Reinaldo Lobo*
O
terrorismo atual pode ser um sintoma do vazio em que vive a democracia
representativa moderna e do fracasso da chamada "globalização". Os
políticos tradicionais, seus partidos e suas burocracias são incapazes de resolver
os problemas reais da população, assim como a prometida integração
internacional não consegue reduzir a xenofobia, o racismo e as brutais
diferenças entre Norte e Sul.
Não foi por acaso que, em meio às
manifestações de solidariedade às vítimas do Charlie Hebdo, surgiram
slogans como: "Os terroristas
fizeram algo. E o meu presidente? O que fizeram nossos políticos?" O
problema é que esse espaço vazio deixado pela política tradicional escancara
uma porta para todo tipo de violência vingativa e, sobretudo, para o neofascismo.
À brutalidade estúpida dos terroristas
contrapõe-se a brutalidade estúpida dos neofascistas. E da maioria silenciosa
conivente, assustada e insegura com o terrorismo.e com a crise econômica
mundial, não necessariamente nessa ordem de temores.
A questão da imigração de árabes e
africanos das antigas colônias européias, assim como da Turquia e outros pontos
do Oriente Médio, está longe de ser resolvida no Parlamento Europeu e nos países
membros da União Européia. Na França, a situação é particularmente grave e se
soma à impotência dos partidos de esquerda de oferecerem uma alternativa séria à
visão neofascista e conservadora.
A extrema direita é tão simplista quanto
os terroristas : é preciso expulsar os imigrantes para os seus países de origem
ou confiná-los por leis severas e repressão "ao seu devido lugar" , os subúrbios
("les banlieues").
Some-se a esse quadro a precariedade
econômica dos imigrantes, a crise e o desemprego, e temos o caldo de cultura
perfeito para alimentar o terrorismo dos radicais islâmicos.
A "globalização" -- na verdade,
a circulação internacional do capital --prometia a livre circulação das
pessoas, a integração e o diálogo entre as culturas. O que está acontecendo--
desde pelo menos 2001, quando houve o 11 de setembro nos EUA--, é o contrário
de qualquer integração harmônica, mas a exacerbação de contradições e
conflitos. Apontar apenas o radicalismo islâmico como causa é buscar uma
explicação tranqüilizadora ou, no mínimo, um bode expiatório. Insisto; o terror
parece ser sintoma e não causa de origem. No máximo, é causa imediata de
tragédias que poderiam ser evitadas.
É
bem evidente que a causa original seja a
compressão de uma "globalização" forçada pelos interesses do capital
no Oriente Médio e em outras partes do mundo. Uma pergunta ingênua: o que
tropas norte-americanas têm a fazer em países como a Arábia Saudita, o Iraque,
o Afeganistão? Levar a democracia? Ou
instaurar a Pax Americana? Estão lá para preservar valores ou pelo petróleo?
Há também
uma certa ingenuidade real nas manifestações pela "liberdade de
pensamento" e pela "paz" dos espíritos, em conseqüência da
tragédia que abriu o ano em Paris, ainda que sejam legítimas para expressar
solidariedade humana e reafirmação de valores democráticos.
Os
que inspiraram atentados como o massacre dos cartunistas e jornalistas do "Charlie
Hebdo", não estão "nem aí" para a liberdade de pensamento nem
para a paz dos espíritos democráticos. O
que desejavam -- e desejam-- era justamente criar a insegurança, o medo e a
comoção de um espetáculo da grandeza da queda das Torres Gêmeas, para anular
qualquer possibilidade de blasfêmia viabilizada pela liberdade de
pensamento. Como lembrou o psicanalista
francês Jacques Alain Miller , querem que voltemos à época medieval, da Baixa
Idade Média, qualquer impropério ou brincadeira blasfema poderia ser punida com
a fogueira, pois todos eram submetidos ao mesmo discurso religioso.
O que os estúpidos autores do ato terrorista
e seus inspiradores sempre quiseram era abalar a democracia moderna e, quem
sabe, conseguir a instauração artificial e extemporânea de um califado como o
do Estado Islâmico. Têm uma política regressiva. O pior é nós, ocidentais,
temos uma política paralisada.
O fato
de os autores do atentado de Paris serem dois perdidos meio loucos, criados em
orfanatos ou reformatórios, material humano típico para o uso do terrorismo,
não elimina o seu caráter político e seu alcance estratégico, que terão
conseqüências de longo prazo.
Opor a esses fanáticos o livre pensar e
palavras de ordem pacifistas é como propor aos fascistas que tolerassem a
resistência pacífica de um Gandhi ou de um Martin Luther King. Estes dois não
durariam uma semana nas praças de Berlim sob o nazifascismo.
É
preciso compreender, sem justificar jamais, a natureza do terrorismo atual e de
seus efeitos.
Comecemos pelos efeitos. Duas
conseqüências óbvias serão, primeiro, o fortalecimento do discurso soreliano da
violência na ultra direita da Europa, com o crescimento do poder dos
neofascistas na França e de seus apoiadores em toda parte; em segundo, o enfraquecimento a curto prazo da
causa palestina, favorecendo a extrema direita que governa Israel e cujos
organismos judaicos na França chegaram ao ponto de se aliar com a Frente Nacional
da feroz Anne Marie Le Pen, tradicional ninho de cobras anti-semitas, a fim de
combater o islamismo e a imigração árabe.
O paradoxo da união entre fascistas e
judeus contra o movimento palestino não é o único suscitado pela radicalização
facilitada pelo estúpido terrorismo. O outro é o surgimento de uma frente ampla
envolvendo direita e esquerda na contenção dos radicais islâmicos, deteriorando
a luta política pelos direitos humanos dos imigrantes e vítimas da perseguição
racista.
O terror não vai ceder com passeatas,
ainda que uma união das pessoas civilizadas seja importante. Mas, quando se vê
nas passeatas representantes de Estados terroristas, chega a ser desanimador!
Também não será contido com mais
violência "defensiva" dos pilares da civilização.
O terrorismo é a forma da ação política no
século XXI. É uma forma limite, na falta de eficácia real da representação. Os
radicais islâmicos usam a tecnologia ocidental, o caráter espetaculoso dos
meios de comunicação, a instantaneidade e o morticínio contra o próprio
Ocidente, cortando os caminhos de qualquer representação possível. Para
combatê-los, temos insistido-- é necessária uma profunda mudança política não
só nas relações de forças internacionais , mas nas estruturas da própria
política do Ocidente.
Se não houver uma mudança na consciência e
na prática política entre nós, ocidentais, o terrorismo continuará a fazer mais
vitimas.
Albert Camus dizia que o Século XX foi o
século do medo, em função da Guerra Fria
e da bomba atômica. O século XXI é o século do terror, em decorrência da
desigualdade social em escala planetária, da ganância imperialista e da falta
de participação popular nas decisões.
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