quarta-feira, 11 de março de 2015

O DIA DO ÓDIO


   

                                                            Reinaldo Lobo*

 

         A idéia dos "Dois minutos de ódio" é uma das criações mais célebres de "1984", o livro de George Orwell, o inventor do totalitário "Big Brother". O autor colocava seu herói na situação de ser obrigado a participar de uma histeria organizada, na qual se elegia um inimigo de "Oceânia", sua terra imaginária, e todos se punham a dirigir contra ele, por um breve instante,  seu ódio, seus gritos,insultos e vitupérios obscenos. Aliviavam assim, por deslocamento,  suas próprias decepções, frustrações, desejos inconfessáveis e impulsos agressivos. Era uma forma de manipular as multidões. Sempre havia uma boa razão para a violência contra um objetivo selecionado.

       O manipulador em "1984' era o Estado, na forma do Grande Irmão, mas uma lição revelada nessa obra é que várias forças anônimas podem explorar esse controle das massas. A própria publicidade comercial já utilizou esse recurso. O cinema apresenta vários exemplos de catarse coletiva com os seus filmes sobre distopias, reinos imaginários terríficos e invasões de marcianos e de zumbis. Odiar um inimigo assim, e até matá-lo, torna-se "normal". Mas a invocação da participação direta da platéia, como no tempo dos gladiadores, foi uma elaboração artística de Orwell.

    A originalidade de "1984", que muitos apresentaram como uma versão do "Leviatã", de Thomas Hobbes, está mais em ser uma distopia auto-reflexiva, onde se denuncia o seu próprio método constitutivo. É a denúncia do totalitarismo real pela metáfora exacerbada produzida pela imaginação. O resultado mostra que a realidade chega a ser pior do que a ficção.

    A desumanização do ser humano, sua redução a uma peça de engrenagem política e sua submissão pelo medo, são as características principais desse processo e sua exposição é a sua própria denúncia. Detalhe: não importa que a iniciativa parta do Estado ou de qualquer outra organização.

   O estímulo ao ódio neste momento do Brasil  tem várias origens e , já que se fala tanto que é preciso assumir responsabilidades pela crise vivida, os meios de comunicação deveriam responsabilizar-se por uma boa parte dessa situação. O clima de ódio contra a presidente Dilma tem-se tornado um "evento" midiático de grandes proporções, desde pelo menos aquele episódio do ataque obsceno de parte da torcida no campo de futebol, às vésperas da Copa do Mundo.

    As TVs, as rádios , as revistas e os jornais --a "velha mídia", enfim-- não param de "espetaculizar" e ressaltar o papel de alvo da presidente. Não faltam os que comparam a sua situação com a do ex-presidente Collor, que renunciou após um movimento de rua que poderia levá-lo ao impeachment , e com certeza levaria.

     Um paradoxo da situação atual, já assinalado por muitos, é que os ataques a Dilma ganham força justamente no momento em que ela atendeu aos pedidos da oposição e de boa parte das classes médias, convocando o ministro Joaquim Levy, vindo da oposição , para executar um programa de correção de curso na economia, por meio dos ajustes fiscais.

     Bastaria esse gesto para acalmar os setores insatisfeitos das multidões e a imprensa conservadora, pois seria um reconhecimento dos erros do governo. Mas isso não é possível porque as multidões que batem panelas e xingam a presidente foram insufladas há tanto tempo que desejam vê-la  humilhada e, no final, derrotada politicamente. Quem expressa bem isso é um truculento líder da oposição, senador Aloísio Nunes Ferreira, ex- esquerdista e ex-caixa da ALN de Carlos Marighela, quando diz que é preciso ver "Dilma sangrar até o fim". Alega que não quer impeachment, mas insufla a população a reinvidicá-lo nas ruas.

     Além de tudo, com a alta do dólar, ameaças de mais impostos da "austeridade" por elas pedida, as classes médias vêem bloqueados seus sonhos de consumo, viagens e equiparação às camadas mais ricas. A frustração é inevitável.

       O dia 15 próximo, para o qual estão marcadas manifestações contra o governo, será um dia de ódio. Essa emoção é muito eficaz em política, pois é da própria estrutura do fenômeno político um certo grau de paranóia e de cisão entre, de um lado, os amigos e, do outro, os inimigos.As distorções de percepção provocadas pelo ódio, um sentimento que inunda a vida psíquica e anula o aparelho para pensar, podem ser manipuladas ao ponto de uma mentira passar por verdade e acusações abstratas ou virtuais virarem realidades concretas.

      Hannah Arendt, a célebre  pensadora, dizia que uma das virtudes de Maquiavel for ter compreendido que, em política, tudo se passa no campo das aparências.  O que parece, é.  O mundo é feito do que aparece e quem souber tirar melhor proveito disso ganha o prêmio, que é o poder.  Não importa quem a presidente Dilma verdadeiramente é, nem as suas intenções profundas.  A questão é como está sendo percebida pelas multidões. E isso é o que os grupos de extrema direita, da "nova direita" e da oposição querem manipular, ao organizarem as manifestações do dia 15.

    Ao contrário dos eventos de junho de 2013, este Dia do Ódio não será espontâneo, mas minuciosamente programado. A organização prévia não impede que boa parte da multidão, se é que haverá multidão, expresse sentimentos reais de repúdio e de agressão.

     O objetivo dos "minutos de ódio" em "1984" era transformar o ódio particular em ódio coletivo. Cada participante de uma manifestação tem seus motivos privados para odiar e, muitas vezes, nada tem a ver com Dilma e a política.  A personagem do livro de Orwell, Winston Smith, odiava ser impedido de manter relações sexuais com Júlia, a jovem colega atraente, mas dirigia toda sua hostilidade ao inimigo da "Eurásia".  Tal ódio particular, esclareceu Orwell, era o objetivo do puritanismo reinante em "Oceânia", terra de calúnias que se tornavam denúncias e de denúncias que eram abafadas ou distorcidas contra quem as fazia.

        Os bons sentimentos não fazem muito sucesso em política. Há exceções: Nelson Mandela, Gandhi, Martin Luther King  lideraram revoluções em nome do amor. Foram consagrados simbolicamente por isso, mas dois deles tiveram finais bem infelizes. O amor em política exige algo como a santidade e o martírio.
          Os motivos de quem vai protestar democraticamente no dia 15 podem ser legítimos, abstratos, virtuais ou psiquicamente particulares, podem até ser por "amor ao Brasil". Mas o efeito do evento será bem real e, sobretudo, destrutivo num momento de uma crise principalmente política. Será como jogar gasolina para apagar o fogo. As consequências são imprevisíveis. E não serão "dois minutos de ódio", mas o próprio Dia do Ódio.

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