Reinaldo Lobo*
A melhor solução para um problema nas
ciências ditas "exatas" é geralmente a fórmula mais simples e
elegante. Já nas questões sociais e
históricas o melhor método é o que dá conta da complexidade, sem reduzir os
fenômenos ao menor elemento.
A dialética marxista tinha a vantagem de
tentar abarcar o conjunto dos fatos histórico-sociais, suas contradições e
conflitos, sem o reducionismo inicial. O
defeito da teoria de Marx era, porém, o seu excessivo racionalismo e sua
inclinação para o positivismo. O resultado final foram as chamadas "leis
da História" que tudo explicavam pelo determinismo econômico e o
"motor" da luta de classes. No extremo da vulgata marxista, o que não
fosse sintetizado nos termos dessas leis -- Stálin aperfeiçoou o modelo, com
suas "quatro leis da dialética"-- estava literalmente fora da
realidade.
Essa visão promove o fechamento do
pensamento sobre fenômenos complexos, exatamente o contrário do que o propósito
inicial de Marx parecia indicar. Há um elemento de indeterminação, de acaso e
de instabilidade na História que Hegel havia entrevisto, mas o marxismo ocultou
de muitas maneiras. É impossível diagnosticar precisamente o que se passa no
plano histórico-social, até porque o observador está vivendo no meio do que é
preciso registrar. Mais difícil ainda é fazer prognósticos ou adivinhar o
futuro.
É possível elucidar uma práxis, um
processo, analisar o curso dos acontecimentos e até fazer ilações provisórias,
embora estas não possam ser tomadas como certezas e, menos ainda, leis. Quem
poderia dizer que a Revolução Francesa
desembocaria em Napoleão Bonaparte, ou que
a Revolução norte-americana de independência redundaria num imperialismo
expansionista mais refinado do que o colonialismo, ou que a libertária União
dos Sovietes desse no regime que deu?
Neste campo complexo, podemos falar, no
máximo, de projetos. Esses projetos podem ser discernidos no tempo e no espaço,
conter intenções e esperanças diversas, princípios diferentes -- e podem
realizar-se ou não.
A vantagem que os autores pós-marxistas
vêem no cerne do projeto democrático é, em grande parte, justamente a sua
abertura. Desde a Grécia Antiga, a democracia, com todas as suas limitações,
tende a sustentar um ambiente humano aberto aos eventos ...humanos. A
democracia é falível e flexível, pode facilitar a realização de projetos de
transformação, ainda que o seu método encontre muita resistência e, com
freqüência, seja posto de lado em favor dos vários tipos de autoritarismo. Há
um componente de criação na democracia que pode dar origem ao inédito, àquilo
que é radicalmente novo.
Um desses autores pós-marxistas,
Claude Lefort, costumava dizer que uma das características da democracia é a
capacidade de criar novos direitos. A pressão de baixo para cima, contra o
poder, pode dar origem a mudanças importantes nas sociedades minimamente
democráticas.
Se tomarmos o exemplo norte-americano,
fica fácil entender o que esse filósofo queria dizer. O povo dos Estados
Unidos, lá por volta dos anos 60 do século passado, teve uma pequena revolução
nas esferas dos costumes , das raças e
dos direitos civis. Minorias e mesmo grandes maiorias, como as mulheres
discriminadas, conquistaram novos direitos e mudaram o panorama da vida social
norte-americana. Essas mudanças espalharam-se pelo mundo afora e hoje
constituem uma política.
Uma outra característica do projeto
democrático é que contém dentro dele o núcleo de um outro projeto -- o de
autonomia humana, como demonstrou a obra de outro autor, Cornelius Castoriadis.
A autonomia não é entendida aqui no sentido do liberalismo, como uma essência
natural humana ou no mesmo sentido prático de Kant, como a realização da lei
moral. A autonomia castoriadiana é concebida na mesma direção de Freud, como
uma conquista. Não é algo que se dá naturalmente, nem pré-existente na essência
humana. É o resultado de um processo em que o sujeito se apropria
reflexivamente de si mesmo, desalienando-se e livrando-se progressivamente da
heteronomia.
Autonomia é a capacidade de fazer a própria lei.
Assemelha-se -- sem se reduzir a-- à independência que o paciente da
psicanálise vai adquirindo progressivamente, à medida em que se torna mais
lúcido e capaz de auto-observação. A autonomia pressupõe um mínimo necessário
de auto-reflexão lúcida e a conseqüente liberdade de se dar a própria lei. Sair
da heteronomia é sair do manto da lei do outro.
Não significa ignorar o outro ou
realizar qualquer desejo, mas conhecer a responsabilidade da auto-limitação.
Não se trata de psicologismo nem de atender à Lei do Desejo
indiscriminadamente, mas de considerar inclusive a esfera institucional e
social.
A decisão sempre será , ao mesmo tempo,
singular e coletiva -- será subjetiva, mas estará também ligada a uma situação
coletiva e social-histórica. Em psicanálise , longe de uma "ética do
desejo privatizado"-- dirá Castoriadis--, o projeto de autonomia é posto
em circulação como indissociavelmente individual e social. Isto quer dizer que
"o problema da ação subjetiva e da liberdade, na medida em que o ser
humano é um ser social, é posta em jogo em sua relação com a liberdade dos
outros". Em suma , a atividade livre de um sujeito não pode ser senão
aquela que visa a liberdade dos outros.
É
por isso que Castoriadis costumava dizer que a psicanálise tem, no essencial, o
mesmo objeto que a política: a autonomia dos seres humanos. (Falava da
verdadeira política, não do ofício de um Aécio Neves, de um Michel Temer, ou
mesmo de uma Dilma, filhos de uma sociedade heterônoma.) Ninguém pode viver
sozinho, e também não pode eliminar os outros. A pergunta é : como posso ser
livre se sou obrigado a viver em uma sociedade em que a lei é determinada por
alguém outro ?
A
única resposta não utópica e não delirante-- diria Castoriadis-- é : ter a
possibilidade efetiva de participar em pé de igualdade com qualquer outra
pessoa da formação e da aplicação da lei. Esta é a verdadeira significação da
democracia. "Uma sociedade autônoma só é possível se for formada por indivíduos autônomos. E
indivíduos autônomos só podem existir por meio e numa sociedade autônoma."
A educação para a autonomia faz parte desse projeto. Houve "picos" de
emergência do projeto de autonomia na História : na Grécia clássica, nas
revoluções americana e francesa, na Rússia de 1917, na revolução húngara de
1956 , na "brecha" de Maio de 1968 e, agora, na Primavera Árabe.
O projeto de uma sociedade autônoma deve
ser a busca de uma conquista de maior liberdade em todas as esferas sociais e
institucionais, e pode resultar em uma revolução. A radicalização da democracia
pode levar a uma exigência maior de mudanças institucionais e a revolução não
se dá só na esfera da transformação econômica. Movimentos sociais, como o MST,
propõem a criação de novas instituições no interior da sociedade.
Revolução é a autotransformação e
recriação de todas as instituições.É, portanto, a autotransformação, de baixo
para acima, de toda a sociedade.Pode ocorrer.Pode...
*Reinaldo Lobo é psicanalista e
articulista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com.
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