terça-feira, 11 de agosto de 2015

UM LIVRO INQUIETANTE

   
                                                                             Reinaldo Lobo*
       Que tempo é esse em que vivemos? Quando começou, quais as suas linhas de ruptura e quando desandou? É um tempo planetário , global, ou fragmentário? Obedece a uma lógica dialética marxiana ou constitui um acidente histórico? Pura contingência?
       Que sociedade é essa,  em  estado de guerra civil permanente e  belicismo internacional, que parece ter um fio condutor unindo tudo:  extermínio colonial, campos de concentração, crises econômicas, escassez, a destruição da natureza, o colapso urbano, a ameaça de hecatombe nuclear , desemprego em massa, o sofrimento no trabalho, a exploração humana para a produção incessante de mercadorias, o medo crescente do futuro -- tudo isso ao lado da criação de tecnologias cada vez mais avançadas de administração da vida?
     O diagnóstico do filósofo Paulo Arantes, autor de "O Novo Tempo do Mundo" (Boitempo Editorial, 2015) é severo e peremptório -- essa é a natureza da sociedade moderna, que obedece a um ritmo e a uma temporalidade próprias. Uma sociedade que emergiu com o capitalismo, vive em regime permanente de crise e de destruição e que se alimenta disso.
      O texto de Arantes não é muito fácil para quem não está familiarizado. Autor de obras anteriores como "Hegel: a Ordem do Tempo" e "Extinção", seu procedimento dialético está contido no próprio discurso, marcado por uma considerável erudição e referências precisas. Já foi definido como um processo de pensamento em cascata, como se as palavras se derramassem em cachoeira. Às vezes, uma nota de rodapé é tão significativa quanto os longos parágrafos, cifrados por uma ironia fina e crítica. Certa vez, Bento Prado Jr. definiu o estilo de sua prosa como tendo sempre "algo de críptico, de elíptico  e de alusivo, que desnorteia o leitor", assinalando o que também dissemos acima, isto é, que o estilo é "expressão da matéria" de que trata.  Vale a pena o esforço de leitura.
      O prefaciador da obra, Marildo Menegat,  aponta que os escritos de Arantes  podem ser pensados como "uma das formas possíveis da teoria crítica, quando o mundo já não se apresenta em linhas bem armadas de encadeamentos progressivos quase óbvios". Sem dúvida, seu pensamento pertence à linhagem da teoria crítica, inspirada em autores da chamada escola frankfurtiana-- talvez tocado, salvo engano,  mais por Walter Benjamin do que Theodor Adorno ou Max Horkheimer. Tem, contudo, algo em comum com todos: o interesse pela negatividade, o proverbial laivo de pessimismo , a influência hegeliano-marxiana e a recorrência de uma problemática crítica encontrada no "jovem Marx".
      Há, contudo, algo de muito singular nos textos de Arantes, notável pelo menos desde o "Sentimento da Dialética", o "Ressentimento da Dialética" e o "Fio da Meada" --  é o seu traço 'brasileiro', de força literária , e também o seu encontro destemido e firme com a 'prática". Isso o torna muito diferente de autores mais teoricistas e abstratos, como o outrora estudioso de Marx, José Arthur Giannotti. Além disso, penso que há um fio de Ariadne em toda a sua obra:   a questão da temporalidade como ponto de partida e de chegada. Arantes busca e persegue a linha e a natureza do tempo como o processo que dá sentido e tecido à História.
       As entrevistas contidas neste livro inquietante  também mostram o lado militante de Arantes,  seu diálogo com grupos de teatro, seu respeito pelos movimentos sociais, seu confronto com os fatos de junho de 2013.  Revelam outra diferença em relação  aos frankfurtianos clássicos, que pareciam limitar-se à  espera passiva da negação da negação e a comprazer-se com o pessimismo, a melancolia e o exercício da  crítica literária e musical. Ao capitalismo nascido na promessa de felicidade e liberdade e tornado barbárie, boa parte do pensamento frankfurtiano ainda hoje limita-se a contrapor o desânimo diante da barbárie. Só enxerga a desesperança e não vê saída além dela.
       Arantes vai além: detecta esperança no "Occupy Wall Street", no "Podemos", no Syriza, na juventude que vai às ruas pelo Passe Livre, em rebeliões como a Primavera Árabe e em eclosões episódicas de negatividade anti-capitalista.
      Um outro interesse desta obra densa é o de ser um contraponto eficaz ao "pensiero debole" (Gianni Vattimo), que concebe uma superação da modernidade por uma suposta "pós-modernidade", onde os contrários se reconciliariam no bojo do status quo, na complacência em face da barbárie e na qual a liberdade iria imperar, finalmente, na forma de expressão cultural. Fruto do cinismo neoliberal, a ideologia da "pós-modernidade" esconde o quadro de conflitos, de violência e mascara uma época do capitalismo em que se tornaram inevitáveis as expectativas decrescentes.

       O quadro da contemporaneidade é, sem dúvida,  assustador. É a era das distopias. Nas telas dos cinemas, zumbis e dráculas. No mundo do trabalho, opressão e insegurança mal disfarçadas. Na sociedade, crises sucessivas e guerras  intermináveis.  Tudo parte de um tempo global de natureza ora bélica, ora de doença social crônica. Nas ruas, seres humanos ameaçados de extinção, isto é, em vias de se tornarem menos do que zumbis e dráculas. Ao mesmo tempo, porém, uma sociedade onde as pessoas nunca se casaram tanto, independente do gênero, onde a comunicação estendeu-se em escala planetária e a juventude busca avidamente livros e sinais de um novo tempo. Que sociedade é essa? Que destino terá?

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