quinta-feira, 27 de março de 2014

AVISO DE INCÊNDIO


                                    

                                                                               Reinaldo Lobo*

     Peço licença ao leitor para falar, desta vez, na primeira pessoa e de uma preferência pessoal. Gosto muito da obra do poeta mexicano Octávio Paz, que por sinal recomendo a todos. Não indico apenas a obra poética. Sugiro também os seus ensaios literários e políticos. Não foi por acaso que os críticos o colocaram entre os maiores autores do século XX. Nem foi acidental o Prêmio Nobel, em 1990, pelo conjunto da obra.  Gosto inclusive de algumas de suas idéias de filosofia política e é delas que pretendo falar.

     O autor das magníficas análises culturais de "O Labirinto da Solidão" descobriu no âmago das duas correntes ideológicas predominantes no século passado, o socialismo e o liberalismo, um solo comum que tenho percorrido igualmente sem medo e sem nenhuma vergonha. Alguns autores já haviam entrevisto esse território a ser descoberto e semeado, mas não tiveram a coragem de ir adiante. Outros, mais afoitos, o enxergaram de forma distorcida e o condenaram à esterilidade.

    Foi o caso, por exemplo, do célebre teórico ultra-conservador da política,Carl Schmitt, para muitos um precursor e justificador do totalitarismo fascista. Defensor de uma espécie de teologia política, implícita em sua obra mais conhecida "O conceito do político" (cujas três versões são de 1927,32 e 33), Schmitt percebeu que tanto o socialismo marxista quanto o liberalismo reduziam o fenômeno político ao fator econômico, empobrecendo-o e esvaziando sua  especificidade. Mas o que escapou a Schmitt -- um anti-progressista e um pessimista-- é que, apesar desse reducionismo, ambas as correntes eram descendentes diretas do Iluminismo e que, portanto, tinham dimensões mais amplas. Octávio Paz percebeu esse detalhe e o explorou de forma criativa.

    O socialismo e o liberalismo pertencem a um amplo movimento anti-religioso e laico simbolicamente marcado pela Revolução Francesa de 1789. Até as expressões "esquerda" e "direita" vêm dessa fonte.  Ambos elaboraram uma concepção da História que prometia para a humanidade um progresso que a levaria do fanatismo para a liberdade e a maturidade intelectual, do dogma para a crítica, da superstição à iluminação, das trevas para a luz.

    Ambos estão a serviço de uma crença ativa -- como diria outro teórico político, Léo Strauss. Acreditam no progresso linear ou mesmo heterogêneo com possibilidades infinitas, capaz de superar limites da natureza, de provocar mudanças constantes, de gerar maior liberdade humana e uma mais feliz existência natural do homem neste mundo.

    Desculpem-me os pós-modernistas, os pessimistas habituais, os neoconservadores e proto-fascistas, mas essas esperanças desencadeadas por essas duas correntes modernas ainda não perderam o vigor civilizatório. Mesmo que muitas das promessas do liberalismo e do marxismo tenham sido frustradas,  reveladas em grande parte fictícias na segunda metade do século XX e seus fundamentos criticados por filósofos e historiadores, ainda não apareceram  alternativas vindas de outras fontes.

    O próprio nazifascismo nunca passou de uma sinistra caricatura ou de um "arremedo do socialismo", como dizia Walter Benjamin. A Terceira Via  formulada nos anos 80 e 90 por Anthony Giddens, o ideólogo  de Bill Clinton e de Tony Blair, foi um arremedo misto de liberalismo clássico, do "laissez faire" e da social-democracia.  

     As duas fórmulas de terceira via, o fascismo e o neoliberalismo recente, nunca passaram de corruptelas. Foram uma espécie de  negativo de fotografias com imagens distorcidas daquelas correntes históricas da modernidade. O arremedo ideológico sempre inverte a imagem daquilo que é substancial e que pertence ao original. O que era progressista virou conservador.

