quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

UM SIGNIFICADO DO TERRORISMO


                        

 

                                                                          Reinaldo Lobo*

      O terrorismo atual pode ser um sintoma do vazio em que vive a democracia representativa moderna e do fracasso da chamada "globalização". Os políticos tradicionais, seus partidos e suas burocracias são incapazes de resolver os problemas reais da população, assim como a prometida integração internacional não consegue reduzir a xenofobia, o racismo e as brutais diferenças entre Norte e Sul.

      Não foi por acaso que, em meio às manifestações de solidariedade às vítimas do Charlie Hebdo, surgiram slogans  como: "Os terroristas fizeram algo. E o meu presidente? O que fizeram nossos políticos?" O problema é que esse espaço vazio deixado pela política tradicional escancara uma porta para todo tipo de violência vingativa e, sobretudo, para o neofascismo.

      À brutalidade estúpida dos terroristas contrapõe-se a brutalidade estúpida dos neofascistas. E da maioria silenciosa conivente, assustada e insegura com o terrorismo.e com a crise econômica mundial, não necessariamente nessa ordem de temores.

      A questão da imigração de árabes e africanos das antigas colônias européias, assim como da Turquia e outros pontos do Oriente Médio, está longe de ser resolvida no Parlamento Europeu e nos países membros da União Européia. Na França, a situação é particularmente grave e se soma à impotência dos partidos de esquerda de oferecerem uma alternativa séria à visão neofascista e conservadora.

     A extrema direita é tão simplista quanto os terroristas : é preciso expulsar os imigrantes para os seus países de origem ou confiná-los por leis severas e repressão  "ao seu devido lugar" , os subúrbios ("les banlieues").

    Some-se a esse quadro a precariedade econômica dos imigrantes, a crise e o desemprego, e temos o caldo de cultura perfeito para alimentar o terrorismo dos radicais islâmicos.

     A "globalização" -- na verdade, a circulação internacional do capital --prometia a livre circulação das pessoas, a integração e o diálogo entre as culturas. O que está acontecendo-- desde pelo menos 2001, quando houve o 11 de setembro nos EUA--, é o contrário de qualquer integração harmônica, mas a exacerbação de contradições e conflitos. Apontar apenas o radicalismo islâmico como causa é buscar uma explicação tranqüilizadora ou, no mínimo, um bode expiatório. Insisto; o terror parece ser sintoma e não causa de origem. No máximo, é causa imediata de tragédias que poderiam ser evitadas.

      É bem evidente que  a causa original seja a compressão de uma "globalização" forçada pelos interesses do capital no Oriente Médio e em outras partes do mundo. Uma pergunta ingênua: o que tropas norte-americanas têm a fazer em países como a Arábia Saudita, o Iraque, o Afeganistão?   Levar a democracia? Ou instaurar a Pax Americana? Estão lá para preservar valores ou pelo petróleo?

      Há também uma certa ingenuidade real nas manifestações pela "liberdade de pensamento" e pela "paz" dos espíritos, em conseqüência da tragédia que abriu o ano em Paris, ainda que sejam legítimas para expressar solidariedade humana e reafirmação de valores democráticos.

     Os que inspiraram atentados como o massacre dos cartunistas e jornalistas do "Charlie Hebdo", não estão "nem aí" para a liberdade de pensamento nem para a paz dos espíritos democráticos.   O que desejavam -- e desejam-- era justamente criar a insegurança, o medo e a comoção de um espetáculo da grandeza da queda das Torres Gêmeas, para anular qualquer possibilidade de blasfêmia viabilizada pela liberdade de pensamento.  Como lembrou o psicanalista francês Jacques Alain Miller , querem que voltemos à época medieval, da Baixa Idade Média, qualquer impropério ou brincadeira blasfema poderia ser punida com a fogueira, pois todos eram submetidos ao mesmo discurso religioso.

   O que os estúpidos autores do ato terrorista e seus inspiradores sempre quiseram era abalar a democracia moderna e, quem sabe, conseguir a instauração artificial e extemporânea de um califado como o do Estado Islâmico. Têm uma política regressiva. O pior é nós, ocidentais, temos uma política paralisada.

   O fato de os autores do atentado de Paris serem dois perdidos meio loucos, criados em orfanatos ou reformatórios, material humano típico para o uso do terrorismo, não elimina o seu caráter político e seu alcance estratégico, que terão conseqüências de longo prazo.

     Opor a esses fanáticos o livre pensar e palavras de ordem pacifistas é como propor aos fascistas que tolerassem a resistência pacífica de um Gandhi ou de um Martin Luther King. Estes dois não durariam uma semana nas praças de Berlim sob o nazifascismo.

    É preciso compreender, sem justificar jamais, a natureza do terrorismo atual e de  seus efeitos.

     Comecemos pelos efeitos. Duas conseqüências óbvias serão, primeiro, o fortalecimento do discurso soreliano da violência na ultra direita da Europa, com o crescimento do poder dos neofascistas na França e de seus apoiadores em toda parte;  em segundo, o enfraquecimento a curto prazo da causa palestina, favorecendo a extrema direita que governa Israel e cujos organismos judaicos na França chegaram ao ponto de se aliar com a Frente Nacional da feroz Anne Marie Le Pen, tradicional ninho de cobras anti-semitas, a fim de combater o islamismo e a imigração árabe.

     O paradoxo da união entre fascistas e judeus contra o movimento palestino não é o único suscitado pela radicalização facilitada pelo estúpido terrorismo. O outro é o surgimento de uma frente ampla envolvendo direita e esquerda na contenção dos radicais islâmicos, deteriorando a luta política pelos direitos humanos dos imigrantes e vítimas da perseguição racista.

      O terror não vai ceder com passeatas, ainda que uma união das pessoas civilizadas seja importante. Mas, quando se vê nas passeatas representantes de Estados terroristas, chega a ser desanimador! Também não será contido  com mais violência "defensiva" dos pilares da civilização.

     O terrorismo é a forma da ação política no século XXI. É uma forma limite, na falta de eficácia real da representação. Os radicais islâmicos usam a tecnologia ocidental, o caráter espetaculoso dos meios de comunicação, a instantaneidade e o morticínio contra o próprio Ocidente, cortando os caminhos de qualquer representação possível. Para combatê-los, temos insistido-- é necessária uma profunda mudança política não só nas relações de forças internacionais , mas nas estruturas da própria política do Ocidente.

    Se não houver uma mudança na consciência e na prática política entre nós, ocidentais, o terrorismo continuará a fazer mais vitimas.

    Albert Camus dizia que o Século XX foi o século do  medo, em função da Guerra Fria e da bomba atômica. O século XXI é o século do terror, em decorrência da desigualdade social em escala planetária, da ganância imperialista e da falta de participação popular nas decisões.

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