quinta-feira, 27 de março de 2014

AVISO DE INCÊNDIO


                                    

                                                                               Reinaldo Lobo*

     Peço licença ao leitor para falar, desta vez, na primeira pessoa e de uma preferência pessoal. Gosto muito da obra do poeta mexicano Octávio Paz, que por sinal recomendo a todos. Não indico apenas a obra poética. Sugiro também os seus ensaios literários e políticos. Não foi por acaso que os críticos o colocaram entre os maiores autores do século XX. Nem foi acidental o Prêmio Nobel, em 1990, pelo conjunto da obra.  Gosto inclusive de algumas de suas idéias de filosofia política e é delas que pretendo falar.

     O autor das magníficas análises culturais de "O Labirinto da Solidão" descobriu no âmago das duas correntes ideológicas predominantes no século passado, o socialismo e o liberalismo, um solo comum que tenho percorrido igualmente sem medo e sem nenhuma vergonha. Alguns autores já haviam entrevisto esse território a ser descoberto e semeado, mas não tiveram a coragem de ir adiante. Outros, mais afoitos, o enxergaram de forma distorcida e o condenaram à esterilidade.

    Foi o caso, por exemplo, do célebre teórico ultra-conservador da política,Carl Schmitt, para muitos um precursor e justificador do totalitarismo fascista. Defensor de uma espécie de teologia política, implícita em sua obra mais conhecida "O conceito do político" (cujas três versões são de 1927,32 e 33), Schmitt percebeu que tanto o socialismo marxista quanto o liberalismo reduziam o fenômeno político ao fator econômico, empobrecendo-o e esvaziando sua  especificidade. Mas o que escapou a Schmitt -- um anti-progressista e um pessimista-- é que, apesar desse reducionismo, ambas as correntes eram descendentes diretas do Iluminismo e que, portanto, tinham dimensões mais amplas. Octávio Paz percebeu esse detalhe e o explorou de forma criativa.

    O socialismo e o liberalismo pertencem a um amplo movimento anti-religioso e laico simbolicamente marcado pela Revolução Francesa de 1789. Até as expressões "esquerda" e "direita" vêm dessa fonte.  Ambos elaboraram uma concepção da História que prometia para a humanidade um progresso que a levaria do fanatismo para a liberdade e a maturidade intelectual, do dogma para a crítica, da superstição à iluminação, das trevas para a luz.

    Ambos estão a serviço de uma crença ativa -- como diria outro teórico político, Léo Strauss. Acreditam no progresso linear ou mesmo heterogêneo com possibilidades infinitas, capaz de superar limites da natureza, de provocar mudanças constantes, de gerar maior liberdade humana e uma mais feliz existência natural do homem neste mundo.

    Desculpem-me os pós-modernistas, os pessimistas habituais, os neoconservadores e proto-fascistas, mas essas esperanças desencadeadas por essas duas correntes modernas ainda não perderam o vigor civilizatório. Mesmo que muitas das promessas do liberalismo e do marxismo tenham sido frustradas,  reveladas em grande parte fictícias na segunda metade do século XX e seus fundamentos criticados por filósofos e historiadores, ainda não apareceram  alternativas vindas de outras fontes.

    O próprio nazifascismo nunca passou de uma sinistra caricatura ou de um "arremedo do socialismo", como dizia Walter Benjamin. A Terceira Via  formulada nos anos 80 e 90 por Anthony Giddens, o ideólogo  de Bill Clinton e de Tony Blair, foi um arremedo misto de liberalismo clássico, do "laissez faire" e da social-democracia.  

     As duas fórmulas de terceira via, o fascismo e o neoliberalismo recente, nunca passaram de corruptelas. Foram uma espécie de  negativo de fotografias com imagens distorcidas daquelas correntes históricas da modernidade. O arremedo ideológico sempre inverte a imagem daquilo que é substancial e que pertence ao original. O que era progressista virou conservador.

     Caso apareçam alternativas criativas para o mundo contemporâneo terão de vir dessas mesmas fontes originais da modernidade, como, aliás, mostrou o nosso Octávio Paz na maioria dos seus ensaios.

     Da segunda metade ao final do século XX, surgiram até alguns raros pensamentos nessa direção, como o do próprio Paz e de autores como Hannah Arendt, Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, que apontam para uma convergência  entre as duas maiores influências do pensamento político derivadas do Iluminismo. Juntar liberalismo e socialismo é como criar um oximoro, palavras inconciliáveis, mas só na aparência, dizia Octávio Paz.

     O significado dessa convergência seria ultrapassar tanto o socialismo quanto o liberalismo na sua forma mais ideológica, isto é, eliminar o reducionismo econômico de ambas as propostas e levá-las a um pensamento mais complexo. A uma nova visão teórica pela ótica da complexidade das sociedades humanas. A uma perspectiva segundo a qual o destino humano não seja exclusivamente determinado pela economia  mas inspirado pela política. Isso significa adotar uma Outra Política, como diria um amigo próximo de Paz, o filósofo, psicanalista e revolucionário grego Castoriadis. Seria uma renovação radical da política.

     As democracias atuais estão pedindo essa renovação. Estão mergulhadas na indiferença das populações e nos surtos de violência recentes. A noção de representação política está tão desgastada no mundo inteiro que chega a ser ridícula a cena dos espetáculos periódicos chamados de eleições, promovidos pelos ditos representantes e governantes, quase meros lobistas e empregados das empresas privadas e públicas, dos fundos de investimentos e das grandes corporações.

     Não só na Europa e nos EUA mas no mundo todo há uma demanda de democracia mais direta, maior participação popular nas decisões e na gestão pública. As recentes ocupações de cidades e as rebeliões de países inteiros têm demonstrado que são decorrentes de uma crise geral do capitalismo e também do socialismo do tipo totalitário. A violência tem convivido com a democracia de forma endêmica em áreas antes neutralizadas pela estabilidade política e social, como a Europa. Os nossos "Black Blocs" são uma pequena amostra desse novo "charme" político, sintoma de uma turbulência ainda maior por vir. Sua violência tira um pouco o sistema vigente da letargia , assusta os poderosos. No entanto, é estúpida na forma e sem conteúdo.

     A criminalidade das grandes e até pequenas cidades mostra hoje igualmente a face de uma vida brutalizada. A barbárie bate à porta em suas formas mais aleatórias e  grosseiras. O capitalismo atual é uma refinada barbárie.

     Não é necessariamente o caso de  "conciliar" socialismo e liberalismo, mas atravessar essas duas grandes tradições políticas da modernidade e renová-las. É preciso radicalizar a democracia. Este é o desafio para o nosso tempo. Como disse Octávio Paz, em seu texto "A Outra Voz", parece que "nossos dias são propícios a uma iniciativa dessa envergadura" e em algumas obras contemporâneas, como a de Castoriadis, já existe um começo de resposta.

      Há sinais de incêndio em todas as partes. O mal estar está generalizado. Nem todos levam o assunto a sério. A questão é política. A mudança em direção a uma civilização melhor só pode ocorrer, como sugeria o poeta, se houver sobretudo uma convergência entre liberdade e fraternidade.

*Reinaldo Lobo é  psicanalista e jornalista, psicólogo e doutor em Filosofia pela USP. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com

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