Reinaldo Lobo*
Peço licença ao leitor para falar, desta
vez, na primeira pessoa e de uma preferência pessoal. Gosto muito da obra do
poeta mexicano Octávio Paz, que por sinal recomendo a todos. Não indico apenas
a obra poética. Sugiro também os seus ensaios literários e políticos. Não foi
por acaso que os críticos o colocaram entre os maiores autores do século XX. Nem
foi acidental o Prêmio Nobel, em 1990, pelo conjunto da obra. Gosto inclusive de algumas de suas idéias de
filosofia política e é delas que pretendo falar.
O autor das magníficas análises culturais
de "O Labirinto da Solidão" descobriu no âmago das duas correntes
ideológicas predominantes no século passado, o socialismo e o liberalismo, um solo comum que tenho percorrido igualmente
sem medo e sem nenhuma vergonha. Alguns autores já haviam entrevisto esse
território a ser descoberto e semeado, mas não tiveram a coragem de ir adiante.
Outros, mais afoitos, o enxergaram de forma distorcida e o condenaram à
esterilidade.
Foi o caso, por exemplo, do célebre teórico
ultra-conservador da política,Carl Schmitt, para muitos um precursor e
justificador do totalitarismo fascista. Defensor de uma espécie de teologia
política, implícita em sua obra mais conhecida "O conceito do
político" (cujas três versões são de 1927,32 e 33), Schmitt percebeu que
tanto o socialismo marxista quanto o liberalismo reduziam o fenômeno político
ao fator econômico, empobrecendo-o e esvaziando sua especificidade. Mas o que escapou a Schmitt --
um anti-progressista e um pessimista-- é que, apesar desse reducionismo, ambas
as correntes eram descendentes diretas do Iluminismo e que, portanto, tinham
dimensões mais amplas. Octávio Paz percebeu esse detalhe e o explorou de forma
criativa.
O socialismo e o liberalismo pertencem a um
amplo movimento anti-religioso e laico simbolicamente marcado pela Revolução
Francesa de 1789. Até as expressões "esquerda" e "direita"
vêm dessa fonte. Ambos elaboraram uma concepção
da História que prometia para a humanidade um progresso que a levaria do
fanatismo para a liberdade e a maturidade intelectual, do dogma para a crítica,
da superstição à iluminação, das trevas para a luz.
Ambos
estão a serviço de uma crença ativa -- como diria outro teórico político, Léo
Strauss. Acreditam no progresso linear ou mesmo heterogêneo com possibilidades
infinitas, capaz de superar limites da natureza, de provocar mudanças constantes,
de gerar maior liberdade humana e uma mais feliz existência natural do homem
neste mundo.
Desculpem-me os pós-modernistas, os
pessimistas habituais, os neoconservadores e proto-fascistas, mas essas
esperanças desencadeadas por essas duas correntes modernas ainda não perderam o
vigor civilizatório. Mesmo que muitas das promessas do liberalismo e do
marxismo tenham sido frustradas,
reveladas em grande parte fictícias na segunda metade do século XX e
seus fundamentos criticados por filósofos e historiadores, ainda não
apareceram alternativas vindas de outras
fontes.
O próprio nazifascismo nunca passou de uma sinistra
caricatura ou de um "arremedo do socialismo", como dizia Walter
Benjamin. A Terceira Via formulada nos
anos 80 e 90 por Anthony Giddens, o ideólogo
de Bill Clinton e de Tony Blair, foi um arremedo misto de liberalismo
clássico, do "laissez faire" e da social-democracia.
As duas fórmulas de terceira via, o
fascismo e o neoliberalismo recente, nunca passaram de corruptelas. Foram uma
espécie de negativo de fotografias com
imagens distorcidas daquelas correntes históricas da modernidade. O arremedo
ideológico sempre inverte a imagem daquilo que é substancial e que pertence ao original.
O que era progressista virou conservador.
Caso apareçam alternativas criativas para
o mundo contemporâneo terão de vir dessas mesmas fontes originais da
modernidade, como, aliás, mostrou o nosso Octávio Paz na maioria dos seus
ensaios.
Da segunda metade ao final do século XX,
surgiram até alguns raros pensamentos nessa direção, como o do próprio Paz e de
autores como Hannah Arendt, Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, que apontam
para uma convergência entre as duas maiores influências do pensamento
político derivadas do Iluminismo. Juntar liberalismo e socialismo é como criar
um oximoro, palavras inconciliáveis, mas só na aparência, dizia Octávio Paz.
O
significado dessa convergência seria ultrapassar
tanto o socialismo quanto o liberalismo na sua forma mais ideológica, isto é,
eliminar o reducionismo econômico de ambas as propostas e levá-las a um
pensamento mais complexo. A uma nova visão teórica pela ótica da complexidade
das sociedades humanas. A uma perspectiva segundo a qual o destino humano não
seja exclusivamente determinado pela economia
mas inspirado pela política. Isso significa adotar uma Outra Política,
como diria um amigo próximo de Paz, o filósofo, psicanalista e revolucionário
grego Castoriadis. Seria uma renovação radical da política.
As democracias atuais estão pedindo essa
renovação. Estão mergulhadas na indiferença das populações e nos surtos de
violência recentes. A noção de representação política está tão desgastada no
mundo inteiro que chega a ser ridícula a cena dos espetáculos periódicos
chamados de eleições, promovidos pelos ditos representantes e governantes,
quase meros lobistas e empregados das empresas privadas e públicas, dos fundos
de investimentos e das grandes corporações.
Não só na Europa e nos EUA mas no mundo
todo há uma demanda de democracia mais direta, maior participação popular nas
decisões e na gestão pública. As recentes ocupações de cidades e as rebeliões
de países inteiros têm demonstrado que são decorrentes de uma crise geral do
capitalismo e também do socialismo do tipo totalitário. A violência tem
convivido com a democracia de forma endêmica em áreas antes neutralizadas pela
estabilidade política e social, como a Europa. Os nossos "Black Blocs"
são uma pequena amostra desse novo "charme" político, sintoma de uma
turbulência ainda maior por vir. Sua violência tira um pouco o sistema vigente
da letargia , assusta os poderosos. No entanto, é estúpida na forma e sem
conteúdo.
A criminalidade das grandes e até pequenas
cidades mostra hoje igualmente a face de uma vida brutalizada. A barbárie bate
à porta em suas formas mais aleatórias e grosseiras. O capitalismo atual é uma refinada
barbárie.
Não é
necessariamente o caso de
"conciliar" socialismo e liberalismo, mas atravessar essas duas grandes tradições políticas da
modernidade e renová-las. É preciso radicalizar a democracia. Este é o desafio
para o nosso tempo. Como disse Octávio Paz, em seu texto "A Outra
Voz", parece que "nossos dias são propícios a uma iniciativa dessa
envergadura" e em algumas obras contemporâneas, como a de Castoriadis, já
existe um começo de resposta.
Há sinais de incêndio em todas as partes.
O mal estar está generalizado. Nem todos levam o assunto a sério. A questão é
política. A mudança em direção a uma civilização melhor só pode ocorrer, como
sugeria o poeta, se houver sobretudo uma convergência entre liberdade e
fraternidade.
*Reinaldo Lobo é psicanalista e jornalista, psicólogo e doutor
em Filosofia pela USP. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com