quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A CHANCE DA ESQUERDA


       

 

                                                                           Reinaldo Lobo*

 

     A eleição da esquerda na Grécia não foi obra de Zeus, que comanda o Olimpo, nem de Perséfone, mãe de filhos ilustres, como Dionísio. Foi  um fruto do Caos, que não é uma divindade, mas tão somente um "bocejo" vazio,como dizia Hesíodo, isto é, um movimento de criação no princípio de tudo. Uma brecha surgida da indefinição ("apeíron").

    No meio de uma crise econômica sem precedentes, surgiu uma força política bastante original pela primeira vez nas últimas décadas na Europa . É muito fácil definí-la apenas como "esquerda radical", quando é , na verdade, um efeito da crítica aos caminhos erráticos da própria esquerda tradicional.

     Depois de muitas tentativas e erros da direita grega, atrelada à divida externa e apoiada nas forças mais conservadoras da Alemanha e nos "neoliberais" da União Européia, os gregos cansaram-se do desemprego, da insegurança e da regressão à quase miséria por uma crise que se arrasta desde 2008.

     A situação só fez piorar depois que se iniciou a "austeridade" econômica imposta pelo governo conservador em 2010, da Nova Democracia-Pasok- Dimar. O desencanto grego com a direita e a aceitação da novidade levou à surpreendente ascensão e vitória das forças mais jovens da política européia, concentradas no grupo Syriza.

    O governo liderado pelo primeiro ministro  Alexis Tsipras,  de 40 anos, é uma tentativa inédita de a esquerda governar sem concessões fatais às "oligarquias liberais" da Europa e às pressões do capital internacional. Todos os governos anteriores estavam dependentes dos poderosos da União Européia , a começar pela Alemanha da senhora Ângela Merkel.

    Não foi por acaso que, antes mesmo da eleição, a líder alemã ameaçou enxotar a Grécia da Europa do euro, caso o eleitorado grego se comportasse mal. Os gregos fizeram a traquinagem de votar contra ela e a favor da renegociação da dívida grega prometida pelo Syriza. Estavam sendo humilhados há muito tempo e reagiram.

     As conseqüências são imprevisíveis, ainda que a pressão,  as ameaças  e a chantagem sobre o novo governo já tenham começado em seus primeiros dias de virtual poder. Mas existem questões mais amplas no horizonte de um governo de esquerda que não se define nem como social-democrata nem como candidato ao totalitarismo.

   Não vão faltar --anotem-- quem denuncie rapidamente o governo de Tsiras, eleito democraticamente na pátria mãe da democracia, de ser anti-democrático e "leninista", para não dizer "terrorista". A direita não vai poupar esforços para sabotar a governabilidade de um governo de esquerda amplamente majoritário.  Com cerca de 300 cadeiras no Parlamento , a Syriza teve 149, enquanto a oposição está pulverizada em número e em coerência política. Por dois votos, o jovem Tsipras não teve a maioria  completa para governar sozinho. Curiosamente, convidou o velho Partido Comunista grego para se coligar, num gesto simbólico de reverência à velha esquerda, mas os herdeiros do stalinismo recusaram. As resistências à direita e à esquerda eram previsíveis.

      O desafio da nova esquerda grega será enorme. Primeiro, precisa manejar a economia caótica sem  respaldo externo. Além disso, o combate  capitalista será implacável contra a possibilidade de uma virada á esquerda-- uma revirada do sistema, na verdade-- pela via democrática. Tudo se fará  para desmoralizar o jovem governo de Atenas. Segundo, necessita provar que um projeto autêntico de esquerda não é mera "utopia" e pode se realizar na vida cotidiana a partir de uma sociedade capitalista moderna.

      A palavra utopia costuma ser aplicada a um projeto como o dos jovens esquerdistas gregos. É importante tomar a significação exata e original da palavra: a utopia é algo que não ocorreu e que não pode ocorrer. O que os gregos estão propondo é revolucionário, mas não é uma utopia. É um projeto social e histórico que pode ser realizado e em relação ao qual não há nada que comprove ser impossível.

     Sua realização dentro de uma democracia radical depende apenas-- como dizia um grego que por ele lutou mais do que tudo, Cornelius Castoriadis --da "atividade lúcida dos indivíduos e do povo, de sua compreensão, de sua vontade, de sua imaginação".

     O povo grego votou conscientemente, sabia o que estava fazendo, escolheu o risco da mudança. Usou sua vontade lucidamente e sua imaginação. Enfrentou as potências conservadoras da Europa e todo o capitalismo internacional, incluindo-se aí os Estados Unidos.

      Se os jovens gregos que chegam ao poder com o Syriza cuidarem de não se encarapitar no poder burocrático e não forem mordidos pela famosa mosca azul. Se seguirem o caminho original que seguiram até agora, enraizados nos movimentos sociais no interior da sociedade grega e nos grupos que surgiram com os protestos contra a "austeridade econômica" (leia-se: arrôcho e recessão). Se lembrarem do trajeto dos partidos socialistas e social-democratas que se perverteram ao tornar o movimento um fim em si mesmo e também dos leninistas que se fizeram stalinistas rapidamente logo após a vitória da revolução russa, então talvez seja possível a criação de novas instituições radicalmente democráticas, com participação de baixo para cima, com o máximo de liberdade para o povo governar não só através dos seus representantes,porém, inclusive mais diretamente.

       Será necessário não só enfrentar a pressão alheia, mas igualmente a interna, que empurra partidos de esquerda para os benefícios do poder e da corrupção. Não se pode esquecer que já em 1914 o marxismo ocidental mostrou que deixara de ser um movimento revolucionário, quando os partidos social-democratas europeus votaram os créditos de guerra e,logo depois, fizeram ministros em gabinetes "burgueses". Lênin não se enganou quanto a isso: a social-democracia tinha aceito a colaboração de classes  e a II Internacional só era "marxista" no nome. O leninismo não teve destino melhor, resultando não só totalitarismo stalinista como também seus partidos espalhados pelo mundo foram um modelo de colaboracionismo.

      Todos já sabemos o trajeto histórico de diferentes projetos políticos de esquerda. Ninguém está-se enganando quanto aos riscos, mas é preciso experimentar o novo caminho dessa Maratona. Sem ilusões.

      O entusiasmo dos jovens esquerdistas gregos está sob o signo de Dionísio, sem dúvida. Mas o seu governo e a sua revolução vão precisar da força  de todos os deuses do Olimpo.

 

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