     Caso apareçam alternativas criativas para o mundo contemporâneo terão de vir dessas mesmas fontes originais da modernidade, como, aliás, mostrou o nosso Octávio Paz na maioria dos seus ensaios.

     Da segunda metade ao final do século XX, surgiram até alguns raros pensamentos nessa direção, como o do próprio Paz e de autores como Hannah Arendt, Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, que apontam para uma convergência  entre as duas maiores influências do pensamento político derivadas do Iluminismo. Juntar liberalismo e socialismo é como criar um oximoro, palavras inconciliáveis, mas só na aparência, dizia Octávio Paz.

     O significado dessa convergência seria ultrapassar tanto o socialismo quanto o liberalismo na sua forma mais ideológica, isto é, eliminar o reducionismo econômico de ambas as propostas e levá-las a um pensamento mais complexo. A uma nova visão teórica pela ótica da complexidade das sociedades humanas. A uma perspectiva segundo a qual o destino humano não seja exclusivamente determinado pela economia  mas inspirado pela política. Isso significa adotar uma Outra Política, como diria um amigo próximo de Paz, o filósofo, psicanalista e revolucionário grego Castoriadis. Seria uma renovação radical da política.

     As democracias atuais estão pedindo essa renovação. Estão mergulhadas na indiferença das populações e nos surtos de violência recentes. A noção de representação política está tão desgastada no mundo inteiro que chega a ser ridícula a cena dos espetáculos periódicos chamados de eleições, promovidos pelos ditos representantes e governantes, quase meros lobistas e empregados das empresas privadas e públicas, dos fundos de investimentos e das grandes corporações.

     Não só na Europa e nos EUA mas no mundo todo há uma demanda de democracia mais direta, maior participação popular nas decisões e na gestão pública. As recentes ocupações de cidades e as rebeliões de países inteiros têm demonstrado que são decorrentes de uma crise geral do capitalismo e também do socialismo do tipo totalitário. A violência tem convivido com a democracia de forma endêmica em áreas antes neutralizadas pela estabilidade política e social, como a Europa. Os nossos "Black Blocs" são uma pequena amostra desse novo "charme" político, sintoma de uma turbulência ainda maior por vir. Sua violência tira um pouco o sistema vigente da letargia , assusta os poderosos. No entanto, é estúpida na forma e sem conteúdo.

     A criminalidade das grandes e até pequenas cidades mostra hoje igualmente a face de uma vida brutalizada. A barbárie bate à porta em suas formas mais aleatórias e  grosseiras. O capitalismo atual é uma refinada barbárie.

     Não é necessariamente o caso de  "conciliar" socialismo e liberalismo, mas atravessar essas duas grandes tradições políticas da modernidade e renová-las. É preciso radicalizar a democracia. Este é o desafio para o nosso tempo. Como disse Octávio Paz, em seu texto "A Outra Voz", parece que "nossos dias são propícios a uma iniciativa dessa envergadura" e em algumas obras contemporâneas, como a de Castoriadis, já existe um começo de resposta.

      Há sinais de incêndio em todas as partes. O mal estar está generalizado. Nem todos levam o assunto a sério. A questão é política. A mudança em direção a uma civilização melhor só pode ocorrer, como sugeria o poeta, se houver sobretudo uma convergência entre liberdade e fraternidade.

*Reinaldo Lobo é  psicanalista e jornalista, psicólogo e doutor em Filosofia pela USP. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com

OS "CÃES DE GUARDA" CONTRA-ATACAM


 
 
