Reinaldo Lobo
A mitologia grega, com seus deuses e
semideuses trágicos, está na base da cultura ocidental. Ainda hoje nos inspira.
Todos sabemos que um mito tem um significado histórico, antropológico,
filosófico e até político. O Mito da Caverna, de Platão, é ensinado nas escolas
como forma de acesso a uma concepção da Razão. A revelação da verdade foi
demonstrada muitas vezes por meio dos mitos, como o célebre mito de Édipo.
Essa é a face nobre do mito, mas os
dicionários nos ensinam que há um lado sombrio, com o sentido de pura mentira
ou de “história da carochinha”. Os meios de comunicação veiculam mentiras nesse
sentido mítico todos os dias.
Os adeptos do capitão Jair Messias Bolsonaro,
atual candidato à presidência por um certo “Partido Social Liberal”,
perceberam, apesar de pouco sutis, essa ambiguidade da palavra. Inventaram a atribuição
de “mito” a esse deputado bizarro, dublê de militar e político, antes desconhecido
em sua longa permanência na Câmara Federal desde 1991.
A palavra poderia conferir a essa
figura do “baixo clero” político uma aura de potência, autoridade e coragem,
como os heróis gregos. Nessa construção, o ex- capitão do Exército, aposentado
em circunstâncias nebulosas, apareceria como um herói da luta contra corrupção,
uma vez que foi citado pelo ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa, como um dos
únicos-- ao lado de Paulo Maluf!--, que não teria recebido a propina do
“mensalão”. Além disso, a palavra alimentaria a narrativa de que lutou, durante
a Ditadura, contra o “terrorismo”.
No entanto, as contradições reveladas na
entrevista ao Roda Viva, da TV Cultura em São Paulo, mostraram que o ídolo não
se sustenta. Aliado próximo do ex-deputado Eduardo Cunha, o Rei do Baixo Clero,
de quem foi próximo durante vários anos, recebeu de forma indireta uma verba da
JBS, que se apressou em devolver para o seu partido de então , o PP de Paulo
Maluf e Ciro Nogueira, uma vez que a Lava Jato já estava em curso e os
escândalos estouravam. Não há notícias de como pagou suas sucessivas campanhas
a deputado federal nas legislaturas anteriores.
Perguntado pela repórter Daniela Lima,
da Folha, sobre a sua defesa do porte de armas pelo cidadão comum como forma de
defesa contra os bandidos, enroscou-se de vez na resposta. A jornalista fez uma pesquisa sobre ele e
mostrou que , em 1995, o capitão treinado Bolsonaro foi assaltado numa rua do
Rio de Janeiro e os assaltantes levaram sua arma e sua moto. Tentou explicar
que foi “rendido” pelos bandidos num sinal de trânsito e que o seu batalhão de
origem recuperou depois a arma e a moto,
sem responder de fato à questão. Mas a
repórter insistiu perguntando: se ele
que era treinado no uso de armas e defesa militar, foi rendido pelos bandidos,
o que se poderia dizer do cidadão comum carregando uma arma?
Os mitos da valentia militar e do herói
messiânico também caíram no chão junto com o seu argumento a respeito da
legislação sobre armas e segurança.
O capitão Bolsonaro, para associar a
ex-presidente Dilma Rousseff à guerrilha de Carlos Lamarca, lembrou com orgulho
que combateu no Vale do Ribeira, onde esteve, de fato, sob o comando,
inclusive, do ex-coronel Erasmo Dias, como parte das tropas do Exército.
O que ele não disse é que o Exército
levou o maior baile dos guerrilheiros, que chegaram a capturar oficiais e a
negociar sua soltura para abrir uma saída do cerco formado por centenas de
soldados e vários batalhões, além de helicópteros e forças especiais
anti-guerrilha. Enquanto negociavam, comandantes tentaram localizar Lamarca, o
que resultou em combates e na morte de um tenente, executado pela guerrilha.
A derrota das Forças Armadas no Vale do
Ribeira levou o coronel Erasmo Dias a ser afastado de suas funções e relegado
ao papel de chefe de polícia em São Paulo. Na versão de Bolsonaro – e,
provavelmente, na versão oficial do Exército-- os “terroristas” de Lamarca
foram traiçoeiros, os militares as vítimas e não existiram combates
propriamente, apenas uma fuga. Ora, tudo indica, segundo inúmeros relatos
históricos e de ex-agentes do governo, que os combates aconteceram e o Exército
levou a pior. Lamarca só seria preso e executado no interior da Bahia muito
depois.
O capitão Bolsonaro não tem muito do que
se orgulhar do desempenho no Vale do Ribeira nem em sua carreira militar de um
modo geral. Além de inventar versões
históricas e dizer que apresentou 500 projetos de Lei nunca aceitos no
Congresso-- quando, na verdade, admitiu na TV que foram 176 e nenhum foi
aprovado--, sua carreira política não tem sido exatamente um sucesso. Mas é
preciso admitir que sua equipe tem habilidade em criar “factoides” para
impressionar a mídia e causar polêmica, como aquela foto dele ensinando
crianças a atirar e fazendo gestos agressivos.
O mito Bolsonaro é o resultado de vários
fatores, sendo o principal a desilusão da população com os políticos em geral.
Ele se apresenta como a única alternativa “fora do sistema” civil da chamada
Nova República, agora em estado falimentar. As acusações de corrupção contra
ele nunca apresentaram flagrantes e são relativamente pequenas.
Seu discurso, se é que se pode chamar de
discurso, é policialesco e se apresenta como um fruto da Operação Lava Jato, de
caça aos políticos. A questão da segurança no País produz uma espécie de terror
na classe média e também entre os pobres, que veem na fala de tom brutal uma
única via simples para sairmos da guerra civil como a do Rio de Janeiro.
Um fato inegável é que, desde 2013,
quando os conservadores e a oligarquia dominante empalmaram um movimento de
massas, pela primeira vez em décadas essas forças conseguem ter uma audiência.
Existe hoje um público à direita que entende a política como uma luta entre a
polícia e os bandidos, e ninguém apela melhor a essa demagogia simples.
Bolsonaro não é um mito, mas uma
“história da carochinha”. No entanto, tem o apoio de forças poderosas para
exercer o seu populismo conservador e, se não for detido em sua ascensão
eleitoral, causará sérios estragos à democracia. Depois, será tarde, e nenhum de nós poderá
dizer que não foi avisado.
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