Reinaldo
Lobo*
A psicanálise costuma constatar na
clínica que proibimos geralmente aquilo que é mais tentador e desejado. A Igreja Católica -- e
não só ela-- é uma instituição que proíbe taxativamente o sexo e
particularmente o homossexualismo entre seus membros. As Forças Armadas de
muitos países também. São justamente os
espaços onde vários escândalos ocorreram em todos os tempos. A comunhão entre
si de padres , entre as freiras, o culto da misoginia e do celibato, a
camaradagem da caserna e a separação absoluta, até há pouco, de homens e
mulheres, tornava a proximidade confinada muito "perigosa".
Perversões como a pedofilia surgiram no
interior da Igreja, em grande parte, como conseqüência da repressão à
sexualidade. Os menores foram vítimas do deslocamento de desejos Mas, sabemos hoje graças ao Papa Francisco, que essa não seria a
única perversão a atingir essa instituição.
Ao longo de séculos, diz ele, foi-se
formando uma espécie de elite viciada em formas doentias de narcisismo e de exibicionismo.
Vestidos com os hábitos da pompa e circunstância, carregados de símbolos de
poder e de jóias, bispos mais parecem reis ou imperadores acompanhados por
séquitos de serviçais, do que humildes servos de Deus. Os herdeiros de Cristo
juntaram-se ao poder e às grifes de luxo ao longo da história, servindo não a
Deus, mas às classes dominantes e até a chefes guerreiros.
Ficaram famosas as fotos de João Paulo II
ao lado de generais da OTAN, acompanhando as estratégias de Ronald Reagan para
cercar as tropas virtuais da então União Soviética, a fim de destruir o
comunismo ateu. E as do antigo Papa Pio XII sorrindo para os generais e
embaixadores de Hitler. Os retratos das roupas no armário de Bento XVI , com
suas chinelas especiais fabricadas pela Prada, são ícones do narcisismo e da
ostentação de uma Igreja ameaçada de decadência.
As declarações zangadas de Francisco, usando
metáforas severas, sobre o
"Alzheimer espiritual" da Cúria, as "doenças" que acometem
o corpo da Igreja como "qualquer corpo humano", anunciando que vai
publicar um catálogo com as moléstias que "precisa aprender a curar",
são uma proposta para que os católicos militantes e, sobretudo, seus pastores
submetam sua instituição a uma espécie de profunda psicoterapia. Necessária,
aliás, há muito tempo.
Entre as 15 doenças apontadas pelo Papa estão
o "terrorismo do falatório e da fofoca", a "esquizofrenia
existencial", o "exibicionismo mundano", o "narcisismo
falso" e as "rivalidades pela glória". Acrescentou que a "a
cura é o fruto da tomada de consciência da doença".
Vindo de um país , a Argentina, onde a
psicanálise goza de merecido prestígio, o Papa não hesitou em usar as
categorias dessa disciplina para diagnosticar os males da Igreja e para propor
um tratamento. Demonstrou conhecer o assunto.
Sua atitude lembra muito o gesto de Cristo
relatado no Evangelho, quando foi tomado pela ira diante das distorções da
religião e teria chicoteado os vendilhões do Templo. Seu pedido de "perdão
pelos erros cometidos por mim e meus colaboradores" e , sobretudo, pelos
escândalos de pedofilia em várias paróquias do mundo, não só demonstrou seu
firme propósito de sanear a Igreja, mas a coragem de enfrentar a verdade. Isso
combina muito com uma visão psicanalítica.
Desde que Freud escreveu "O Futuro de
uma Ilusão", muitos acreditam que a psicanálise "condenou" a
religião. Ela seria um erro infantil dos homens diante da precariedade da
existência, em busca de um Pai salvador e protetor .ou uma "neurose
obsessiva da humanidade", pelos seus rituais e estereotipias. Jamais se
deveria entender "ilusão" como "erro". Os aspectos infantis
existem em todas as manifestações humanas e a conquista da maturidade é feita a
duras penas por todos nós. O infantil em nós não cessa nunca.e ,em muitos
assuntos humanos, é essencial, como no humor e nas artes. "Ilusão"
deve ser entendido como "lenitivo", um recurso contra as dores e
temores da existência.
É como em Marx, em relação ao qual há um
mal-entendido sobre a expressão "a religião é o ópio do povo". Marx
não estava condenando a religião e nem equiparando ópio a um mal destruidor. O
ópio era visto, sua época, como um recurso contra a dor, um lenitivo.
Para Lacan, por exemplo, um católico já
estaria no meio caminho para a compreensão psicanalítica, pelos simples fato de
colocar o amor no centro de sua religião. O reconhecimento e a significância do
amor e do ódio são fundamentais para a constituição do sujeito humano. E,
quanto à "fé", pode ser
considerado como sinônimo de "esperança", não de erro. Isso fica
claro não apenas em Freud, mas em toda psicanálise contemporânea. O "ato
de fé" é uma forma de conhecimento e de aposta no futuro.
Uma psicanálise da Igreja , e não dos
padres, já foi iniciada com Freud. Sua visão da instituição como um organismo
agregador e protetor que se tornaria cada vez menos necessário à medida em que a ciência avançasse , explicou
muita coisa. Mas não dava conta do fato de que a ciência nunca avançou tanto como
hoje e, ainda assim, os homens sentem fome de religião. Talvez fosse mais
correto dizer que a religião se tornará menos necessária somente quando a
humanidade se emancipar em muitas áreas, inclusive na social e política.
Enquanto isso não ocorre, e não sabemos se
e quando ocorrerá, nada melhor do que um Papa que se propõe a avançar na
psicanálise da própria Igreja. Os padres , eles próprios, poderiam fazer
análise e testar assim suas vocações, como foi feito uma vez num mosteiro do
México, em Cuernavaca. O resultado assustou, é verdade, a hierarquia de Roma: apenas dois de
cem continuaram padres.
Curar a Igreja de suas mazelas pode ser o
melhor caminho, por ora, para ajudar na emancipação em geral, pois significa
colocá-la na própria condição humana.
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