                       
                                                                                                            Reinaldo Lobo*
       Eles estão em toda parte. Como gafanhotos vorazes, ocupam espaços na cultura, nas ciências humanas, na imprensa, na TV, no rádio, nas universidades em geral, entre os chamados "formadores de opinião". São os "neoconservadores" à brasileira, cuja missão é desconstruir o que consideram o pensamento "politicamente correto" de esquerda. Infiltram-se nas brechas e interstícios de vários setores culturais e do poder porque é isso o  que imaginam que a esquerda faz. Seu truque secreto é usar o que pensam ser-- depois de uma leitura ligeira de Gramsci-- o método ou a estratégia esquerdista para manter a hegemonia e o mando na sociedade civil e no Estado. Esse é um dos seus grandes equívocos.
       Os "neocons", como alguns gostam de ser chamados, reúnem desde filósofos (Denis Rosenfield, Luiz Felipe Pondé), sociólogos e geógrafos (Demétrio Magnoli), historiadores (Marco Antonio Villa), artistas, roqueiros (como o conhecido Lobão), adeptos da geopolítica pós-militarista (como ocorre com um apresentador da Rede Globo, William Waack), humoristas do "infoentretenimento" (Danilo Gentile, Jô Soares)  até ensaístas de ocasião (Arnaldo Jabor) e jornalistas da imprensa mais conservadora do País (como Reinaldo Azevedo). Jô Soares uma vez chamou Jabor de "comunista de direita". Essas personagens têm, obviamente, qualificações e talentos diferentes entre si, mas é possível traçar um fio comum -- o repúdio às políticas distributivistas e desenvolvimentistas do PT e de quaisquer outros grupos mais socializantes. O máximo que aceitam é a social-democracia à maneira tucana, aliada aos "liberais" dos Democratas (ex- ditadura civil-militar) e com uma base de centro direita.
     O neoconservadorismo, como muitos sabem, é uma visão política do mundo inaugurada nos Estados Unidos. Essa corrente ideológica surgiu logo após a Segunda Guerra Mundial, quando surgiu a Guerra Fria. Desenvolveu-se entre ex-comunistas que passaram da crítica à  burocracia soviética e aos horrores do stalinismo para uma posição de direita. Nasceu num meio de jornalistas trotskistas, ao redor da revista "Commentary". Dois dos seus primeiros  intelectuais convertidos foram Irving Kristol e James Burnham, este último autor de um best-seller intitulado "A Revolução dos Gerentes", onde defendia a tese de que as sociedades capitalista e comunista tendiam a se tornar uma coisa só, sob uma administração tecnoburocrática e gerencial. Essa mesma teoria foi defendida na França por Raymond Aron, um franco conservador. Foi a raiz da ideologia da "terceira via", que ressurgiria recentemente na Inglaterra com Anthony Giddens e o primeiro ministro Tony Blair. Mas os neocons dos EUA não hesitavam em aderir ao "modo de produção menos ruim", o capitalismo no sentido estrito. Não é preciso dizer que o auge de seu prestígio foi sob os governos de Reagan e Bush (pai e filho).
     Os neocons brasileiros, diferentes dos norte-americanos, são mais sutis na defesa do capitalismo. Preferem apresentar-se como os verdadeiros transformadores e democratas, a partir de uma crítica pretensamente demolidora das ideologias em geral e do socialismo petista em particular. A sua ideologia consiste em se declararem anti-ideológicos. E os seus procedimentos argumentativos são de dois tipos.
   O primeiro, é a teoria do aparelhamento do Estado, pois o Partido tenderia a se confundir com o poder estatal, como na URSS, sem se considerar que todos os partidos no Brasil colocam, sem exceção, os seus aliados e militantes nos cargos mais importantes. Como o regime do PT e do País está longe de ser uma URSS, esse argumento se liquefaz. Fazem parte da base do governo e da burocracia estatal mais de dez outros partidos e estamos numa democracia.  Os atuais membros petistas do governo sempre disputaram eleições livres e  assim se mantiveram em uma parte do poder coligado.
