Reinaldo Lobo*
O
golpe de Estado de 1964 foi o resultado do medo. Acabou instaurando uma
ditadura que trouxe ainda mais medo. A insegurança e a instabilidade da
democracia então existente levou suas classes dirigentes ao temor diante do "perigo
revolucionário" e a quase implorar pela entrada dos militares na cena
política. A nossa Ditadura não foi só militar, mas teve a cumplicidade nacional
de muitos civis e apoio internacional.
Os Estados Unidos tinham medo de que
mais um país da América Latina, além de Cuba, fizesse uma revolução e saísse do
seu quintal de influência. O governo de John Kennedy temia que uma nação do tamanho
do Brasil fosse ciscar na área de influência da União Soviética, o arquiinimigo
de então. Por isso, preparou, financiou
e estimulou uma "contra-revolução preventiva" aqui entre nós, com a
atuação ostensiva da CIA e da embaixada norte-americana.
Hoje,
temos até as gravações com a voz de Kennedy articulando o golpe que daria início
ao modelo exemplar de uma sucessão de regimes violentos na Argentina, no Chile,
no Peru, no Uruguai e em vários outros países latino-americanos.
O medo. O escritor Albert Camus definiu
certa vez o século XX como o Século do Medo. Temor de regimes totalitários como
o nazismo e o stalinismo, medo de a Guerra Fria virar um confronto armado total, a Terceira Guerra Mundial. Medo,
sobretudo, da Bomba Atômica.
As
novas gerações fazem apenas uma vaga idéia do que foi essa época. O terror que
provocaram, primeiro, os resultados da Segunda Guerra Mundial, cujo desfecho incluiu
a destruição da Europa, o Holocausto e as
duas devastadoras bombas atômicas despejadas sobre o Japão, com suas
seqüelas de câncer e deformidades genéticas pairando sobre a humanidade. E
depois, com o aperfeiçoamento das armas e
a corrida nuclear, o mundo ficou sob a ameaça iminente de uma nova guerra.
A
terra foi dividida em duas esferas. No meio, os países em desenvolvimento,
alguns saídos de séculos de colonialismo e reivindicando uma identidade,
servindo de peões para as duas grandes potências.
Com a radicalização global, qualquer
democracia ocidental que propusesse reformas econômicas e sociais fora do
modelo estrito norte-americano, era visto rapidamente como passível de transitar para o comunismo.
Foi o caso do Brasil, sob o governo João Goulart, que havia sido engolido pelas
classes dominantes como uma solução de compromisso provisória, após as várias
crises que se seguiram à morte de Getúlio Vargas e à renúncia de Janio Quadros.
O maior crime deste último foi ensaiar o que chamou de política externa independente.
Independente de quem ? Dos EUA.e
,presumivelmente, também da URSS.
Os norte-americanos, que estiveram num
beco sem saída, um empate na Coréia de 1954 a 56, estavam dispostos a articular
uma estratégia de contenção do avanço revolucionário no mundo, tido como seu domínio após a II Guerra. Na
Ásia, onde a China despontara em 49. Na
África, que conheceu várias revoluções anti-coloniais que liquidaram os
impérios Inglês e Francês. Na América Latina,
em que surgiu o governo reformista de Jacobo Arbenz na Guatemala, em 54,
esmagado por forças financiadas pela CIA e até com intervenção de
"consultores" militares dos EUA, que depois iriam para o Vietnã. Houve ainda os
"bogotazos" na Colômbia,.rebeliões populares anárquicas contra as
autoridades. Além do advento, é claro, da Revolução Cubana, cuja aura romântica
e o fato de ocorrer à margem dos partidos comunistas tradicionais incendiou a
imaginação de jovens de todo o continente latino-americano, identificados com
os "barbudos" de Sierra Maestra.
No plano da política interna, o golpe de
64 foi a expressão da paranóia anti-comunista inoculada nas classes médias brasileiras,
com medo de perder suas conquistas e propriedades. As "marchas da família"
exprimiram esse receio e foram -- sabe-se hoje-- patrocinadas pela CIA através de órgãos civis como o IPES(Instituto
de Pesquisa e Estudos Sociais) e o IBAD(Instituto Brasileiro de Ação
Democrática), que atuavam desde o movimento estudantil até em entidades
empresariais e sindicatos patronais. Também
ofereciam recursos à imprensa e à TV.
