Reinaldo Lobo*
A idéia dos "Dois minutos de
ódio" é uma das criações mais célebres de "1984", o livro de
George Orwell, o inventor do totalitário "Big Brother". O autor
colocava seu herói na situação de ser obrigado a participar de uma histeria
organizada, na qual se elegia um inimigo de "Oceânia", sua terra
imaginária, e todos se punham a dirigir contra ele, por um breve instante, seu ódio, seus gritos,insultos e vitupérios
obscenos. Aliviavam assim, por deslocamento,
suas próprias decepções, frustrações, desejos inconfessáveis e impulsos
agressivos. Era uma forma de manipular as multidões. Sempre havia uma boa razão
para a violência contra um objetivo selecionado.
O manipulador em "1984' era o
Estado, na forma do Grande Irmão, mas uma lição revelada nessa obra é que
várias forças anônimas podem explorar esse controle das massas. A própria
publicidade comercial já utilizou esse recurso. O cinema apresenta vários
exemplos de catarse coletiva com os seus filmes sobre distopias, reinos
imaginários terríficos e invasões de marcianos e de zumbis. Odiar um inimigo
assim, e até matá-lo, torna-se "normal". Mas a invocação da
participação direta da platéia, como no tempo dos gladiadores, foi uma
elaboração artística de Orwell.
A originalidade de "1984", que muitos
apresentaram como uma versão do "Leviatã", de Thomas Hobbes, está mais
em ser uma distopia auto-reflexiva, onde se denuncia o seu próprio método
constitutivo. É a denúncia do totalitarismo real pela metáfora exacerbada
produzida pela imaginação. O resultado mostra que a realidade chega a ser pior
do que a ficção.
A
desumanização do ser humano, sua redução a uma peça de engrenagem política e
sua submissão pelo medo, são as características principais desse processo e sua
exposição é a sua própria denúncia. Detalhe: não importa que a iniciativa parta
do Estado ou de qualquer outra organização.
O estímulo ao ódio neste momento do
Brasil tem várias origens e , já que se
fala tanto que é preciso assumir responsabilidades pela crise vivida, os meios de
comunicação deveriam responsabilizar-se por uma boa parte dessa situação. O
clima de ódio contra a presidente Dilma tem-se tornado um "evento"
midiático de grandes proporções, desde pelo menos aquele episódio do ataque
obsceno de parte da torcida no campo de futebol, às vésperas da Copa do Mundo.
As TVs,
as rádios , as revistas e os jornais --a "velha mídia", enfim-- não
param de "espetaculizar" e ressaltar o papel de alvo da presidente.
Não faltam os que comparam a sua situação com a do ex-presidente Collor, que
renunciou após um movimento de rua que poderia levá-lo ao impeachment , e com
certeza levaria.
Um paradoxo da situação atual, já
assinalado por muitos, é que os ataques a Dilma ganham força justamente no
momento em que ela atendeu aos pedidos da oposição e de boa parte das classes
médias, convocando o ministro Joaquim Levy, vindo da oposição , para executar
um programa de correção de curso na economia, por meio dos ajustes fiscais.
Bastaria esse gesto para acalmar os setores
insatisfeitos das multidões e a imprensa conservadora, pois seria um
reconhecimento dos erros do governo. Mas isso não é possível porque as
multidões que batem panelas e xingam a presidente foram insufladas há tanto
tempo que desejam vê-la humilhada e, no
final, derrotada politicamente. Quem expressa bem isso é um truculento líder da
oposição, senador Aloísio Nunes Ferreira, ex- esquerdista e ex-caixa da ALN de
Carlos Marighela, quando diz que é preciso ver "Dilma sangrar até o
fim". Alega que não quer impeachment, mas insufla a população a reinvidicá-lo
nas ruas.
Além
de tudo, com a alta do dólar, ameaças de mais impostos da
"austeridade" por elas pedida, as classes médias vêem bloqueados seus
sonhos de consumo, viagens e equiparação às camadas mais ricas. A frustração é
inevitável.
O dia 15 próximo, para o qual estão
marcadas manifestações contra o governo, será um dia de ódio. Essa emoção é
muito eficaz em política, pois é da própria estrutura do fenômeno político um
certo grau de paranóia e de cisão entre, de um lado, os amigos e, do outro, os
inimigos.As distorções de percepção provocadas pelo ódio, um sentimento que
inunda a vida psíquica e anula o aparelho para pensar, podem ser manipuladas ao
ponto de uma mentira passar por verdade e acusações abstratas ou virtuais
virarem realidades concretas.
Hannah Arendt, a célebre pensadora, dizia que uma das virtudes de Maquiavel
for ter compreendido que, em política, tudo se passa no campo das
aparências. O que parece, é. O mundo é feito do que aparece e quem souber
tirar melhor proveito disso ganha o prêmio, que é o poder. Não importa quem a presidente Dilma
verdadeiramente é, nem as suas intenções profundas. A questão é como está sendo percebida pelas
multidões. E isso é o que os grupos de extrema direita, da "nova
direita" e da oposição querem manipular, ao organizarem as manifestações
do dia 15.
Ao
contrário dos eventos de junho de 2013, este Dia do Ódio não será espontâneo,
mas minuciosamente programado. A organização prévia não impede que boa parte da
multidão, se é que haverá multidão, expresse sentimentos reais de repúdio e de
agressão.
O objetivo dos "minutos de ódio"
em "1984" era transformar o ódio particular em ódio coletivo. Cada
participante de uma manifestação tem seus motivos privados para odiar e, muitas
vezes, nada tem a ver com Dilma e a política. A personagem do livro de Orwell, Winston
Smith, odiava ser impedido de manter relações sexuais com Júlia, a jovem colega
atraente, mas dirigia toda sua hostilidade ao inimigo da "Eurásia". Tal ódio particular, esclareceu Orwell, era o
objetivo do puritanismo reinante em "Oceânia", terra de calúnias que
se tornavam denúncias e de denúncias que eram abafadas ou distorcidas contra
quem as fazia.
Os bons sentimentos não fazem muito
sucesso em política. Há exceções: Nelson Mandela, Gandhi, Martin Luther
King lideraram revoluções em nome do
amor. Foram consagrados simbolicamente por isso, mas dois deles tiveram finais
bem infelizes. O amor em política exige algo como a santidade e o martírio.
Os motivos de quem vai protestar democraticamente no dia 15 podem ser legítimos, abstratos, virtuais ou psiquicamente particulares, podem até ser por "amor ao Brasil". Mas o efeito do evento será bem real e, sobretudo, destrutivo num momento de uma crise principalmente política. Será como jogar gasolina para apagar o fogo. As consequências são imprevisíveis. E não serão "dois minutos de ódio", mas o próprio Dia do Ódio.
Os motivos de quem vai protestar democraticamente no dia 15 podem ser legítimos, abstratos, virtuais ou psiquicamente particulares, podem até ser por "amor ao Brasil". Mas o efeito do evento será bem real e, sobretudo, destrutivo num momento de uma crise principalmente política. Será como jogar gasolina para apagar o fogo. As consequências são imprevisíveis. E não serão "dois minutos de ódio", mas o próprio Dia do Ódio.
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