    O segundo procedimento dos neocons deriva do fato de muitos deles terem migrado da esquerda para a direita, talvez por motivos até semelhantes aos norte-americanos -- "o peso da realidade" da vitória do capitalismo na Guerra Fria e os horrores do stalinismo. Concedamos que seja assim. O seu truque consiste, porém,  em inverter os argumentos da esquerda contra ela própria. Assim, tivemos há pouco um artigo do colunista da Folha, R. Azevedo, em que inventa um "racismo de segunda ordem" a ser atribuído a qualquer petista que criticar as decisões erradas do ministro do STF, Joaquim Barbosa. Todos sabem que a luta contra o racismo é uma bandeira histórica da esquerda. O próprio Barbosa já foi chamado pela direita de ministro da "cota de Lula".  Nada melhor para os propósitos ideológicos do colunista Azevedo do que "informar", invertendo o racismo da elite, dizendo à população que "racistas" são Lula e o PT. É como a crítica ao programa de cotas-- estimularia o "racismo ao contrário", dos negros contra os brancos e criaria uma "elite privilegiada".
    Essas figuras decidiram que a melhor defesa do sistema elitista,  escondendo suas mazelas, é partir para o ataque. São os falsos rebeldes que desejam destruir os "mitos" da esquerda para impor seus próprios mitos, como a "captura das mentes" e a "infiltração".
    O truque é simples, mas tem funcionado e se repete. Um outro articulista, Jabor, só se refere aos adversários como a "velha esquerda", como se ele fizesse parte da nova, a moderna e vanguardista. É bem conhecida a relação de Jabor com a "social-democracia" tucana. E sua luta para se tornar Ministro da Cultura numa pretendida volta dos tucanos ao poder. Há algo de mais velho na praça do que a social- democracia?
    Uma característica dos neocons é a de se mostrarem os defensores da modernidade (capitalista, é claro). Ou como a encarnação da pós-modernidade. Todos falam do "atraso" da esquerda e de seu ultrapassamento. Mas as  ideologias dos "novos conservadores" , em alguns casos, lembram demais a Velha Direita  de Joseph de Maistre , da Action Française e das falanges de Mussolini.
    Autores um pouco mais sofisticados, como Luis Felipe Pondé, reproduzem aqui no Brasil as idéias do filósofo pessimista inglês John Gray, para quem não existe progresso real na história e a "natureza humana" predatória e violenta só se coaduna com regimes de "alta competição"-- como se o capitalismo atual, de monopólios, fosse competitivo! Essa pequena teoria "hobbesiana", evidentemente distorcida, vale para tudo: o capital, o combate ao crime, etc. O paradoxo de Gray -- ele defende a modernidade, mas sustenta ao mesmo tempo que ela não tem sentido, pois é a maior ilusão vinda do Iluminismo e da noção de progresso.Em seu livro "Straw Dogs (Cachorros de Palha): Thoughts on Human and other Animals", Gray diz  que, de Platão à Cristandade, do Iluminismo a Nietzsche, a tradição ocidental tem sido baseada em crenças arrogantes e errôneas sobre os seres humanos e o seu lugar no mundo. Quer retirar o "privilégio" concedido por essa tradição ao homem em relação aos animais e à sua própria animalidade. Filosofias como o liberalismo e o marxismo pensariam a humanidade como uma espécie cujo destino é transcender seus limites naturais. Gray argumenta que essa crença na diferença humana é uma ilusão perigosa.  Propõe investigar a vida do homem "da forma como ela se parece", uma vez que o "humanismo foi finalmente abandonado" ( pelo pós-modernismo). Ele pensa ter perturbado nossas mais profundas crenças, mas nada mais faz, na melhor das hipóteses, do que propor uma natureza humana ao modo do século XVIII ou, na pior das hipóteses, à maneira do ultra-conservadorismo pessimista do fascismo. Sua teoria quer-se moderna  ou até pós, mas é mais antiga do que andar para a frente.
    O filósofo Pondé importa até os cacoetes e ironias de autores como Gray. A frase mais espirituosa do brasileiro é também uma contradição em termos --  "O Viagra fez mais pela humanidade do que 200 anos de marxismo". Ora, para quem vê o progresso como ilusão, cabe a pergunta--o Viagra não é progresso? Tecnológico, é verdade, mas progresso? Saibam que o Viagra é perfeitamente compatível com o marxismo e até com o liberalismo. A incompatibilidade só pode ser uma brincadeirinha de mau gosto do filósofo da PUC.
    Pessimismo sempre foi uma marca registrada do conservadorismo. É regressivo. Seu corolário é a anti-utopia e o conformismo. Mas essa turma tem prestígio e muitos ganham bem para cumprir a função que outrora Paul Nizan,  escritor de esquerda vítima do fascismo, chamou de "cães de guarda" do sistema.
  
