Reinaldo Lobo*
A eleição da esquerda na Grécia não foi
obra de Zeus, que comanda o Olimpo, nem de Perséfone, mãe de filhos ilustres,
como Dionísio. Foi um fruto do Caos, que
não é uma divindade, mas tão somente um "bocejo" vazio,como dizia
Hesíodo, isto é, um movimento de criação no princípio de tudo. Uma brecha
surgida da indefinição ("apeíron").
No meio de uma crise econômica sem
precedentes, surgiu uma força política bastante original pela primeira vez nas
últimas décadas na Europa . É muito fácil definí-la apenas como "esquerda
radical", quando é , na verdade, um efeito da crítica aos caminhos
erráticos da própria esquerda tradicional.
Depois de muitas tentativas e erros da direita
grega, atrelada à divida externa e apoiada nas forças mais conservadoras da
Alemanha e nos "neoliberais" da União Européia, os gregos cansaram-se
do desemprego, da insegurança e da regressão à quase miséria por uma crise que
se arrasta desde 2008.
A
situação só fez piorar depois que se iniciou a "austeridade"
econômica imposta pelo governo conservador em 2010, da Nova Democracia-Pasok-
Dimar. O desencanto grego com a direita e a aceitação da novidade levou à
surpreendente ascensão e vitória das forças mais jovens da política européia,
concentradas no grupo Syriza.
O
governo liderado pelo primeiro ministro Alexis Tsipras, de 40 anos, é uma tentativa inédita de a esquerda
governar sem concessões fatais às "oligarquias liberais" da Europa e
às pressões do capital internacional. Todos os governos anteriores estavam
dependentes dos poderosos da União Européia , a começar pela Alemanha da
senhora Ângela Merkel.
Não foi
por acaso que, antes mesmo da eleição, a líder alemã ameaçou enxotar a Grécia
da Europa do euro, caso o eleitorado grego se comportasse mal. Os gregos
fizeram a traquinagem de votar contra ela e a favor da renegociação da dívida
grega prometida pelo Syriza. Estavam sendo humilhados há muito tempo e
reagiram.
As conseqüências são imprevisíveis, ainda
que a pressão, as ameaças e a chantagem sobre o novo governo já tenham
começado em seus primeiros dias de virtual poder. Mas existem questões mais amplas
no horizonte de um governo de esquerda que não se define nem como
social-democrata nem como candidato ao totalitarismo.
Não vão faltar --anotem-- quem denuncie
rapidamente o governo de Tsiras, eleito democraticamente na pátria mãe da
democracia, de ser anti-democrático e "leninista", para não dizer "terrorista".
A direita não vai poupar esforços para sabotar a governabilidade de um governo
de esquerda amplamente majoritário. Com
cerca de 300 cadeiras no Parlamento , a Syriza teve 149, enquanto a oposição
está pulverizada em número e em coerência política. Por dois votos, o jovem
Tsipras não teve a maioria completa para
governar sozinho. Curiosamente, convidou o velho Partido Comunista grego para
se coligar, num gesto simbólico de reverência à velha esquerda, mas os
herdeiros do stalinismo recusaram. As resistências à direita e à esquerda eram
previsíveis.
O desafio da nova esquerda grega será
enorme. Primeiro, precisa manejar a economia caótica sem respaldo externo. Além disso, o combate capitalista será implacável contra a possibilidade de uma
virada á esquerda-- uma revirada do sistema, na verdade-- pela via democrática. Tudo se fará para
desmoralizar o jovem governo de Atenas. Segundo, necessita provar que um
projeto autêntico de esquerda não é mera "utopia" e pode se realizar
na vida cotidiana a partir de uma sociedade capitalista moderna.
A palavra utopia costuma ser aplicada a
um projeto como o dos jovens esquerdistas gregos. É importante tomar a
significação exata e original da palavra: a utopia é algo que não ocorreu e que
não pode ocorrer. O que os gregos estão propondo é revolucionário, mas não é
uma utopia. É um projeto social e histórico que pode ser realizado e em relação
ao qual não há nada que comprove ser impossível.
Sua realização dentro de uma democracia
radical depende apenas-- como dizia um grego que por ele lutou mais do que
tudo, Cornelius Castoriadis --da "atividade lúcida dos indivíduos e do
povo, de sua compreensão, de sua vontade, de sua imaginação".
O
povo grego votou conscientemente, sabia o que estava fazendo, escolheu o risco
da mudança. Usou sua vontade lucidamente e sua imaginação. Enfrentou as
potências conservadoras da Europa e todo o capitalismo internacional,
incluindo-se aí os Estados Unidos.
Se os jovens gregos que chegam ao poder
com o Syriza cuidarem de não se encarapitar no poder burocrático e não forem
mordidos pela famosa mosca azul. Se seguirem o caminho original que seguiram
até agora, enraizados nos movimentos sociais no interior da sociedade grega e
nos grupos que surgiram com os protestos contra a "austeridade
econômica" (leia-se: arrôcho e recessão). Se lembrarem do trajeto dos
partidos socialistas e social-democratas que se perverteram ao tornar o
movimento um fim em si mesmo e também dos leninistas que se fizeram stalinistas
rapidamente logo após a vitória da revolução russa, então talvez seja possível
a criação de novas instituições radicalmente democráticas, com participação de
baixo para cima, com o máximo de liberdade para o povo governar não só através
dos seus representantes,porém, inclusive mais diretamente.
Será necessário não só enfrentar a
pressão alheia, mas igualmente a interna, que empurra partidos de esquerda para
os benefícios do poder e da corrupção. Não se pode esquecer que já em 1914 o
marxismo ocidental mostrou que deixara de ser um movimento revolucionário,
quando os partidos social-democratas europeus votaram os créditos de guerra
e,logo depois, fizeram ministros em gabinetes "burgueses". Lênin não
se enganou quanto a isso: a social-democracia tinha aceito a colaboração de
classes e a II Internacional só era
"marxista" no nome. O leninismo não teve destino melhor, resultando
não só totalitarismo stalinista como também seus partidos espalhados pelo mundo
foram um modelo de colaboracionismo.
Todos já sabemos o trajeto histórico de
diferentes projetos políticos de esquerda. Ninguém está-se enganando quanto aos
riscos, mas é preciso experimentar o novo caminho dessa Maratona. Sem ilusões.
O entusiasmo dos jovens esquerdistas
gregos está sob o signo de Dionísio, sem dúvida. Mas o seu governo e a sua
revolução vão precisar da força de todos
os deuses do Olimpo.
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