Reinaldo Lobo*
"Primeiro a gente decide tudo entre nós
numa sala, depois convoca a reunião para
votar". Muitos talvez conheçam a frase do nosso folclore político.Os
jornalistas políticos se deliciam com ela. Uma versão mais explicada é assim: "Primeiro reunimos os chefes dos partidos
que importam e decidimos tudo, depois, marcamos democraticamente uma assembléia
para referendar".
As frases são atribuídas a Tancredo Neves, a velha
raposa do antigo PSD mineiro, e sua origem remonta aos tempos do período
ditatorial de Getúlio Vargas. O estilo é de Tancredo, sem dúvida. Faz parte não
só da tradição mineira, mas da política nacional. Mas esse método
anti-democrático e matreiro de realizar uma reunião que deveria ser democrática
ultrapassa a figura histórica de Tancredo.
A
forma autoritária do comportamento, essa visão-de-mundo cínica, a prática sem
cerimônia da cooptação são a maneira freqüente de se fazer política em escala municipal,
estadual e federal. Os sociólogos chamam esse "jeito", com razão, de
"pacto das elites", pois define uma acomodação para a governança dos
que estão por cima, dos chefes. O que vale não é a "formalidade" do
voto, mas a vontade dos que realmente mandam.
Vou chamar essa preferência política
nacional de "tancredismo". A sistemática foi sem dúvida inspirada na
vida, na história e nos pensamentos de Tancredo. No entanto, suas raízes têm
origem no coronelismo do mundo rural brasileiro, nos tempos em que o povo era
levado a votar naqueles que defendiam os interesses dos chefes locais e dos
latifundiários. Não por acaso, há uma
informação histórica, polêmica, de que a família Neves da Fontoura, dos avós de
Tancredo, foi a última a libertar os escravos em Minas, após a proclamação das
leis sancionadas pela Princesa Isabel. Seu compromisso foi originalmente não
com Tiradentes e a liberdade -- como proclamava Tancredo ao falar "de
Minas"--, mas um compromisso estreito com os poderosos do latifúndio,
inclusive escravocrata.
No Brasil é assim. Muitos dos que se
proclamam democratas vem do autoritarismo mais escachado, ainda que possam
ter-se convertido à retórica liberal. Os sociólogos já chamaram a atenção para
a contradição das idéias brasileiras fora do lugar, quando se defendia o
liberalismo ideológico e, de fato, praticava-se a escravidão.
O ponto central, no entanto, é um real
vício político que "pegou" e que transcende a figura pessoal de
Tancredo e de sua família. Esse vício torna nossa democracia uma colcha de
acordos de gaveta, cambalachos e corrupção.
O tancredismo está em toda parte. No
futebol, tem o nome de "tapetão", uma forma de ganhar jogos fora do
campo, onde as regras são claras. Essa política consiste também em achar
"brechas" nas legalidades, para fazê-las cumprir ao gosto do freguês.
Recentemente, o presidente da Câmara Federal, deputado Eduardo Cunha, não
escondeu seu intento de usar quaisquer filigranas legais para impedir que sejam
aprovados temas dos quais não gosta.
O presidente do Senado, Renan Calheiros, não
só declarou como fez. Devolveu ao Executivo, sem consultar os seus pares
formalmente, todas as matérias de iniciativa do Governo sobre as quais ele tem
opiniões particulares e não quer aprovar. Usou a sua "prerrogativa"
de presidente da Casa. Não fez a menor questão de esconder seu veto a nomes
indicados para assumir cargos na Justiça, chantageando assim o governo.
Um detalhe interessante é que ambos ,
Campos e Calheiros, foram cumprimentados efusivamente pelo líder da oposição,
por acaso o neto de... Tancredo Neves. A imprensa conservadora, que tem
restrições "morais" a Cunha e Renan, elogiou as atitudes de ambos,
por sua coragem e seu caráter "democrático". Ambos viraram
verdadeiros heróis da resistência ao governo Dilma e ao PT.
Ninguém assinalou com firmeza que Cunha
seduziu parlamentares com mordomias. dinheiro e sinecuras para obter votos
favoráveis às suas decisões "evangélicas" contra descriminalização do
aborto, pela restrição aos direitos da
comunidade LGBT e, sobretudo, para conseguir distorções na Comissão de Justiça
da Câmara, a fim de fazer passar a redução da maioridade penal, algo que viola
cláusulas pétreas da Constituição.
Essas decisões do legislativo são "normais",
foram tomadas por minorias e conquistaram a maioria "na hora da reunião
formal". Isso é o tancredismo.
Não se refere só à oposição e ao PMDB. Os
governos de Lula e de Dilma fizeram uso do método. É quase generalizado,
percorre os partidos e, implicitamente, a própria mentalidade política
nacional. Agora só está mais explícito e "naturalizado", pois tem o
apoio da imprensa. Como bem diz o fotógrafo Sebastião Salgado, temos no Brasil,
hoje, um fenômeno dos últimos doze anos
: pela primeira vez, a imprensa não
apóia o governo. A grande imprensa, com
raras exceções de independência, fica sempre com os poderosos, o que é outra faceta do pacto das cúpulas.
A "filosofia" do tancredismo é
baseada no culto das idéias de conciliação e de moderação. Não foi um acaso Tancredo
ser chamado para aplacar os militares em 1961, servindo-os como primeiro ministro
da fórmula parlamentarista. Funcionou como ponte para conter o trabalhista Jango
e como garantia de redução da força dos "radicais"-- o próprio Jango
e a esquerda, segundo a ótica dos militares.
Serviu aos militares também em outra
transição, na campanha pela presidência em 1984, quando foi de um oportunismo
exemplar. Compareceu a todos os comícios das diretas, que sabia muito
improváveis, enquanto articulava, ao mesmo tempo, sua escolha pelo Colégio
Eleitoral indireto, da Ditadura. Esta vitória estava garantida com o apoio dos
poderosos de então, inclusive do seu célebre aliado ACM, Antonio Carlos Magalhães, ex-governador
da Bahia e ex- ministro. Apoiou igualmente
a "lei de Anistia", mesmo sabendo que salvava da cadeia os
torturadores.
Nosso herói Tancredo dizia: "Se é
mineiro não é radical, se é radical não é mineiro". Esse ditado ideológico,
aparentemente regional, deve ser ampliado a todo político brasileiro, a maioria
deles viciada em girar em torno do
extremo centro. Celso Kassab, ex-prefeito de São Paulo e hoje cacique de uma
nova versão do "PSD", percebeu que o caminho do centro é o da
oportunidade. E vai em frente.
Como dissemos, o tancredismo não é Tancredo.
Esse teve, bem ou mal, um papel
histórico na redemocratização em 1985. Mas a sua herança é maligna na medida em que seu método se generalizou,
faz parte de nossa cultura política. Quem não se lembra de Lula, em seu
primeiro mandato, dizendo para agradar aos poderosos do Sistema: "Nunca
disse que sou de esquerda"?
Como assim? Isso foi tancredismo puro.
Será
que nossos heróis se resumem mesmo a um só, o arquetípico Macunaíma?
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