Reinaldo Lobo
Casamento e religião estão unidos há
muitos séculos, até que a morte os separe. Não é nada de novo. Já um livro de
auto-ajuda evangélico -- "Casamento Blindado- O seu casamento à prova de
divórcio"-- para administrar o "empreendimento" que é a vida dos
casais significa, que eu saiba, uma novidade aqui no Brasil.
Quando seus autores , Renato & Cristiane
Cardoso (apresentados assim mesmo, com o "&" de sociedade
comercial), informam que venderam mais de 2 milhões de exemplares, pode-se
dizer que essa obra é um fenômeno editorial.
O sucesso vem acompanhado de um programa de TV, "The Love School -
A Escola do Amor", que passa na rede evangélica do bispo Edir Macedo.
O casal globe-trotter viveu nos EUA e, possivelmente,
aprendeu lá os métodos de ganhar dinheiro com auto-ajuda. Também morou em mais
dois países e percorreu pelo menos 30 outros fazendo palestras, por vinte anos,
para ensinar a performance do casamento "blindado" contra o Mal. Se é
preciso "blindar" um casal é porque o vínculo é muito frágil diante
dos "perigos" da sociedade moderna.
O
Mal é -- acreditem-- o Facebook, que teria provocado o crescimento do número de
divórcios. É também a independência excessiva das mulheres, sobretudo as
jovens, que estariam traindo em grandes proporções, além das tentações da
pornografia: segundo uma pesquisa norte-americana, citada por eles, até mesmo 54% dos pastores
cristãos viram exibições pornográficas nos doze meses pesquisados e uma outra
revelou que, entre os fiéis cristãos nos EUA, 50% dos homens e 20% das mulheres
na igreja eram viciados em pornografia.
A dupla está assustada com os "novos desafios"
que "nenhuma geração antes conheceu",
como a internet, as redes sociais , as novas tecnologias de comunicação,
o celular, o MSN, o SMS, a proliferação da indústria pornô, o "avanço da
mulher na sociedade" que a tirou da "bíblica submissão" ao
homem, a facilitação do divórcio e outros fenômenos, como a mudança dos valores
e dos gêneros no interior da família.
Dizem Renato & Cristiane e vale a pena
citá-los literalmente: "Mark Zuckerberg,
criador do Facebook, é um dos maiores destruidores de lares na Grã-Bretanha.
Segundo estudo divulgado pelo site especializado em divórcios Divorce-Online, o
Facebook é citado como motivo de uma em cada três separações no país. Cerca de
1.700 dos 5 mil casos mencionaram que mensagens inadequadas para pessoas do
sexo oposto e comentários de ex-namoradas (os) no Facebook foram causas de
problemas no casamento. Em 2011, a Associação Americana dos Advogados
Matrimoniais (AAML) divulgou que o
Facebook é citado em um de cada cinco divórcios".
O que Mark Zuckerberg tem exatamente com
isso? Será que adiantaria dizer ao ilustre casal que os meios de comunicação em
geral, não só o Facebook, apenas facilitaram o contato mais direto e rápido
entre as pessoas? E que a decisão de usar esses meios virtuais para fins
amorosos depende de cada indivíduo e de sua escolha?
A visão de mundo ameaçadora do casal
parte do pressuposto de que o aumento da autonomia, sobretudo das mulheres,
deixa todos expostos a uma tal fragilidade que os seus desejos e ações precisam
ser controlados e educados, para que façam as "escolhas certas". As
mulheres, desde Adão e Eva, levam a culpa.
Os
direitos e a liberdade individual não contam, pois os seres humanos estariam
sempre sujeitos ao Mal. Há uma concepção
de uma natureza humana maliciosa,
incapaz e infantilizada por trás da "ajuda" oferecida por
Renato & Cristiane. Pertence a uma pedagogia cristã, é verdade, mas
fundamentalista e prescritiva.
