quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A IGREJA NO DIVÃ


                                    

 

                                                                Reinaldo Lobo*     

 

      A psicanálise costuma constatar na clínica que proibimos geralmente aquilo que é mais  tentador e desejado. A Igreja Católica -- e não só ela-- é uma instituição que proíbe taxativamente o sexo e particularmente o homossexualismo entre seus membros. As Forças Armadas de muitos países também.  São justamente os espaços onde vários escândalos ocorreram em todos os tempos. A comunhão entre si de padres , entre as freiras, o culto da misoginia e do celibato, a camaradagem da caserna e a separação absoluta, até há pouco, de homens e mulheres, tornava a proximidade confinada muito "perigosa".

      Perversões como a pedofilia surgiram no interior da Igreja, em grande parte, como conseqüência da repressão à sexualidade. Os menores foram vítimas do deslocamento de desejos  Mas, sabemos hoje  graças ao Papa Francisco, que essa não seria a única perversão a atingir essa instituição.

     Ao longo de séculos, diz ele, foi-se formando uma espécie de elite viciada em formas doentias de narcisismo e de exibicionismo. Vestidos com os hábitos da pompa e circunstância, carregados de símbolos de poder e de jóias, bispos mais parecem reis ou imperadores acompanhados por séquitos de serviçais, do que humildes servos de Deus. Os herdeiros de Cristo juntaram-se ao poder e às grifes de luxo ao longo da história, servindo não a Deus, mas às classes dominantes e até a chefes guerreiros.

    Ficaram famosas as fotos de João Paulo II ao lado de generais da OTAN, acompanhando as estratégias de Ronald Reagan para cercar as tropas virtuais da então União Soviética, a fim de destruir o comunismo ateu. E as do antigo Papa Pio XII sorrindo para os generais e embaixadores de Hitler. Os retratos das roupas no armário de Bento XVI , com suas chinelas especiais fabricadas pela Prada, são ícones do narcisismo e da ostentação de uma Igreja ameaçada de decadência.

     As declarações zangadas de Francisco, usando metáforas severas,  sobre o "Alzheimer espiritual" da Cúria, as "doenças" que acometem o corpo da Igreja como "qualquer corpo humano", anunciando que vai publicar um catálogo com as moléstias que "precisa aprender a curar", são uma proposta para que os católicos militantes e, sobretudo, seus pastores submetam sua instituição a uma espécie de profunda psicoterapia. Necessária, aliás, há muito tempo.

    Entre as 15 doenças apontadas pelo Papa estão o "terrorismo do falatório e da fofoca", a "esquizofrenia existencial", o "exibicionismo mundano", o "narcisismo falso" e as "rivalidades pela glória". Acrescentou que a "a cura é o fruto da tomada de consciência da doença".

     Vindo de um país , a Argentina, onde a psicanálise goza de merecido prestígio, o Papa não hesitou em usar as categorias dessa disciplina para diagnosticar os males da Igreja e para propor um tratamento. Demonstrou conhecer o assunto.

     Sua atitude lembra muito o gesto de Cristo relatado no Evangelho, quando foi tomado pela ira diante das distorções da religião e teria chicoteado os vendilhões do Templo. Seu pedido de "perdão pelos erros cometidos por mim e meus colaboradores" e , sobretudo, pelos escândalos de pedofilia em várias paróquias do mundo, não só demonstrou seu firme propósito de sanear a Igreja, mas a coragem de enfrentar a verdade. Isso combina muito com uma visão psicanalítica.

     Desde que Freud escreveu "O Futuro de uma Ilusão", muitos acreditam que a psicanálise "condenou" a religião. Ela seria um erro infantil dos homens diante da precariedade da existência, em busca de um Pai salvador e protetor .ou uma "neurose obsessiva da humanidade", pelos seus rituais e estereotipias. Jamais se deveria entender "ilusão" como "erro". Os aspectos infantis existem em todas as manifestações humanas e a conquista da maturidade é feita a duras penas por todos nós. O infantil em nós não cessa nunca.e ,em muitos assuntos humanos, é essencial, como no humor e nas artes. "Ilusão" deve ser entendido como "lenitivo", um recurso contra as dores e temores da existência.

    É como em Marx, em relação ao qual há um mal-entendido sobre a expressão "a religião é o ópio do povo". Marx não estava condenando a religião e nem equiparando ópio a um mal destruidor. O ópio era visto, sua época, como um recurso contra a dor, um lenitivo.

     Para Lacan, por exemplo, um católico já estaria no meio caminho para a compreensão psicanalítica, pelos simples fato de colocar o amor no centro de sua religião. O reconhecimento e a significância do amor e do ódio são fundamentais para a constituição do sujeito humano. E, quanto à  "fé", pode ser considerado como sinônimo de "esperança", não de erro. Isso fica claro não apenas em Freud, mas em toda psicanálise contemporânea. O "ato de fé" é uma forma de conhecimento e de aposta no futuro.

     Uma psicanálise da Igreja , e não dos padres, já foi iniciada com Freud. Sua visão da instituição como um organismo agregador e protetor que se tornaria cada vez menos necessário à  medida em que a ciência avançasse , explicou muita coisa. Mas não dava conta do fato de que a ciência nunca avançou tanto como hoje e, ainda assim, os homens sentem fome de religião. Talvez fosse mais correto dizer que a religião se tornará menos necessária somente quando a humanidade se emancipar em muitas áreas, inclusive na social e política.

     Enquanto isso não ocorre, e não sabemos se e quando ocorrerá, nada melhor do que um Papa que se propõe a avançar na psicanálise da própria Igreja. Os padres , eles próprios, poderiam fazer análise e testar assim suas vocações, como foi feito uma vez num mosteiro do México, em Cuernavaca. O resultado assustou, é verdade, a hierarquia de Roma: apenas dois de cem continuaram padres.

    Curar a Igreja de suas mazelas pode ser o melhor caminho, por ora, para ajudar na emancipação em geral, pois significa colocá-la na própria condição humana.

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