 
 

O GOLPE DO MEDO


                                        
                                                                         Reinaldo Lobo*

         O golpe de Estado de 1964 foi o resultado do medo. Acabou instaurando uma ditadura que trouxe ainda mais medo. A insegurança e a instabilidade da democracia então existente levou suas classes dirigentes ao temor diante do "perigo revolucionário" e a quase implorar pela entrada dos militares na cena política. A nossa Ditadura não foi só militar, mas teve a cumplicidade nacional de muitos civis e apoio internacional.

       Os Estados Unidos tinham medo de que mais um país da América Latina, além de Cuba, fizesse uma revolução e saísse do seu quintal de influência. O governo de John Kennedy temia que uma nação do tamanho do Brasil fosse ciscar na área de influência da União Soviética, o arquiinimigo de então. Por isso,  preparou, financiou e estimulou uma "contra-revolução preventiva" aqui entre nós, com a atuação ostensiva da CIA e da embaixada norte-americana.

    Hoje, temos até as gravações com a voz de Kennedy articulando o golpe que daria início ao modelo exemplar de uma sucessão de regimes violentos na Argentina, no Chile, no Peru, no Uruguai e em vários outros países latino-americanos.

       O medo. O escritor Albert Camus definiu certa vez o século XX como o Século do Medo. Temor de regimes totalitários como o nazismo e o stalinismo, medo de a Guerra Fria virar um confronto armado  total, a Terceira Guerra Mundial. Medo, sobretudo, da Bomba Atômica. 

     As novas gerações fazem apenas uma vaga idéia do que foi essa época. O terror que provocaram, primeiro, os resultados da Segunda Guerra Mundial, cujo desfecho incluiu a destruição da Europa, o Holocausto e as  duas devastadoras bombas atômicas despejadas sobre o Japão, com suas seqüelas de câncer e deformidades genéticas pairando sobre a humanidade. E depois, com o aperfeiçoamento das armas e  a corrida nuclear, o mundo ficou sob a ameaça iminente de uma nova guerra.

    A terra foi dividida em duas esferas. No meio, os países em desenvolvimento, alguns saídos de séculos de colonialismo e reivindicando uma identidade, servindo de peões para as duas grandes potências.

     Com a radicalização global, qualquer democracia ocidental que propusesse reformas econômicas e sociais fora do modelo estrito norte-americano, era visto rapidamente  como passível de transitar para o comunismo. Foi o caso do Brasil, sob o governo João Goulart, que havia sido engolido pelas classes dominantes como uma solução de compromisso provisória, após as várias crises que se seguiram à morte de Getúlio Vargas e à renúncia de Janio Quadros. O maior crime deste último foi ensaiar o que chamou de política externa independente. Independente de  quem ? Dos EUA.e ,presumivelmente, também da URSS.

     Os norte-americanos, que estiveram num beco sem saída, um empate na Coréia de 1954 a 56, estavam dispostos a articular uma estratégia de contenção do avanço revolucionário no mundo,  tido como seu domínio após a II Guerra. Na Ásia, onde a China despontara em 49.  Na África, que conheceu várias revoluções anti-coloniais que liquidaram os impérios Inglês e Francês.  Na América Latina, em que surgiu o governo reformista de Jacobo Arbenz na Guatemala, em 54, esmagado por forças financiadas pela CIA e até com intervenção de "consultores" militares dos EUA,  que depois iriam para o Vietnã. Houve ainda os "bogotazos" na Colômbia,.rebeliões populares anárquicas contra as autoridades. Além do advento, é claro, da Revolução Cubana, cuja aura romântica e o fato de ocorrer à margem dos partidos comunistas tradicionais incendiou a imaginação de jovens de todo o continente latino-americano, identificados com os "barbudos" de Sierra Maestra.