A performance do casal exemplar
aparece como modelo de comportamento a
ser aplicado para a salvação de todos, principalmente os que se sentem
ameaçados pelas mudanças da sociedade contemporânea. Um detalhe curioso :
apesar da tecnofobia dos pregadores moralistas, a grande maioria das citações
bibliográficas do livro são de sites, blogs e twites. Prestam assim uma
homenagem involuntária aos meios que abominam, reconhecendo que tudo depende do
uso que se faz deles.Não há "imoralidade" do meio técnico, mas uma
função comunicativa. E eles a utilizam para divulgar sua mensagem persecutória
a fim de amedrontar e adestrar os casais.
A fórmula é bem simples. Basta evitar as
tentações do mundo atual para que o Bem se instaure e advenha a Felicidade
conjugal. Mas como evitar a atração do "pecado", mantendo intacto o
elo conjugal? É aqui que entram as instruções preconceituosas. Dona Cristiane se dirige às mulheres
incitando-as a tomarem cuidado com as
amigas e as outras mulheres, pois representam o perigo de infidelidade do
marido. O conselho é que, uma vez
casada, a mulher deve voltar-se para a missão de suprir as necessidades do seu
homem, não dando chance ao acaso. Não se pode "dar mole" .
Primeiro, a esposa precisa evitar manter
amizades com mulheres em geral, as solteiras em particular. Deve ter o marido
como o único , verdadeiro e melhor amigo -- diz ela.
Segundo, a mulher "naturalmente gosta
desabafar , contar a razão de seus estresses para a amiga, a mãe, ou outra
confidente. Aí está o perigo : revelar pontos negativos do marido para outras
pessoas. Em vez disso, seja a embaixatriz de seu marido. Represente-o bem e
reforce assim o respeito por ele". Além
disso, precisa descobrir as necessidades reais do marido, sejam estéticas,
sexuais ou afetivas,para atendê-las prontamente. Mas deve evitar atividades
sexuais "contra a natureza", como o sexo anal e quaisquer outras
variações.
O que tem atrapalhado a mulher --diz a
dupla de autores-- é se preocupar em estar bem de um modo geral, ocupando um
lugar na sociedade e no trabalho, esquecendo-se de que o marido, segundo a
Bíblia , é o líder a ser seguido. Mas esse líder tem de ser, como Renato, alguém
que cuida e se preocupa com seus
liderados. Portanto, o homem deve cuidar bem da mulher.
Essa ética do senso comum não vê paradoxos
na monogamia, que exige, é verdade, uma espécie de "fé" na sua
própria existência, mas que implica sempre a presença da infidelidade e a
existência de um terceiro. Dois formam um par. Para haver um casal -- pelo
menos no plano do inconsciente-- é preciso três. O terceiro excluído é, ao
mesmo tempo, a sombra incluída em todo casal. Quanto maior a tentação de ceder
ao outro fantasiado, maior deve ser a blindagem do casamento.
Qualquer tipo de complexidade escapa a essa ética maniqueísta. O casamento é como uma "empresa" que
precisa ser bem administrada , dizem os sócios Renato & Cristiane. E uma
empresa elimina seus concorrentes. Simples
assim.
Os autores não se perguntam seriamente por
que as pessoas "devem" permanecer juntas. O desígnio vem dos céus e
do clichê : o amor tudo resolve. Cristo é amor. Cristo assim quer. O casamento
não tem a História por trás e a família deve ser sempre a mesma, ainda que, de
fato, venha mudando desde a Antiguidade.
Esse livro deve ser lido como um sintoma.
É uma defesa paranóide mal construída contra o desamparo, a solidão e a
perplexidade diante de um mundo em rápida mutação. Renato & Cristiane são a
nostalgia da família patriarcal burguesa do século XIX, apresentada por meios
modernos. Seu discurso tem a audiência cativa dos que entregam sua fragilidade
à manipulação da "salvação" messiânica. E pagam por isso.
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