Reinaldo Lobo*
Que
tempo é esse em que vivemos? Quando começou, quais as suas linhas de ruptura e
quando desandou? É um tempo planetário , global, ou fragmentário? Obedece a uma
lógica dialética marxiana ou constitui um acidente histórico? Pura
contingência?
Que
sociedade é essa, em estado de guerra civil permanente e belicismo internacional, que parece ter um
fio condutor unindo tudo: extermínio
colonial, campos de concentração, crises econômicas, escassez, a destruição da
natureza, o colapso urbano, a ameaça de hecatombe nuclear , desemprego em
massa, o sofrimento no trabalho, a exploração humana para a produção incessante
de mercadorias, o medo crescente do futuro -- tudo isso ao lado da criação de
tecnologias cada vez mais avançadas de administração da vida?
O diagnóstico do filósofo Paulo Arantes,
autor de "O Novo Tempo do Mundo" (Boitempo Editorial, 2015) é severo
e peremptório -- essa é a natureza da sociedade moderna, que obedece a um ritmo
e a uma temporalidade próprias. Uma sociedade que emergiu com o capitalismo,
vive em regime permanente de crise e de destruição e que se alimenta disso.
O texto de Arantes não é muito fácil para
quem não está familiarizado. Autor de obras anteriores como "Hegel: a
Ordem do Tempo" e "Extinção", seu procedimento dialético está
contido no próprio discurso, marcado por uma considerável erudição e
referências precisas. Já foi definido como um processo de pensamento em
cascata, como se as palavras se derramassem em cachoeira. Às vezes, uma nota de
rodapé é tão significativa quanto os longos parágrafos, cifrados por uma ironia
fina e crítica. Certa vez, Bento Prado Jr. definiu o estilo de sua prosa como
tendo sempre "algo de críptico, de elíptico e de alusivo, que desnorteia o leitor",
assinalando o que também dissemos acima, isto é, que o estilo é "expressão
da matéria" de que trata. Vale a
pena o esforço de leitura.
O prefaciador da obra, Marildo
Menegat, aponta que os escritos de
Arantes podem ser pensados como
"uma das formas possíveis da teoria crítica, quando o mundo já não se
apresenta em linhas bem armadas de encadeamentos progressivos quase
óbvios". Sem dúvida, seu pensamento pertence à linhagem da teoria crítica,
inspirada em autores da chamada escola frankfurtiana-- talvez tocado, salvo
engano, mais por Walter Benjamin do que
Theodor Adorno ou Max Horkheimer. Tem, contudo, algo em comum com todos: o
interesse pela negatividade, o proverbial laivo de pessimismo , a influência
hegeliano-marxiana e a recorrência de uma problemática crítica encontrada no "jovem
Marx".
Há, contudo, algo de muito singular nos
textos de Arantes, notável pelo menos desde o "Sentimento da
Dialética", o "Ressentimento da Dialética" e o "Fio da
Meada" -- é o seu traço
'brasileiro', de força literária , e também o seu encontro destemido e firme
com a 'prática". Isso o torna muito diferente de autores mais teoricistas
e abstratos, como o outrora estudioso de Marx, José Arthur Giannotti. Além
disso, penso que há um fio de Ariadne em toda a sua obra: a questão
da temporalidade como ponto de partida e de chegada. Arantes busca e persegue a
linha e a natureza do tempo como o processo que dá sentido e tecido à História.
As entrevistas contidas neste livro
inquietante também mostram o lado
militante de Arantes, seu diálogo com
grupos de teatro, seu respeito pelos movimentos sociais, seu confronto com os
fatos de junho de 2013. Revelam outra diferença
em relação aos frankfurtianos clássicos,
que pareciam limitar-se à espera passiva
da negação da negação e a comprazer-se com o pessimismo, a melancolia e o
exercício da crítica literária e
musical. Ao capitalismo nascido na promessa de felicidade e liberdade e tornado
barbárie, boa parte do pensamento frankfurtiano ainda hoje limita-se a
contrapor o desânimo diante da barbárie. Só enxerga a desesperança e não vê
saída além dela.
Arantes vai além: detecta esperança no "Occupy
Wall Street", no "Podemos", no Syriza, na juventude que vai às
ruas pelo Passe Livre, em rebeliões como a Primavera Árabe e em eclosões
episódicas de negatividade anti-capitalista.
Um outro interesse desta obra densa é o
de ser um contraponto eficaz ao "pensiero debole" (Gianni Vattimo),
que concebe uma superação da modernidade por uma suposta
"pós-modernidade", onde os contrários se reconciliariam no bojo do
status quo, na complacência em face da barbárie e na qual a liberdade iria
imperar, finalmente, na forma de expressão cultural. Fruto do cinismo
neoliberal, a ideologia da "pós-modernidade" esconde o quadro de
conflitos, de violência e mascara uma época do capitalismo em que se tornaram
inevitáveis as expectativas decrescentes.
O quadro da contemporaneidade é, sem
dúvida, assustador. É a era das
distopias. Nas telas dos cinemas, zumbis e dráculas. No mundo do trabalho,
opressão e insegurança mal disfarçadas. Na sociedade, crises sucessivas e
guerras intermináveis. Tudo parte de um tempo global de natureza ora
bélica, ora de doença social crônica. Nas ruas, seres humanos ameaçados de
extinção, isto é, em vias de se tornarem menos do que zumbis e dráculas. Ao
mesmo tempo, porém, uma sociedade onde as pessoas nunca se casaram tanto,
independente do gênero, onde a comunicação estendeu-se em escala planetária e a
juventude busca avidamente livros e sinais de um novo tempo. Que sociedade é essa?
Que destino terá?
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