Reinaldo Lobo
Vivemos um surto de globalização nos anos
80 e 90 do século passado, sob o impulso do neoliberalismo e com o fim do
comunismo em quase todo o mundo. O capitalismo parecia triunfante e definitivo,
destruindo barreiras, costumes e tradições, como o descreveu Karl Marx já no
seu manifesto comunista de 1848.
Tudo indicava sua expansão sem limites, sua
conquista universal e a conexão de todos os países entre si, caindo até mesmo
as fronteiras. A União Europeia, o Mercosul e outros tratados de intercâmbio
comercial e cooperação apontavam na direção de um certo equilíbrio
internacional e de uma racionalidade bem temperada. Os economistas mais
radicais imaginavam o livre comércio com pouquíssimas barreiras e a definitiva
decadência do Estado como mediador social e econômico. A utopia neoliberal
trazida inicialmente por Margareth Thatcher e Ronald Reagan parecia ter-se
tornado realidade.
Durou pouco. O século XXI se abriu com o
ataque às Torres Gêmeas e o advento de um novo terrorismo, assustador. Era uma
espécie de reação regionalista e particularista contra a universalização dos
costumes e a destruição das tradições. Os militantes da Al Qaeda, chefiados por
Osama Bin Laden, usaram os meios tecnológicos mais modernos para atacar o coração
do capitalismo.
O efeito foi devastador para as ilusões da
livre competição entre empresas e nações, assim como da livre circulação de
mercadorias e pessoas. Até mesmo porque essa liberdade competitiva nunca
existiu de fato de modo pleno, sobretudo pela existência de um poderoso sistema
de monopólios em escala mundial, mediado pelo capital financeiro, o famoso
“cassino” que operou febrilmente nas três últimas décadas.
Desde então, surgiram as contradições mais
graves, que explodiram na crise de 2008 e cujas consequências reverberam até
hoje.
Um desses efeitos foi a emergência do
Estado de Exceção, a suspensão frequente e temporária dos direitos civis e
humanos em várias partes. Mais do que isso, surgiram guerras regionais e
fenômenos como o Estado Islâmico, buscando instaurar um califado do século XII
no Oriente Médio. Outro, foi o surgimento de levas enormes de refugiados dos
países do “Terceiro Mundo” em busca de sobrevivência física, forçando as
fronteiras de países mais ricos.
A onda conservadora que atinge o planeta,
inclusive o Brasil, é uma reação a essas contradições do capitalismo que se
quer universal destruindo barreiras, e a permanência da existência dos Estados
nacionais com suas fronteiras, interesses, costumes e tradições regionais.
Há uma guerra aberta, neste momento, entre
o universalismo e o particularismo, em escala internacional. As reações do tipo
Brexit, Trump e, agora a resposta retardada do tipo Bolsonaro entre nós, são a
contrapartida, o outro lado da moeda do fundamentalismo terrorista e do
desespero das populações crescentes do chamado “Terceiro Mundo”, das
ex-colônias e do “fraco baixo ventre” do mundo -- parafraseando uma declaração
de Winston Churchill sobre a vulnerabilidade do sul da Europa, então pobre e
suscetível aos avanços do comunismo após a Segunda Guerra.
Hoje, o “perigo comunista” não existe. As
fantasias da expansão de Cuba ou da Venezuela (que não tem nada de comunista,
mas de um populismo atrapalhado e autoritário) pela América Latina, chegariam a
ser risíveis, se não servissem de justificativa ideológica para legitimar a
hegemonia norte-americana na região.
O lugar do Brasil nesse contexto
internacional é, para variar, paradoxal. O governo que vai começar em janeiro
já delineou suas políticas ao escolher o novo chanceler, um desconhecido sem
credenciais diplomáticas e experiência internacional de respeito, mas com uma
ideologia de extrema direita bem clara e até teocrática. Vamos nos colocar, por
um lado, na esteira atual dos EUA em matéria de particularismo. Teremos uma
política externa fechada, de fato, à globalização e à mundialização.
Aparentemente, uma política “nacionalista”.
Por outro lado, porém, continuamos a
adotar “ideias fora do lugar”, como diria o sociólogo e escritor Roberto
Schwarz: quando o neoliberalismo faz água em toda parte, teremos um chefe da
Economia doutrinado na Escola de Chicago e que prega a desregulamentação, a
desestatização e a entrega de patrimônio público para as empresas
internacionais em larga escala. O que é o contrário exato do nacionalismo ou do
particularismo.
O modelo da Argentina, que antecedeu o
Brasil na onda conservadora e neoliberal, dá mostras de grandes problemas, ao
ponto de o governo Macri estar pedindo ainda “mais sacrifícios” ao povo, isto
é, que suporte uma maior recessão por mais tempo.
Tudo indica que o governo Bolsonaro será
uma contradição ambulante, a começar pela pressão do estamento militar,
presente em várias esferas de sua programação. Os militares têm uma noção de
“áreas estratégicas” na economia que não poderiam ser privadas e, muito menos,
entregues ao capital internacional. Mas, como o Brasil já suportou várias
feitiçarias ao longo de sua História, é difícil prever o que acontecerá no
futuro pelos próximos quatro anos.
Na política econômica, seremos
“particularistas-universalistas”, e não exatamente liberais como apregoam os
arautos das boas novas. Ou seja, será dado prosseguimento aos “ajustes”
recessivos que era a tônica do governo Temer e serão tentadas privatizações
aceleradas.
Já
na esfera propriamente política, a ideologia com traços fascistas do século XX
(e do conservadorismo do século XIX) deve predominar. Nos costumes, nas
reformas antipopulares com finalidades estritamente econômicas e não sociais,
com a provável punição judicial da esquerda e preservação da corrupção
sistêmica entre governo e empresas, tudo indica que continuaremos na mesma
situação corrupta, agora mais discreta e beneficiando os partidos mais
conservadores.
As Igrejas de cunho comercial, como as da
Teologia da Prosperidade --outro fenômeno de escala mundial, mas particularista
e retrógrado--, vão ganhar mais poder do que a Igreja Católica, e isto é tão
óbvio que não chega a ser uma previsão.
No quadro mundial, o Brasil deve ter um
período de isolamento e de desprestígio pelos personagens exóticos que estarão
no poder: Bolsonaro, que não precisa de explicações, o inacreditável Ônyx
Lorenzoni, o juiz “imparcial” Moro, dublê de Juiz Falcone e político
pseudomoralista de extrema direita, o Guedes extemporâneo, e, sobretudo, o novo
Golbery, o festejado general Augusto Heleno, estrategista da vitória obtida com
fakenews.
O Brasil estará no centro da contradição
dos que acreditavam num “mundo, mundo, vasto mundo/ se me chamasse Raimundo/
seria uma rima, não uma solução”, como dizia o poeta Carlos Drummond de
Andrade.