Reinaldo
Lobo*
O preconceito, o ódio e a propaganda
maciça pelos meios de comunicação impedem muitas pessoas de enxergar as
nuances, os detalhes e as diferenças no cenário e na estrutura política do
País. O campo de visão fica nublado,
excludente. Escapam fenômenos mais amplos, que, às vezes, nem estão
ocultos, mas à vista de todos. È o caso, a meu ver, do Sistema
Empresarial-Burocrático-Político corrupto que transcende o governo atual, o PT
e os nomes habituais escolhidos pela mídia como espantalhos. O Sistema é
permanente, vem de longe -- o que não absolve os eventuais corruptos atuais. Só
explica melhor sua existência.
Esse Sistema é um modo de
funcionamento subjacente quase rotineiro da política nacional, onde existem
eleições formais sempre a serviço desse circuito que envolve empreiteiras,
firmas terceirizadas pelas empreiteiras, vários tipos de empresas privadas,
burocratas de autarquias, de empresas estatais, partidos e políticos. Às vezes,
chega a juízes ou a membros do Judiciário. Envolve caixa-dois dos partidos, sem
dúvida, mas não se restringe isso. É um modo de funcionamento institucionalizado,
ainda que mais ou menos informal e não explicitado publicamente.
Há uma mistura de contribuições legais
e de propinas que formam as célebres "sobras de campanha", termo
usado pelos políticos para designar o dinheiro que vai parar nos seus bolsos,
na compra de obras de arte ou de apartamentos para lavagem e outras aquisições
aparentemente legais. Uma vez, conheci um marchand de arte que se dizia
"especializado em clientes políticos", que compravam obras a granel,
contanto que fossem valiosas no mercado de arte e pudessem ser vendidas depois
por um preço compatível ao investimento ou mesmo maior. Os tais clientes do
marchand trocavam obras entre si, a fim de um lavar o dinheiro do outro.
Um banqueiro conhecido, Andrade
Vieira, dono do falecido Bamerindus, denunciou que na campanha de Fernando Henrique
Cardoso em 1994, houve uma "sobra" de cerca de 300 milhões de reais
(calculados a posteriori em reais) cujo destino permaneceria desconhecido até
hoje. Insinuou, então, que o dinheiro passou por Paris e estaria na Suíça ou em
algum outro "paraíso fiscal". Enquanto estava amigo de FHC Andrade
Vieira foi um dos coordenadores de sua campanha. Ficou inimigo quando o seu
Banco não teve a esperada retribuição pelo empenho, quase faliu e foi vendido
barato para o Banco de Boston. Houve processos sobre o assunto, mas acabaram
engavetados antes de chegar ao Supremo Tribunal Federal.
Por
esse exemplo fortuito, fica fácil entender como funciona o Sistema: empresas
investem num político e esperam plena retribuição. Quando não vem, passam para
outro ou denunciam as operações suspeitas do seu predileto anterior. Em muitas
ocasiões investem nos políticos dos dois lados rivais, como do PSDB e do PT,
para cobrar depois de quem vencer.
Como o alvo atual é Dilma ou o PT, passa
despercebido da opinião pública em geral que o Sistema é muito mais forte,
presente e tem um futuro pela frente, com ou sem Dilma ou o PT. Vai além deles
e de quaisquer outros partidos, pois funciona como um círculo vicioso acionado
pelo imaginário capitalista e pela ânsia de mobilidade social.
No imaginário capitalista, existe uma
crença profunda de que só quem tem dinheiro consegue o reconhecimento e tem
valor . Sem dinheiro, o individuo é quase nada perante a máquina da economia e
da sociedade. Quanto mais dinheiro, mais reconhecimento. Isso gera um
desespero, quase uma neurose , pela ascensão rápida. Quando o sujeito tem
poder, o acesso ao dinheiro é mais "fácil", basta burlar um pouco as
regras, pois parece absolutamente normal no seio do Sistema.
Num País em crescimento, qualquer brecha
para pular de uma classe social para outra do topo da pirâmide torna-se
atraente para quem está imbuído da ambição, da convivência com poderosos
empresários e está em posição de decidir lucros altos para essas empresas. Além
disso, ainda que não se tenha feito a conta, Brasília seguramente tem em
circulação um dos maiores números mundiais de lobistas de corporações privadas,
querendo influir no Legislativo, no Judiciário e no Executivo.
Os lobistas são uma peça fundamental do
Sistema. Levam e trazem informações privilegiadas e o combustível necessário
para fazer tudo andar : as maletas. Ficou famoso o caso dos Bancos que queriam
mudar a lei da habitação e os critérios de financiamento do antigo BNH, logo no
início do governo Collor. Alguns dos próprios donos de grandes bancos, vários
com ramificações em Nova York e na Europa, teriam levado pessoalmente as
maletas cheias de dinheiro, dólares, para membros do Judiciário e do Governo
Federal da época. O anfitrião teria sido Paulo César Farias, o lobista mor e
mentor na carreira política do atual presidente da Câmara Federal, Eduardo
Cunha.
A Lei foi corrigida a favor dos bancos, os preços dos financiamentos
imobiliários subiram astronomicamente e quem paga até hoje é o consumidor.
Assim caminha o Sistema.
Um paradoxo atual é que todo o movimento
de manifestações contra a corrupção, visando primariamente ao PT e à queda da
presidente Dilma, pode estar reforçando o núcleo político do Sistema que luta
para sobreviver a qualquer mudança nacional, como tem sobrevivido.
O escândalo da Petrobrás expôs, pela primeira
vez na nossa História, as empreiteiras
mais poderosas do País, que formam o núcleo econômico e financeiro do Sistema.
Outro pólo são os burocratas da Petrobrás, como Paulo Roberto Costa, figura
modelar cuja carreira iniciou na empresa estatal em 1978, ganhou força e
direção em 1995, e veio a público revelado como tomador de propinas em 2013/14.
Esse e outros estão na cadeia, pelo menos até receberam o prêmio pela delação.
Mas o pólo político, que envolve inúmeros partidos, inclusive três grandes como
PSDB, PMDB e PT ainda está relativamente
preservado. Uma parte dele, sobretudo dos dois primeiros, tem sido até
fortalecida à medida em que engrossa a campanha exclusivista contra o PT, como
se não compusesse a principal, mais forte e mais antiga peça do Sistema.
Com o apoio explicito da mídia
conservadora, personagens como Eduardo Cunha, presidente da Câmara, e Renan
Calheiros, do Senado, despontam como verdadeiras lideranças de oposição, como
se quisessem a oportunidade de substituir Dilma na presidência ou mesmo alijar
outros adversários de qualquer influência legítima no poder. Há um sério risco de o País mudar mais uma
vez para continuar até pior do que está, ficando completamente a serviço de uma
"nova" força política e tudo voltar ao normal. O normal é o que todos
os envolvidos querem de volta, a volta silenciosa e rotineira do Sistema.
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