       No plano da política interna, o golpe de 64 foi a expressão da paranóia anti-comunista inoculada nas classes médias brasileiras, com medo de perder suas conquistas e propriedades. As "marchas da família" exprimiram esse receio e foram -- sabe-se hoje-- patrocinadas pela CIA  através de órgãos civis como o IPES(Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) e o IBAD(Instituto Brasileiro de Ação Democrática), que atuavam desde o movimento estudantil até em entidades empresariais e sindicatos patronais. Também  ofereciam recursos à imprensa e à TV.  Quanto às Forças Armadas, tinham a ideologia da "guerra subversiva" iminente e treinavam oficiais e soldados na escola de anti-guerrilha do Panamá, orientada e financiada pelos norte-americanos.

       A situação econômica e social, a inflação e a desorganização da sociedade civil levaram a um confronto entre correntes políticas inconciliáveis na época -- os conservadores e udenistas, excluídos do poder desde os tempos de Getúlio Vargas, pois este os derrotava repetidamente, e as forças trabalhistas que preconizavam as "reformas de base". O governo reformista de Jango tinha funcionários apartidários, como Santiago Dantas, e técnicos e intelectuais  de alto nível como Celso Furtado. A oposição tinha  líderes de linha jurídica,como Bilac Pinto e Adauto Lucio Cardoso,  também técnicos pró - norte-americanos, como Roberto Campos, e políticos beligerantes como Carlos Lacerda.  As "reformas" de base foram a chave de tudo.

   Havia uma nítida disputa entre a linha desenvolvimentista e distributivista do governo e a linha da oposição, monetarista e liberal-conservadora em economia.

     Até hoje, existe uma certa divisão entre essas tendências na sociedade brasileira. Como não conseguiam chegar ao poder por eleições, pois os partidos de centro se dividiam e o getulismo  tinha um eleitorado fiel e majoritário, os udenistas e conservadores em geral apelavam com freqüência para as Forças Armadas, a fim de que um golpe as levasse finalmente a Brasília. Houve ensaio de golpe em Jacareacanga,em 1956, quando oficiais lacerdistas da Aeronáutica tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitschek. Depois, em 1961, na renúncia de Jânio, outra tentativa, frustrada pelo então governador do  Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Ele  conseguiu dividir as Forças Armadas. Quando divididas, elas não agem como corporação, paralisam-se ou, então, é a guerra civil. Ficaram, então, paralisadas.

  Difundiu-se o medo em 63/64, inclusive no interior das Forças Armadas, com a ameaça de cisão e quebra da hierarquia, estimuladas por personagens suspeitos de pertencerem à CIA, como o célebre Cabo Anselmo e outros agitadores. Do lado da extrema esquerda, havia uma ilusão de reproduzir a Revolução Russa, tentando criar sovietes de soldados e marinheiros. Esse foi o estopim entre os oficiais para desencadear o golpe.

   O governo Jango tinha inúmeras fraquezas. A primeira delas foi não reconhecer a radicalidade política da situação. Espalhou que tinha um dispositivo militar, mas era um pequeno número de oficiais leais, além de alguns traidores, como o general Amaury Kruel, comandante do II Exército, peça chave que teria passado para o outro lado na última hora, em troca de alguns milhões em dinheiro. O "dispositivo" era uma ficção. Com medo de uma guerra civil, Jango não conclamou o povo à resistência. Segundo o IBOPE na época , 72% da população estavam do seu lado, confiavam nas reformas defendiam a legalidade.

     Jango não tinha nada de revolucionário. O espantalho do comunismo foi um recurso da direita para barrar as reformas.O ponto culminante foi o comício da Central do Brasil em que assinou um projeto de reforma agrária e reiterou a elaboração da Lei de Remessa de Lucros (para o exterior), que afetava diretamente interesses empresariais norte-americanos. A esta altura, Jango sabia que ia haver golpe.

