Reinaldo Lobo*
As pessoas estão mais preocupadas com
a bunda da Kim Kardashian do que com as brutalidades do Estado Islâmico, afirma
a escritora e feminista norte-americana Camille Paglia, o furacão pensante que
veio pela nona vez ao Brasil e deu uma
interessante entrevista ao suplemento "Aliás", do Estadão.
Crítica
feroz da alienação da sociedade contemporânea, a autora de "Personas
Sexuais", "Vadias" e outros ensaios tão brilhantes quanto
polêmicos, Camille Paglia fala como uma metralhadora. Dispara.
Seu estilo lembra muito o daquele filósofo leninista lacaniano,
Slavoj Zizek, de origem eslovena, cujos
diagnósticos sobre a contemporaneidade são tão peremptórios e incisivos quanto
os dela. Ambos, cada um a seu modo, descrevem as mazelas da modernidade com
alguma precisão e muito pessimismo, mas têm dificuldades de apresentar
soluções. Diz ela: "Estamos caminhando para a morte, ou melhor, para o
suicídio da civilização ocidental.[...] Sinto que a classe média próspera está numa
bolha em relação à instabilidade internacional, do terrorismo ".
A ênfase de Paglia é na critica à
tecnologia eletrônica e à realidade virtual, que estariam facilitando por
demais a vida da classe média dos países desenvolvidos. Diz ainda mais:
"As pessoas não querem dificuldades,
não querem se sentir deprimidas.E deixam de fazer reflexões importantíssimas.
Precisamos reaprender a contemplar a arte para sobrevivermos na era da vertigem.
As crianças , principalmente, merecem ser salvas do redemoinho de imagens que
hoje fazem a realidade, com suas tarefas e preocupações, parecer uma coisa
fútil e menor".
A caracterização de uma Era da Vertigem
pode ser correta. É um dos nomes da época em que vivemos --pós-modernidade,
modernidade líquida, sociedade do espetáculo, capitalismo avançado, modernidade
singular, etc. A expressão descreve bem a velocidade e a torrente de imagens no
meio das quais estamos mergulhados. Somos atravessados por informações e
figuras veiculadas por mídias cada vez mais rápidas e perecíveis. Uma figura
substitui ou se converte em outra, um novo meio técnico é inventado a cada dia.
A imagem de um menino sírio morto numa praia turca "viralizou-se" de
tal maneira no mundo inteiro que acolher os refugiados da guerra civil na Síria
se tornou ... moda.
A sociedade da Vertigem funciona assim. Não
dá para dizer que estamos numa nova estrutura social diferente do capitalismo,
uma vez que permanecemos submetidos ao consumo irrefreável e ao mito do
crescimento econômico interminável. Mas existe, sem dúvida, algo que poderíamos
chamar de "pós-industrial" nessa era vertiginosa. Não é mais uma sociedade puramente
industrial, onde predominavam as fábricas com aquelas colunas de chaminés
fumegantes e o sistema taylorista de trabalho das linhas de produção. Hoje
existem empresas que começam a funcionar automatizadas diariamente, apenas com
a inserção de um cartão com chip,. Só que continuam essencialmente desiguais os
métodos de apropriação dos meios de produção, da renda, da distribuição do
capital e das classes sociais.
Houve algo como uma inversão do esquema da
sociedade, onde o saber e a informatização tornaram-se a nova infra-estrutura.
Como lembrou o filósofo Michel Serres, a ciência entrou diretamente para o rol
da produção e da reprodução do capital.
Camille Paglia não está especificamente
interessada na descrição sócio-econômica dessa nova estrutura, mas em seus
efeitos na cultura, que está fragmentada e à deriva. Dirige-se ao público
privilegiado da próspera classe média dos países desenvolvidos e adverte com
seu prognóstico: esse universo está-se tornando autista e vai-se auto-destruir.
O remédio que aponta é fraco. Propõe a
reflexão como antídoto para essas elites culturais, como se pudessem se
interessar por repensar o próprio meio em que afundam. Acha que a única solução é
pela arte, isto é, uma nova forma de pensar a arte que poderia nos levar a
todos a uma espécie de purificação perceptiva e estética. Essa solução é
compreensível numa intelectual que se dedica a ensinar cultura e literatura
numa universidade norte-americana. E
que, apesar de gostar da sensualidade brasileira e desta nossa parte do
mundo, ainda não parece ter compreendido que o sistema capitalista é ligado à
miséria dos outros, não apenas a uma classe média próspera e desenvolvida.
Sua solução da salvação pela arte é tão
simples e ingênua, a meu ver, quanto a fórmula de Slavoj Zizek para resolver as
contradições da sociedade ocidental : voltar ao comunismo, por meio de uma
mudança do tipo leninista-stalinista. Quem leva isso a sério?
Fato é que ainda não temos a saída visível
para essa sociedade que caminha, é verdade, por sendas perigosas e produz o
aumento da alienação, ao lado de invenções tecnológicas extraordinárias. Como
dizia um filósofo alemão do século XIX, se tudo o que é sólido desmancha no ar,
também é legítimo esperar que o incremento sem igual das forças produtivas leve
à criação de um novo mundo.
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