Reinaldo Lobo
O aniversário de 50 anos da revolução
francesa de Maio de 1968, data já inscrita na História, não será festejado em
muitos lugares. É fácil de compreender. Há uma onda de conformismo conservador
mundial, a mídia comercial e os governos não se interessam tanto por relembrar
fatos incômodos, pois uma verdadeira brecha se abriu naquela ocasião no núcleo
do capitalismo mundial.
Por um curto período, o mundo parou para
assistir aos “acontecimentos de Paris” e entreviu uma amostra do que poderia
ser o futuro de solidariedade e de liberdade para a Humanidade. Um grupo de
estudantes deu início em fins de abril daquele ano a pequenas manifestações
contra o capitalismo burocrático francês que se tornariam, em maio, uma
verdadeira revolução, com greves operárias generalizadas, tomadas de fábricas,
ocupação de universidades, paralisia da política tradicional e bloqueios da
ação policial e militar, atingindo os negócios, o comércio e o próprio governo.
Ao mesmo tempo em que atacavam as
instituições do poder, os estudantes, trabalhadores e cidadãos em geral que
saíam às ruas cantando hinos libertários e portando cartazes criativos,
ofereciam novas formas de solidariedade social, e ações mobilizadoras de
autogoverno. Espalharam ideias de autogestão, cooperativismo e democracia
direta por toda a França, com repercussões na Europa, na Ásia e nas Américas. Propunham
igualmente novas formas de relações pessoais, menos alienadas ou robotizadas
pelo universo do trabalho capitalista, com a defesa do amor livre, da
imaginação criadora, da arte e da participação de todos, com respeito à
diversidade e ao outro.
Os manifestantes de Paris tiveram a adesão
das centrais operárias tradicionais, mas criticavam igualmente a esquerda
clássica, autoritária, ligada aos totalitarismos soviético e chinês,
conservadora sob muitos aspectos, incapaz de sair dos moldes da burocracia sindical,
acomodada e adaptada ao sistema capitalista.
A revolução foi derrotada? Sim e não. Na
visão comum tradicional da política, o movimento deveria tomar o poder no
estilo dos golpes de Estado ou das revoluções russa e chinesa, com a tomada de
palácios, o que não aconteceu. O movimento foi sobretudo espontâneo, inesperado
e , até certo ponto, apenas pedagógico. Não tinha uma lista de finalidades e de
estratégias de domínio. Além disso, o mais importante é que procurava oferecer
alternativas ao poder, propondo uma direção da sociedade política orientada de
baixo para cima. Uma sociedade mais horizontal do que vertical e hierarquizada.
Um outro ponto central era demonstrar as possibilidades organizacionais da
sociedade em função da preservação do meio ambiente, da defesa dos Direitos
Humanos e da igualdade de direitos para as raças e os sexos. Tudo isso era
muito novo, como por exemplo, a explosão do feminismo, e abalou as relações
sociais naquele momento do século XX, quando havia uma sociedade francesa e
europeia conservadora na esfera comportamental.
Maio de 68 foi sintonizado, no espírito
do tempo, com as inúmeras rebeliões
negras nos EUA, com a resistência contra guerra do Vietnã e a luta contra as
ditaduras latino-americanas e africanas. Personagens como Daniel Cohn Bendit,
Ernesto Che Guevara, Patrice Lumumba e Ho Chi Minh têm efígies semelhantes,
ainda que não idênticas, no registro da História. Todos defenderam revoluções
populares e anticapitalistas. Nem todos foram “vencedores” no sentido
tradicional da palavra, mas simbolizam até hoje os sonhos de emancipação e de
igualdade.
A
“Nova Desordem”, como disse uma vez Claude Lefort, representou uma ruptura nas
identidades políticas , sociais e até pessoais, ao ponto de ter-se tornado
difícil classificar com precisão sociológica o que houve exatamente. Com o
tempo, começaram as reinterpretações dos acontecimentos e de seu significado.
Os mais conservadores julgaram que foi
apenas uma crise episódica, vencida manu militari pelo governo gaullista. Mas
surgiram também os historiadores revisionistas , estes mais sutis, como Luc Ferry, que virou ministro da Educação
de Sarkozy, de direita, Alain Renaut,
filósofo neoliberal e Gilles Lipovetsky, que fez sucesso na onda
“pós-modernista” com sua “Era do Vazio”.
Todos esses autores tentaram estabelecer
uma ponte entre Maio de 68 e um suposto “Pensamento 68”, que incluiria todo o
pós-estruturalismo francês e até mesmo os ideólogos midiáticos autointitulados
“novos filósofos”, pois essas duas vertentes representariam uma espécie de
“superação do marxismo”. Ou seja, procuraram desidratar o anti-capitalismo do
movimento, reduzindo-o a um fenômeno (pós)marxista, para poder situá-lo,
paradoxalmente, à direita.
Mesmo criticando o que chamaram de
“pensamento 68”, pois ainda conteria elementos antiliberais, os autores citados
acima deduziram do movimento e da filosofia francesa da época uma espécie de
elogio do individualismo, que teria derivado para um capitalismo neoliberal ,
do egoísmo consumista e possessivo contemporâneo.
Para tomarmos apenas um tema de Maio de
68 : propôs a crítica feroz do vazio, do
tédio no trabalho e do individualismo capitalistas e preconizou a “imaginação
ao poder”. Lipovetsky é o ideólogo do “vazio pós-moderno” e do individualismo
dos “laços frouxos e passageiros”, que nada mais são do que o velho vazio da
sociedade de consumo.
As releituras conservadoras de Maio de
68, que descrevem o movimento como um trauma, mais parecem o revisionismo sobre
o Holocausto feito pelos antissemitas. Ocorre que a revolução também aconteceu
e despertou vivas esperanças e, como o Holocausto, repercute até hoje e não
pode ser esquecida.
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