quinta-feira, 27 de março de 2014

A DEMOCRACIA ESQUIZOFRÊNICA


                                     

                                                                                Reinaldo Lobo*

     Alguns dos maiores fãs de uma série norte-americana de TV, “House of Cards”, são membros do Partido Comunista Chinês. Apesar da censura rígida, o programa foi liberado na República Popular da China, onde faz grande sucesso de público e de crítica. Oficialmente, os líderes chineses alegam que a trama é uma excelente maneira de condenar o “american way of life” e de revelar as entranhas da política nos Estados Unidos da América.

   Ingenuidade deles. Os chefes do Partido talvez não se dêem conta de que a narrativa, estrelada e produzida pelo ótimo ator Kevin Spacey e pela sutil atriz Robin Wright, é uma excelente pedagogia para os chineses e seus burocratas aprenderem a operar o poder político e os lobbies no interior do seu próprio capitalismo. Pior, é possível que gostem tanto da série não por ser antiamericana, mas pela sedução da própria natureza do capitalismo levada às suas últimas conseqüências políticas.

   Deslumbrado com a sociedade de consumo, o povo chinês possivelmente não perceba ainda o alcance da autocrítica norte-americana contida na ficção. A sofisticada dramaturgia tem no seu centro um manipulador deputado na liderança da maioria democrata no Congresso e sua mulher igualmente ambiciosa,fria e cínica. São uma espécie de casal Macbeth solto nos salões de Washington.

   O jogo da manipulação se passa num núcleo restrito que circula entre o Capitólio e a Casa Branca, no país mais poderoso do mundo. Mas com um detalhe -- o que conta é o mecanismo do poder, não o povo. Seus reais interesses estão subordinados ao desejo de mando. As personagens humanas, às vezes complexas e ambíguas, quase chegam a sofrer moralmente pelas manobras delinqüênciais que cometem. No entanto, o que prevalece é o desejo de poder e a inevitabilidade de sua lógica.

    A visão-do-mundo que a série de TV consagra tem como valores máximos o Poder, o Dinheiro e o Sexo. Nessa ordem. Num dos capítulos, o deputado Francis J. Underwood, a personagem representada tão bem por Stacey, demonstra a sua equação da relação entre esses valores. Diz para a amante jornalista algo assim: “Um grande homem disse uma vez que tudo tem a ver com sexo. Exceto o sexo. O sexo tem a ver com poder". 

   O gozo sexual só importa na medida em que está articulado ao poder. De certa forma, é poder na sua essência, digamos biopolítica. O gozo do poder está acima do prazer sexual propriamente dito.

    Em outro momento, a personagem raciocina , acumpliciando-se  o telespectador, que o dinheiro também só serve quando traz e consolida poder. Culpa, erotismo, valores humanos, sentimentos como amizade e solidariedade estão eticamente subordinados ao poder.

     Henry Kissinger, ex-todo-poderoso articulador do ex-presidente Richard Nixon, costumava dizer que o poder, em si mesmo, é "sexy”. Até ele, feioso, na meia idade e acima do peso, conquistava algumas das estrelas mais bonitas de Hollywood. Não hesitava em atribuir isso ao charme do...poder.

   Do ponto de vista da questão política, a série revela um segredo que todos sabem— a democracia representativa atualmente existente no mundo está esgotando suas possibilidades de atender à demanda de participação popular .Não dá conta de resolver as crises e nem diminui a violência. 

   Os políticos estão a quilômetros de distância do povo em muitas partes. Nunca houve na face da Terra tantos regimes que reivindicam o status de legítima democracia. No entanto, esse fato não trouxe mais  presença da população nas decisões, nem freou a brutal violência nas sociedades existentes.

   Os representantes do povo no regime institucional outrora conhecido como sendo "do povo, pelo povo e para o povo", constituem um círculo fechado de burocratas, lobistas e tecnocratas. Pertencem a uma espécie de "oligarquia liberal". Para essa turma, só conta o que decidem entre eles,em função dos interesses deles.

   Há uma grave cisão "esquizofrênica" entre o que fazem nas escalas do poder e os interesses da maioria de seus representados. É isso o que a série de TV ilustra, além de ser uma tragédia shakespeariana.

   Reagindo a essa situação nada fictícia, estão surgindo grupos de pressão e manifestações em muitos lugares. Mas , muitas vezes, esses movimentos  assemelham-se ao fascismo, ao autoritarismo, e propõem a simples supressão da democracia.

   No Brasil, parecem pedir um movimento regressivo, uma volta atrás em direção à Ditadura civil-militar que tivemos entre 1964 e 1985. É o que desejam personagens como Jair Bolsonaro e alguns líderes de movimentos religiosos integristas e fundamentalistas cristãos

   Na França , cresce eleitoralmente (36% das intenções de voto) a extrema direita simbolizada pela parlamentar Anne Marie Le Pen, de família e partido conhecidos como fascistas.

  Na Ucrânia, houve agora a vitória de uma oposição que inclui uma força ativa de nazistas, que chegaram ao poder no interior de uma coalizão nacionalista anti-russa. Eles não hesitam em erguer grandes retratos de Hitler nas ruas de Kiev e seus chefetes arengam em voz alta nos seus comícios: "Lutaremos contra os judeus e os russos até à morte". Várias sinagogas foram atacadas e os rabinos pediram aos seus fiéis que abandonem o país. Parece o eterno retorno ao passado. Um filme que todos já conheceram.

    A resposta em uma parte da esquerda, na extrema esquerda, são os malucos explosivos e, agora, os ambíguos Black Blocs.  Quando à reação à crise institucional tida como democrática e moderada, ela vem dos políticos "fakes" que se apresentam como de "centro", "centro esquerda", "centro direita" . Ora, eles já estão operando e manipulando exatamente aquela "oligarquia tecnoburocrática liberal", que tem conduzido a democracia  a uma condição esquizofrênica. 

   Certos setores das populações ainda são beneficiados pela democracia moderna, caso contrário as rebeliões já teriam virado totais revoluções e ela desapareceria do planeta. Sindicatos, grupos de pressão e ONGs, ainda cumprem seu papel de tornar fluido o sistema. Mas há muitos sinais de degenerescência.

   A alternativa não é largar a democracia, mas aprofundá-la seriamente. Esse desejo já está presente virtualmente nos atuais movimentos populares que protestam nas várias "primaveras", que vão de Wall Street ao Oriente Médio e a Turquia,na África e América Latina, no Leste Europeu e na Europa em geral, além de alguns sinais incipientes na Ásia.

    Aprofundar a democracia é tomá-la nas mãos como cidadãos. Significa torná-la mais direta, deixar o povo governar. E criar novos direitos. Todo cidadão é um governante, pode governar, como dizia Aristóteles nas antigas. Ainda vale.

   Se os chineses continuarem a assistir programas de TV como "House of Cards", por sinal o predileto de Barack Obama e, aqui, de FHC, poderão tornar-se subversivos. A série mostra não só o genérico desejo de poder entranhado nos seres humanos, mas o divórcio entre as esferas de mando e o povo.

  Como Maquiavel, que pode ter ensinado os cidadãos a se defenderem dos príncipes, os chineses podem aprender, vendo televisão, a dar as cartas no seu país e a voltar-se contra a natureza opressiva de toda burocracia dominante.

 

     

* Reinaldo Lobo é psicanalista e jornalista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com

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