      Foi assim que começou a ditadura de 21 anos. As ditaduras repousam sobre o medo. Infundem medo no povo, mas os ditadores também têm  medo. Não é por acaso que se cercam de tantos aparatos de segurança e repressão. Sabem de sua ilegitimidade e profunda insegurança E assim também acabou a nossa ditadura cabocla, que matou centenas, prendeu e torturou milhares.  Acabou por medo. Desmoralizados, abandonados por aliados civis, os militares inventaram uma Anistia em que se perdoavam e  escondiam seus crimes. Tinham pavor  das conseqüências de um julgamento popular.

 

Reinaldo Lobo é psicanalista e jornalista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com

   

 

                                        

A DEMOCRACIA ESQUIZOFRÊNICA


                                     

                                                                                Reinaldo Lobo*

     Alguns dos maiores fãs de uma série norte-americana de TV, “House of Cards”, são membros do Partido Comunista Chinês. Apesar da censura rígida, o programa foi liberado na República Popular da China, onde faz grande sucesso de público e de crítica. Oficialmente, os líderes chineses alegam que a trama é uma excelente maneira de condenar o “american way of life” e de revelar as entranhas da política nos Estados Unidos da América.

   Ingenuidade deles. Os chefes do Partido talvez não se dêem conta de que a narrativa, estrelada e produzida pelo ótimo ator Kevin Spacey e pela sutil atriz Robin Wright, é uma excelente pedagogia para os chineses e seus burocratas aprenderem a operar o poder político e os lobbies no interior do seu próprio capitalismo. Pior, é possível que gostem tanto da série não por ser antiamericana, mas pela sedução da própria natureza do capitalismo levada às suas últimas conseqüências políticas.

   Deslumbrado com a sociedade de consumo, o povo chinês possivelmente não perceba ainda o alcance da autocrítica norte-americana contida na ficção. A sofisticada dramaturgia tem no seu centro um manipulador deputado na liderança da maioria democrata no Congresso e sua mulher igualmente ambiciosa,fria e cínica. São uma espécie de casal Macbeth solto nos salões de Washington.

   O jogo da manipulação se passa num núcleo restrito que circula entre o Capitólio e a Casa Branca, no país mais poderoso do mundo. Mas com um detalhe -- o que conta é o mecanismo do poder, não o povo. Seus reais interesses estão subordinados ao desejo de mando. As personagens humanas, às vezes complexas e ambíguas, quase chegam a sofrer moralmente pelas manobras delinqüênciais que cometem. No entanto, o que prevalece é o desejo de poder e a inevitabilidade de sua lógica.

    A visão-do-mundo que a série de TV consagra tem como valores máximos o Poder, o Dinheiro e o Sexo. Nessa ordem. Num dos capítulos, o deputado Francis J. Underwood, a personagem representada tão bem por Stacey, demonstra a sua equação da relação entre esses valores. Diz para a amante jornalista algo assim: “Um grande homem disse uma vez que tudo tem a ver com sexo. Exceto o sexo. O sexo tem a ver com poder". 

   O gozo sexual só importa na medida em que está articulado ao poder. De certa forma, é poder na sua essência, digamos biopolítica. O gozo do poder está acima do prazer sexual propriamente dito.

    Em outro momento, a personagem raciocina , acumpliciando-se  o telespectador, que o dinheiro também só serve quando traz e consolida poder. Culpa, erotismo, valores humanos, sentimentos como amizade e solidariedade estão eticamente subordinados ao poder.

     Henry Kissinger, ex-todo-poderoso articulador do ex-presidente Richard Nixon, costumava dizer que o poder, em si mesmo, é "sexy”. Até ele, feioso, na meia idade e acima do peso, conquistava algumas das estrelas mais bonitas de Hollywood. Não hesitava em atribuir isso ao charme do...poder.

   Do ponto de vista da questão política, a série revela um segredo que todos sabem— a democracia representativa atualmente existente no mundo está esgotando suas possibilidades de atender à demanda de participação popular .Não dá conta de resolver as crises e nem diminui a violência. 