Quanto às Forças Armadas, tinham a ideologia da "guerra subversiva"
iminente e treinavam oficiais e soldados na escola de anti-guerrilha do Panamá,
orientada e financiada pelos norte-americanos.
A situação econômica e social, a
inflação e a desorganização da sociedade civil levaram a um confronto entre
correntes políticas inconciliáveis na época -- os conservadores e udenistas,
excluídos do poder desde os tempos de Getúlio Vargas, pois este os derrotava repetidamente,
e as forças trabalhistas que preconizavam as "reformas de base". O
governo reformista de Jango tinha funcionários apartidários, como Santiago
Dantas, e técnicos e intelectuais de
alto nível como Celso Furtado. A oposição tinha
líderes de linha jurídica,como Bilac Pinto e Adauto Lucio Cardoso, também técnicos pró - norte-americanos, como
Roberto Campos, e políticos beligerantes como Carlos Lacerda. As "reformas" de base foram a chave
de tudo.
Havia uma nítida disputa entre a linha
desenvolvimentista e distributivista do governo e a linha da oposição,
monetarista e liberal-conservadora em economia.
Até
hoje, existe uma certa divisão entre essas tendências na sociedade brasileira.
Como não conseguiam chegar ao poder por eleições, pois os partidos de centro se
dividiam e o getulismo tinha um
eleitorado fiel e majoritário, os udenistas e conservadores em geral apelavam
com freqüência para as Forças Armadas, a fim de que um golpe as levasse finalmente
a Brasília. Houve ensaio de golpe em Jacareacanga,em 1956, quando oficiais
lacerdistas da Aeronáutica tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitschek.
Depois, em 1961, na renúncia de Jânio, outra tentativa, frustrada pelo então
governador do Rio Grande do Sul, Leonel
Brizola. Ele conseguiu dividir as Forças
Armadas. Quando divididas, elas não agem como corporação, paralisam-se ou,
então, é a guerra civil. Ficaram, então, paralisadas.
Difundiu-se o medo em 63/64, inclusive no
interior das Forças Armadas, com a ameaça de cisão e quebra da hierarquia,
estimuladas por personagens suspeitos de pertencerem à CIA, como o célebre Cabo
Anselmo e outros agitadores. Do lado da extrema esquerda, havia uma ilusão de
reproduzir a Revolução Russa, tentando criar sovietes de soldados e marinheiros.
Esse foi o estopim entre os oficiais para desencadear o golpe.
O governo Jango tinha inúmeras fraquezas. A
primeira delas foi não reconhecer a radicalidade política da situação. Espalhou
que tinha um dispositivo militar, mas era um pequeno número de oficiais leais,
além de alguns traidores, como o general Amaury Kruel, comandante do II
Exército, peça chave que teria passado para o outro lado na última hora, em
troca de alguns milhões em dinheiro. O "dispositivo" era uma ficção.
Com medo de uma guerra civil, Jango não conclamou o povo à resistência. Segundo
o IBOPE na época , 72% da população estavam do seu lado, confiavam nas reformas
defendiam a legalidade.
Jango não tinha nada de revolucionário. O
espantalho do comunismo foi um recurso da direita para barrar as reformas.O
ponto culminante foi o comício da Central do Brasil em que assinou um projeto
de reforma agrária e reiterou a elaboração da Lei de Remessa de Lucros (para o
exterior), que afetava diretamente interesses empresariais norte-americanos. A
esta altura, Jango sabia que ia haver golpe.
Foi assim que começou a ditadura de 21
anos. As ditaduras repousam sobre o medo. Infundem medo no povo, mas os
ditadores também têm medo. Não é por
acaso que se cercam de tantos aparatos de segurança e repressão. Sabem de sua
ilegitimidade e profunda insegurança E assim também acabou a nossa ditadura
cabocla, que matou centenas, prendeu e torturou milhares. Acabou por medo. Desmoralizados, abandonados
por aliados civis, os militares inventaram uma Anistia em que se perdoavam
e escondiam seus crimes. Tinham
pavor das conseqüências de um julgamento
popular.
Reinaldo Lobo é psicanalista
e jornalista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com
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