quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

QUAL SOCIALISMO? (1)


                                                                 Reinaldo Lobo*

 

   Uma pergunta que me fazem com freqüência, seja por provocação ideológica ou simples curiosidade, é: qual seria o modelo adequado de socialismo preconizado para o Brasil?  A minha resposta é bem simples: nenhum.

   A interrogação é quase sempre  uma armadilha preparada por aqueles que professam uma ideologia anti-socialista ou, se quiserem, anticomunista. Ou seja, uma pegadinha sectária vinda da direita, formulada pelos que pregam o individualismo possessivo -- o capitalismo e a propriedade privada -- como caminho único para a organização da sociedade.

   A questão capciosa visa a obrigar o interlocutor a optar entre os vários exemplos históricos que reclamam o rótulo de socialistas ou , então, a refugiar-se na desprezada abstração da utopia.

   O menu que oferecem é Cuba, União Soviética, Venezuela "bolivariana", China convertida ao mercado, Coréia do Norte ou ditaduras nacional-capitalistas da África, do Oriente Médio ou da Ásia.  Nem chegam a falar de países como a Suécia, a Dinamarca ou a Noruega, pois estes são reivindicados como pertencentes ao capitalismo puro, ainda que estejam num regime "socializante" de Estado do Bem-Estar social.

    O resto é quimera vã -- dizem. O que sobra? Resposta invariável : o capitalismo, a sociedade de consumo intensivo e crescimento "ilimitado", nas suas versões norte-americana e européia. Não é o regime perfeito --argumentam--, mas é o que existe de efetivo, real, ao qual devemos nos resignar  e com o qual teremos de conviver.

    A própria palavra socialismo deve ser usada com cuidado, pois está muito desgastada  após décadas de social democracia e de socialismo europeus, oportunistas e camaleônicos, muito mais comprometidos, na verdade, com a exploração, a neutralização da luta de classes e a manutenção do status quo capitalista, do que com qualquer avanço social.

   Quanto ao socialismo comunista, também bastante oportunista nos seus partidos no Ocidente, ganhou definitivamente a pecha de totalitarismo pela experiência repressiva, de exploração de classes e antidemocrática do Leste Europeu.

    O que resta, então, para a chamada "ala progressista"?

    Para alguns antigos socialistas sérios, cultos e respeitáveis o que restou foi um conjunto de valores éticos e de princípios políticos. Uma forma de encarar o mundo e de lutar para torná-lo mais justo. Algo assim como faz a esquerda norte-americana, que sabe que não vai tomar o poder a curto ou a médio prazo, mas tenta permanentemente escolher o presidente "menos ruim", e fazer número no Congresso e criar grupos de pressão para que se concretizem os direitos humanos e sociais, protegendo os trabalhadores, o povo pobre, as mulheres e as minorias discriminadas. A esquerda dos EUA "vive o presente" e não traça objetivos futuros muito claros, ainda que tenha um papel relevante no combate à discriminação, ao racismo e na conquista de direitos civis.

     É uma posição respeitável, porém , só parcialmente verdadeira e eficaz. Ao fim e ao cabo, tudo continua dentro do modo de produção capitalista e uns poucos permanecem  proprietários  dos meios de produção. O problema do capitalismo, dizia George Bernard Shaw, é que tem poucos capitalistas.

      Sobre o Brasil, é preciso dizer, em primeiro lugar, que não existe modelo formulado de antemão para a situação de um país específico. Só a práxis concreta desse povo poderá determinar a trajetória de construção de uma sociedade, principalmente se pretendermos que seja política e socialmente democrática.

    Chega a ser meio ridículo quando dizem, tanto à direita quanto à esquerda, que Cuba, por exemplo, deveria ser um modelo de sociedade socialista para os brasileiros. Por mais semelhanças culturais ou antropológicas  existam entre os dois povos, há  diferenças - históricas, geopolíticas e geográficas- abissais que impedem a convergência sob um mesmo regime. Além disso, nunca se soube de uma revolução de determinado país que desse certo em outro.

    A derrota foi inevitável quando a esquerda brasileira quis imitar os "focos no campo" dos cubanos entre nós, apenas porque havia uma ditadura aqui, evocando a ditadura que houve lá sob o regime de Batista, nos anos 40 e 50 do século XX..  As classes dirigentes brasileiras já haviam aprendido com toda a experiência histórica cubana e sabiam exatamente como evitar a guerrilha. Aqui, e mesmo na Bolívia e outras regiões. Che Guevara, revolucionário desprendido e corajoso, foi uma inspiração moral para a juventude latino-americana e mesmo mundial nos anos 60, mas jamais conseguiu replicar a revolução cubana. E nem poderia.

    Uma revolução é um fenômeno de destruição e criação que emerge com certa espontaneidade imprevisível e surpreende as sociedades mais ou menos estratificadas. Cada uma vem de um jeito diferente e gera sociedades e instituições diversas. Não fórmula pronta de revolução, assim como não existe uma sociedade exatamente igual à outra.

    Existem autores que pensaram e pensam essas questões e que são pós-marxistas, isto é,  incluem Marx em seu repertório teórico e prático, mas vão além e, de certa forma, superam o marxismo ou não o consideram o único pensamento possível para a esquerda. São os casos, por exemplo, de pensadores como Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, na França, Axel Honneth, Jürgen Habermas e outros herdeiros da Escola de Frankfurt, na Alemanha.

        Todos têm em comum uma certa crítica radical tanto do capitalismo predatório quanto do marxismo  do universo totalitário dos regimes comunistas. O mais importante é que todos, vindos de tradições filosóficas relativamente diferentes, utilizam a chave da democracia para repensar o projeto de emancipação social, política e humana.

    O mais curioso é que todos também aposentaram a palavra socialismo, que prestou grandes serviços ao movimento operário e revolucionário, mas que hoje é inoperante e desnecessária. Até porque declarar-se "socialista" tem tantos significados que , ao final, não tem significado consistente algum.

   Já repensar a democracia e levantar a questão do poder e de sua distribuição como centro de qualquer projeto transformador, é um exercício necessário num mundo onde praticamente todos os países reivindicam rótulo de democráticos. Nunca houve tantos governos e regimes que se intitulam "democracias" na face da terra, mas já são escassos os que se apropriam e exibem, como sua definição e identidade, a palavra "socialismo".

(Prossegue no dia 17/12/2014)

 

* Reinaldo Lobo é psicanalista e articulista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com.

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