Reinaldo Lobo*
O custo de uma crise econômica não se
mede em cifras, números ou diagnósticos econômicos. Por mais que o empresariado
e os governos apresentem as crises como fatos inevitáveis, quase naturais, dos quais todos parecem vítimas de uma
estranha "racionalidade" do sistema financeiro e industrial, o seu
cálculo deve ser avaliado em sofrimento humano.
Uma crise impõe às pessoas dor mental e
física. A banalização das tormentas provocadas pelos ciclos do capitalismo
esconde uma face sinistra, que é a incidência da insegurança e precariedade
sobre os seres humanos. Depressão, suicídios , doenças psicossomáticas,
impotência sexual e perda de sentido na vida -- são algumas das conseqüências
mais freqüentes dos períodos de recessão.
Durante a devastadora crise argentina de
2001/2002, quando ocorreram inúmeros suicídios, saques e violência, uma psicanalista já falecida,Silvia Bleichmar,
bastante conhecida e respeitada na
época, propôs num artigo de jornal que
as autoridades parassem de falar apenas em PIB, Índices de Preços, Taxas
de Juros, e considerassem a elaboração de
uma espécie de ISH, Índice de
Sofrimento Humano . A idéia é sugestiva.
Fala-se da crise como se fosse uma
fatalidade, algo como um terremoto que
se abate de tempos em tempos sobre todos
nós. Sabemos que as crises econômicas não são um acidente, mas o resultado de
um sistema econômico existente e o efeito de políticas públicas. Implicam em
escolhas, decorrem também de erros dos governantes e do caminho selecionado
para conduzir uma sociedade.
A cruel política de "austeridade"
que está sendo imposta ao Brasil neste momento não é algo "racional",
mas uma estratégia de conseqüências destrutivas, sobretudo, para as pessoas.
O capitalismo orienta-se pela lógica do
Capital, mas na crise os seres humanos perdem muito mais do que dinheiro.
Perdem a segurança, muitas vezes dissolve-se
a estrutura familiar, perdem a dignidade e até a identidade. Desabam certos
mecanismos de defesa justificadores que fazem os trabalhadores terem resiliência
ou tolerância ao sofrimento implícito no processo produtivo. A racionalização,
a negação, as compensações de lazer, as válvulas de escape para a humilhação
cotidiana e o stress -- tudo isso cai por terra e o que aparece na vida
psíquica é o medo, em alguns casos
desespero, a violência e os "actings outs" (atuações fora de
conflitos internos).
Perder o emprego é humilhante. Para
qualquer trabalhador, seja da classe
média ou operário, significa uma ameaça à sua dignidade pessoal e ao seu
reconhecimento público como cidadão. Ao
ocupar um lugar na cadeia produtiva ninguém pretende "servir ao
patrão", mas está em busca de uma "realização pessoal" e também
do reconhecimento pessoal na intimidade dos mais próximos, da família, bem como
da sociedade.
Há toda uma psicopatologia do trabalho, tão
bem estudada por autores como o francês Christophe Dejours, assim como existem
as doenças decorrentes da perda do trabalho. São freqüentes os casos, inclusive
entre executivos, de homens e mulheres que chegam aos consultórios médicos e
psiquiátricos com sintomatologias difusas, que não entendem --como alheamento,
perda de identidade e distúrbios sexuais--, desencadeadas depois que
"saíram do mercado".
Ao perderem o emprego de uma empresa com a
qual estavam acostumadas ou se identificavam, as pessoas não deixam apenas de
ganhar dinheiro ou de "vestir a camisa" do seu time de
atividade. Em muitos casos em que há algum grau de desequilíbrio que fora
disfarçado pela própria atividade, essas pessoas são levadas a uma
perturbação esquizóide, paranóide ou de desrealização. Em outros
casos, homens passam a se sentir "castrados".Há situações nas quais a
identidade dos indivíduos está tão colada ao papel que ocupa no trabalho que,
ao serem postos para fora (mesmo em eventual demissão coletiva por crise),
sentem que perderam a própria individualidade. Simplesmente passam a sentir que não são nada.
Ninguém. E se "defendem" com mais mecanismos patológicos e sintomas.
As crises econômicas destinam-se não à
destruição de riquezas, mas á sua redistribuição. Em cada crise existem sempre
alguns que ganham mais em detrimento de outros. Como lembra o sociólogo Zygmunt
Bauman, estudioso da modernidade, após a crise de 2008 nos EUA, após a lenta
recuperação da economia produziu-se um
PIB adicional, do qual 93% dele beneficiaram somente 1% da população.
O ápice da crise não é um sintoma, mas a
própria doença do sistema econômico em
ação. O capitalismo precisa de crises periódicas para poder funcionar , abrindo
constantemente novas "áreas virgens" de mercado. Na fase de
implantação do grande capital monopolista, as guerras mundiais cumpriram esse
papel de reordenação dos mercados. Hoje,
o capital financeiro e de serviços recicla-se como se fora uma "revolução
permanente", destruindo muitos recursos e criando novos.Estimula o mito do
crescimento infinito e do consumo irrefreável. Tudo fica rapidamente obsoleto e
os objetos se renovam.
Só que , no meio disso tudo, estão os
seres humanos.