Reinaldo Lobo*
Alguns dos maiores fãs de uma série
norte-americana de TV, “House of Cards”,
são membros do Partido Comunista Chinês. Apesar da censura rígida, o programa
foi liberado na República Popular da China, onde faz grande sucesso de público
e de crítica. Oficialmente, os líderes chineses alegam que a trama é uma
excelente maneira de condenar o “american way of life” e de revelar as
entranhas da política nos Estados Unidos da América.
Ingenuidade deles. Os chefes do Partido talvez
não se dêem conta de que a narrativa, estrelada e produzida pelo ótimo ator Kevin
Spacey e pela sutil atriz Robin Wright, é uma excelente pedagogia para os
chineses e seus burocratas aprenderem a operar o poder político e os lobbies no
interior do seu próprio capitalismo. Pior, é possível que gostem tanto da série
não por ser antiamericana, mas pela sedução da própria natureza do capitalismo
levada às suas últimas conseqüências políticas.
Deslumbrado
com a sociedade de consumo, o povo chinês possivelmente não perceba ainda o
alcance da autocrítica norte-americana contida na ficção. A sofisticada
dramaturgia tem no seu centro um manipulador deputado na liderança da maioria
democrata no Congresso e sua mulher igualmente ambiciosa,fria e cínica. São uma
espécie de casal Macbeth solto nos salões de Washington.
O jogo
da manipulação se passa num núcleo restrito que circula entre o Capitólio e a
Casa Branca, no país mais poderoso do mundo. Mas com um detalhe -- o que conta
é o mecanismo do poder, não o povo. Seus reais interesses estão subordinados ao
desejo de mando. As personagens humanas, às vezes complexas e ambíguas, quase
chegam a sofrer moralmente pelas manobras delinqüênciais que cometem. No
entanto, o que prevalece é o desejo de poder e a inevitabilidade de sua lógica.
A visão-do-mundo que a série de TV consagra tem
como valores máximos o Poder, o Dinheiro e o Sexo. Nessa ordem. Num dos
capítulos, o deputado Francis J. Underwood, a personagem representada tão bem
por Stacey, demonstra a sua equação da relação entre esses valores. Diz para a amante
jornalista algo assim: “Um grande homem disse uma vez que tudo tem a ver com
sexo. Exceto o sexo. O sexo tem a ver com poder".
O gozo sexual só importa na medida em que
está articulado ao poder. De certa forma, é poder na sua essência, digamos
biopolítica. O gozo do poder está acima do prazer sexual propriamente dito.
Em
outro momento, a personagem raciocina , acumpliciando-se o telespectador, que o dinheiro também só
serve quando traz e consolida poder. Culpa, erotismo, valores humanos,
sentimentos como amizade e solidariedade estão eticamente subordinados ao
poder.
Henry Kissinger, ex-todo-poderoso articulador
do ex-presidente Richard Nixon, costumava dizer que o poder, em si mesmo, é "sexy”.
Até ele, feioso, na meia idade e acima do peso, conquistava algumas das estrelas
mais bonitas de Hollywood. Não hesitava em atribuir isso ao
charme do...poder.
Do ponto de vista da questão política, a
série revela um segredo que todos sabem— a democracia representativa atualmente
existente no mundo está esgotando suas possibilidades de atender à demanda de
participação popular .Não dá conta de resolver as crises e nem diminui a
violência.
Os
políticos estão a quilômetros de distância do povo em muitas partes. Nunca
houve na face da Terra tantos regimes que reivindicam o status de legítima democracia.
No entanto, esse fato não trouxe mais presença da população nas decisões, nem freou
a brutal violência nas sociedades existentes.
Os representantes do povo no regime
institucional outrora conhecido como sendo "do povo, pelo povo e para o
povo", constituem um círculo fechado de burocratas, lobistas e tecnocratas.
Pertencem a uma espécie de "oligarquia liberal". Para essa turma, só
conta o que decidem entre eles,em função dos interesses deles.
Há uma grave cisão "esquizofrênica"
entre o que fazem nas escalas do poder e os interesses da maioria de seus
representados. É isso o que a série de TV ilustra, além de ser uma tragédia
shakespeariana.
Reagindo a essa situação nada fictícia, estão
surgindo grupos de pressão e manifestações em muitos lugares. Mas , muitas
vezes, esses movimentos assemelham-se ao
fascismo, ao autoritarismo, e propõem a simples supressão da democracia.
No Brasil, parecem pedir um movimento
regressivo, uma volta atrás em direção à Ditadura civil-militar que tivemos
entre 1964 e 1985. É o que desejam personagens como Jair Bolsonaro e alguns
líderes de movimentos religiosos integristas e fundamentalistas cristãos
Na França , cresce eleitoralmente (36% das
intenções de voto) a extrema direita simbolizada pela parlamentar Anne Marie Le
Pen, de família e partido conhecidos como fascistas.
Na Ucrânia, houve agora a vitória de uma
oposição que inclui uma força ativa de nazistas, que chegaram ao poder no
interior de uma coalizão nacionalista anti-russa. Eles não hesitam em erguer
grandes retratos de Hitler nas ruas de Kiev e seus chefetes arengam em voz alta
nos seus comícios: "Lutaremos contra os judeus e os russos até à
morte". Várias sinagogas foram atacadas e os rabinos pediram aos seus
fiéis que abandonem o país. Parece o eterno retorno ao passado. Um filme que
todos já conheceram.
A resposta em uma parte da esquerda, na
extrema esquerda, são os malucos explosivos e, agora, os ambíguos Black
Blocs. Quando à reação à crise
institucional tida como democrática e moderada, ela vem dos políticos
"fakes" que se apresentam como de "centro", "centro
esquerda", "centro direita" . Ora, eles já estão operando e
manipulando exatamente aquela "oligarquia tecnoburocrática liberal",
que tem conduzido a democracia a uma
condição esquizofrênica.
Certos setores das populações ainda são
beneficiados pela democracia moderna, caso contrário as rebeliões já teriam
virado totais revoluções e ela desapareceria do planeta. Sindicatos, grupos de
pressão e ONGs, ainda cumprem seu papel de tornar fluido o sistema. Mas há
muitos sinais de degenerescência.
A alternativa não é largar a democracia, mas
aprofundá-la seriamente. Esse desejo já está presente virtualmente nos atuais
movimentos populares que protestam nas várias "primaveras", que vão
de Wall Street ao Oriente Médio e a Turquia,na África e América Latina, no
Leste Europeu e na Europa em geral, além de alguns sinais incipientes na Ásia.
Aprofundar a democracia é tomá-la nas mãos como cidadãos. Significa
torná-la mais direta, deixar o povo governar. E criar novos direitos. Todo
cidadão é um governante, pode governar, como dizia Aristóteles nas antigas.
Ainda vale.
Se os chineses continuarem a assistir
programas de TV como "House of Cards", por sinal o predileto de
Barack Obama e, aqui, de FHC, poderão tornar-se subversivos. A série mostra não
só o genérico desejo de poder entranhado nos seres humanos, mas o divórcio
entre as esferas de mando e o povo.
Como Maquiavel, que pode ter ensinado os
cidadãos a se defenderem dos príncipes, os chineses podem aprender, vendo
televisão, a dar as cartas no seu país e a voltar-se contra a natureza
opressiva de toda burocracia dominante.
* Reinaldo Lobo é
psicanalista e jornalista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com
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