
de socialistas ou , então, a refugiar-se na desprezada abstração da utopia.
O menu que oferecem é Cuba, União Soviética,
Venezuela "bolivariana", China convertida ao mercado, Coréia do Norte
ou ditaduras nacional-capitalistas da África, do Oriente Médio ou da Ásia. Nem chegam a falar de países como a Suécia, a
Dinamarca ou a Noruega, pois estes são reivindicados como pertencentes ao
capitalismo puro, ainda que estejam num regime "socializante" de
Estado do Bem-Estar social.
O resto é quimera vã -- dizem. O que sobra?
Resposta invariável : o capitalismo, a sociedade de consumo intensivo e
crescimento "ilimitado", nas suas versões norte-americana e européia.
Não é o regime perfeito --argumentam--, mas é o que existe de efetivo, real, ao
qual devemos nos resignar e com o qual
teremos de conviver.
A própria palavra socialismo deve ser usada
com cuidado, pois está muito desgastada após décadas de social democracia e de
socialismo europeus, oportunistas e camaleônicos, muito mais comprometidos, na
verdade, com a exploração, a neutralização da luta de classes e a manutenção do
status quo capitalista, do que com qualquer avanço social.
Quanto ao socialismo comunista, também
bastante oportunista nos seus partidos no Ocidente, ganhou definitivamente a
pecha de totalitarismo pela experiência repressiva, de exploração de classes e
antidemocrática do Leste Europeu.
O que resta, então, para a chamada "ala
progressista"?
Para alguns antigos socialistas sérios, cultos
e respeitáveis o que restou foi um conjunto de valores éticos e de princípios
políticos. Uma forma de encarar o mundo e de lutar para torná-lo mais justo.
Algo assim como faz a esquerda norte-americana, que sabe que não vai tomar o
poder a curto ou a médio prazo, mas tenta permanentemente escolher o presidente
"menos ruim", e fazer número no Congresso e criar grupos de pressão
para que se concretizem os direitos humanos e sociais, protegendo os
trabalhadores, o povo pobre, as mulheres e as minorias discriminadas. A
esquerda dos EUA "vive o presente" e não traça objetivos futuros
muito claros, ainda que tenha um papel relevante no combate à discriminação, ao
racismo e na conquista de direitos civis.
É uma posição respeitável, porém , só
parcialmente verdadeira e eficaz. Ao fim e ao cabo, tudo continua dentro do
modo de produção capitalista e uns poucos permanecem proprietários
dos meios de produção. O problema do capitalismo, dizia George Bernard
Shaw, é que tem poucos capitalistas.
Sobre o Brasil, é preciso dizer, em
primeiro lugar, que não existe modelo formulado de antemão para a situação de
um país específico. Só a práxis concreta desse povo poderá determinar a
trajetória de construção de uma sociedade, principalmente se pretendermos que
seja política e socialmente democrática.
Chega a ser meio ridículo quando dizem,
tanto à direita quanto à esquerda, que Cuba, por exemplo, deveria ser um modelo
de sociedade socialista para os brasileiros. Por mais semelhanças culturais ou
antropológicas existam entre os dois
povos, há diferenças - históricas,
geopolíticas e geográficas- abissais que impedem a convergência sob um mesmo
regime. Além disso, nunca se soube de uma revolução de determinado país que
desse certo em outro.
A
derrota foi inevitável quando a esquerda brasileira quis imitar os "focos
no campo" dos cubanos entre nós, apenas porque havia uma ditadura aqui, evocando
a ditadura que houve lá sob o regime de Batista, nos anos 40 e 50 do século XX.. As classes dirigentes brasileiras já haviam
aprendido com toda a experiência histórica cubana e sabiam exatamente como
evitar a guerrilha. Aqui, e mesmo na Bolívia e outras regiões. Che Guevara,
revolucionário desprendido e corajoso, foi uma inspiração moral para a
juventude latino-americana e mesmo mundial nos anos 60, mas jamais conseguiu
replicar a revolução cubana. E nem poderia.
Uma
revolução é um fenômeno de destruição e criação que emerge com certa
espontaneidade imprevisível e surpreende as sociedades mais ou menos
estratificadas. Cada uma vem de um jeito diferente e gera sociedades e
instituições diversas. Não fórmula pronta de revolução, assim como não existe
uma sociedade exatamente igual à outra.
Existem autores que pensaram e pensam essas
questões e que são pós-marxistas, isto é,
incluem Marx em seu repertório teórico e prático, mas vão além e, de
certa forma, superam o marxismo ou não o consideram o único pensamento possível
para a esquerda. São os casos, por exemplo, de pensadores como Cornelius
Castoriadis e Claude Lefort, na França, Axel Honneth, Jürgen Habermas e outros
herdeiros da Escola de Frankfurt, na Alemanha.
Todos têm em comum uma certa crítica
radical tanto do capitalismo predatório quanto do marxismo do universo totalitário dos regimes comunistas.
O mais importante é que todos, vindos de tradições filosóficas relativamente
diferentes, utilizam a chave da democracia para repensar o projeto de
emancipação social, política e humana.
O mais curioso é que todos também
aposentaram a palavra socialismo, que prestou grandes serviços ao movimento
operário e revolucionário, mas que hoje é inoperante e desnecessária. Até
porque declarar-se "socialista" tem tantos significados que , ao
final, não tem significado consistente algum.
Já repensar a democracia e levantar a
questão do poder e de sua distribuição como centro de qualquer projeto
transformador, é um exercício necessário num mundo onde praticamente todos os
países reivindicam rótulo de democráticos. Nunca houve tantos governos e
regimes que se intitulam "democracias" na face da terra, mas já são
escassos os que se apropriam e exibem, como sua definição e identidade, a
palavra "socialismo".
(Prossegue no dia 17/12/2014)
* Reinaldo Lobo é
psicanalista e articulista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com.
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