   Os políticos estão a quilômetros de distância do povo em muitas partes. Nunca houve na face da Terra tantos regimes que reivindicam o status de legítima democracia. No entanto, esse fato não trouxe mais  presença da população nas decisões, nem freou a brutal violência nas sociedades existentes.

   Os representantes do povo no regime institucional outrora conhecido como sendo "do povo, pelo povo e para o povo", constituem um círculo fechado de burocratas, lobistas e tecnocratas. Pertencem a uma espécie de "oligarquia liberal". Para essa turma, só conta o que decidem entre eles,em função dos interesses deles.

   Há uma grave cisão "esquizofrênica" entre o que fazem nas escalas do poder e os interesses da maioria de seus representados. É isso o que a série de TV ilustra, além de ser uma tragédia shakespeariana.

   Reagindo a essa situação nada fictícia, estão surgindo grupos de pressão e manifestações em muitos lugares. Mas , muitas vezes, esses movimentos  assemelham-se ao fascismo, ao autoritarismo, e propõem a simples supressão da democracia.

   No Brasil, parecem pedir um movimento regressivo, uma volta atrás em direção à Ditadura civil-militar que tivemos entre 1964 e 1985. É o que desejam personagens como Jair Bolsonaro e alguns líderes de movimentos religiosos integristas e fundamentalistas cristãos

   Na França , cresce eleitoralmente (36% das intenções de voto) a extrema direita simbolizada pela parlamentar Anne Marie Le Pen, de família e partido conhecidos como fascistas.

  Na Ucrânia, houve agora a vitória de uma oposição que inclui uma força ativa de nazistas, que chegaram ao poder no interior de uma coalizão nacionalista anti-russa. Eles não hesitam em erguer grandes retratos de Hitler nas ruas de Kiev e seus chefetes arengam em voz alta nos seus comícios: "Lutaremos contra os judeus e os russos até à morte". Várias sinagogas foram atacadas e os rabinos pediram aos seus fiéis que abandonem o país. Parece o eterno retorno ao passado. Um filme que todos já conheceram.

    A resposta em uma parte da esquerda, na extrema esquerda, são os malucos explosivos e, agora, os ambíguos Black Blocs.  Quando à reação à crise institucional tida como democrática e moderada, ela vem dos políticos "fakes" que se apresentam como de "centro", "centro esquerda", "centro direita" . Ora, eles já estão operando e manipulando exatamente aquela "oligarquia tecnoburocrática liberal", que tem conduzido a democracia  a uma condição esquizofrênica. 

   Certos setores das populações ainda são beneficiados pela democracia moderna, caso contrário as rebeliões já teriam virado totais revoluções e ela desapareceria do planeta. Sindicatos, grupos de pressão e ONGs, ainda cumprem seu papel de tornar fluido o sistema. Mas há muitos sinais de degenerescência.

   A alternativa não é largar a democracia, mas aprofundá-la seriamente. Esse desejo já está presente virtualmente nos atuais movimentos populares que protestam nas várias "primaveras", que vão de Wall Street ao Oriente Médio e a Turquia,na África e América Latina, no Leste Europeu e na Europa em geral, além de alguns sinais incipientes na Ásia.

    Aprofundar a democracia é tomá-la nas mãos como cidadãos. Significa torná-la mais direta, deixar o povo governar. E criar novos direitos. Todo cidadão é um governante, pode governar, como dizia Aristóteles nas antigas. Ainda vale.

   Se os chineses continuarem a assistir programas de TV como "House of Cards", por sinal o predileto de Barack Obama e, aqui, de FHC, poderão tornar-se subversivos. A série mostra não só o genérico desejo de poder entranhado nos seres humanos, mas o divórcio entre as esferas de mando e o povo.

  Como Maquiavel, que pode ter ensinado os cidadãos a se defenderem dos príncipes, os chineses podem aprender, vendo televisão, a dar as cartas no seu país e a voltar-se contra a natureza opressiva de toda burocracia dominante.

 

     

* Reinaldo Lobo é psicanalista e jornalista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com