quarta-feira, 21 de novembro de 2018

MUNDO, VASTO MUNDO




                                                         Reinaldo Lobo

      Vivemos um surto de globalização nos anos 80 e 90 do século passado, sob o impulso do neoliberalismo e com o fim do comunismo em quase todo o mundo. O capitalismo parecia triunfante e definitivo, destruindo barreiras, costumes e tradições, como o descreveu Karl Marx já no seu manifesto comunista de 1848.
    Tudo indicava sua expansão sem limites, sua conquista universal e a conexão de todos os países entre si, caindo até mesmo as fronteiras. A União Europeia, o Mercosul e outros tratados de intercâmbio comercial e cooperação apontavam na direção de um certo equilíbrio internacional e de uma racionalidade bem temperada. Os economistas mais radicais imaginavam o livre comércio com pouquíssimas barreiras e a definitiva decadência do Estado como mediador social e econômico. A utopia neoliberal trazida inicialmente por Margareth Thatcher e Ronald Reagan parecia ter-se tornado realidade.
     Durou pouco. O século XXI se abriu com o ataque às Torres Gêmeas e o advento de um novo terrorismo, assustador. Era uma espécie de reação regionalista e particularista contra a universalização dos costumes e a destruição das tradições. Os militantes da Al Qaeda, chefiados por Osama Bin Laden, usaram os meios tecnológicos mais modernos para atacar o coração do capitalismo.
    O efeito foi devastador para as ilusões da livre competição entre empresas e nações, assim como da livre circulação de mercadorias e pessoas. Até mesmo porque essa liberdade competitiva nunca existiu de fato de modo pleno, sobretudo pela existência de um poderoso sistema de monopólios em escala mundial, mediado pelo capital financeiro, o famoso “cassino” que operou febrilmente nas três últimas décadas.
    Desde então, surgiram as contradições mais graves, que explodiram na crise de 2008 e cujas consequências reverberam até hoje.
    Um desses efeitos foi a emergência do Estado de Exceção, a suspensão frequente e temporária dos direitos civis e humanos em várias partes. Mais do que isso, surgiram guerras regionais e fenômenos como o Estado Islâmico, buscando instaurar um califado do século XII no Oriente Médio. Outro, foi o surgimento de levas enormes de refugiados dos países do “Terceiro Mundo” em busca de sobrevivência física, forçando as fronteiras de países mais ricos.
    A onda conservadora que atinge o planeta, inclusive o Brasil, é uma reação a essas contradições do capitalismo que se quer universal destruindo barreiras, e a permanência da existência dos Estados nacionais com suas fronteiras, interesses, costumes e tradições regionais.
    Há uma guerra aberta, neste momento, entre o universalismo e o particularismo, em escala internacional. As reações do tipo Brexit, Trump e, agora a resposta retardada do tipo Bolsonaro entre nós, são a contrapartida, o outro lado da moeda do fundamentalismo terrorista e do desespero das populações crescentes do chamado “Terceiro Mundo”, das ex-colônias e do “fraco baixo ventre” do mundo -- parafraseando uma declaração de Winston Churchill sobre a vulnerabilidade do sul da Europa, então pobre e suscetível aos avanços do comunismo após a Segunda Guerra.
    Hoje, o “perigo comunista” não existe. As fantasias da expansão de Cuba ou da Venezuela (que não tem nada de comunista, mas de um populismo atrapalhado e autoritário) pela América Latina, chegariam a ser risíveis, se não servissem de justificativa ideológica para legitimar a hegemonia norte-americana na região.
    O lugar do Brasil nesse contexto internacional é, para variar, paradoxal. O governo que vai começar em janeiro já delineou suas políticas ao escolher o novo chanceler, um desconhecido sem credenciais diplomáticas e experiência internacional de respeito, mas com uma ideologia de extrema direita bem clara e até teocrática. Vamos nos colocar, por um lado, na esteira atual dos EUA em matéria de particularismo. Teremos uma política externa fechada, de fato, à globalização e à mundialização. Aparentemente, uma política “nacionalista”.
     Por outro lado, porém, continuamos a adotar “ideias fora do lugar”, como diria o sociólogo e escritor Roberto Schwarz: quando o neoliberalismo faz água em toda parte, teremos um chefe da Economia doutrinado na Escola de Chicago e que prega a desregulamentação, a desestatização e a entrega de patrimônio público para as empresas internacionais em larga escala. O que é o contrário exato do nacionalismo ou do particularismo.
     O modelo da Argentina, que antecedeu o Brasil na onda conservadora e neoliberal, dá mostras de grandes problemas, ao ponto de o governo Macri estar pedindo ainda “mais sacrifícios” ao povo, isto é, que suporte uma maior recessão por mais tempo.
     Tudo indica que o governo Bolsonaro será uma contradição ambulante, a começar pela pressão do estamento militar, presente em várias esferas de sua programação. Os militares têm uma noção de “áreas estratégicas” na economia que não poderiam ser privadas e, muito menos, entregues ao capital internacional. Mas, como o Brasil já suportou várias feitiçarias ao longo de sua História, é difícil prever o que acontecerá no futuro pelos próximos quatro anos.
     Na política econômica, seremos “particularistas-universalistas”, e não exatamente liberais como apregoam os arautos das boas novas. Ou seja, será dado prosseguimento aos “ajustes” recessivos que era a tônica do governo Temer e serão tentadas privatizações aceleradas.
     Já na esfera propriamente política, a ideologia com traços fascistas do século XX (e do conservadorismo do século XIX) deve predominar. Nos costumes, nas reformas antipopulares com finalidades estritamente econômicas e não sociais, com a provável punição judicial da esquerda e preservação da corrupção sistêmica entre governo e empresas, tudo indica que continuaremos na mesma situação corrupta, agora mais discreta e beneficiando os partidos mais conservadores.
     As Igrejas de cunho comercial, como as da Teologia da Prosperidade --outro fenômeno de escala mundial, mas particularista e retrógrado--, vão ganhar mais poder do que a Igreja Católica, e isto é tão óbvio que não chega a ser uma previsão.
     No quadro mundial, o Brasil deve ter um período de isolamento e de desprestígio pelos personagens exóticos que estarão no poder: Bolsonaro, que não precisa de explicações, o inacreditável Ônyx Lorenzoni, o juiz “imparcial” Moro, dublê de Juiz Falcone e político pseudomoralista de extrema direita, o Guedes extemporâneo, e, sobretudo, o novo Golbery, o festejado general Augusto Heleno, estrategista da vitória obtida com fakenews.
     O Brasil estará no centro da contradição dos que acreditavam num “mundo, mundo, vasto mundo/ se me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não uma solução”, como dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade.
     

terça-feira, 20 de novembro de 2018

CRÍTICAS AO PT


   
 
                                                                                                                     
                                                           Reinaldo Lobo*

      Quando se faz uma crítica ao PT, seus militantes mais aficionados respondem que isso é “fazer o jogo da direita”, não importa quem a faça. Consideram qualquer crítica, venha de onde vier, “inoportuna”. Ora, toda crítica é incômoda, independente do momento em que é feita. A questão é se pode ser verdadeira e se tem consequências positivas. Permitam-me citar Shakespeare: “A verdade é um cachorro que tem de ficar preso no canil. E deve ser posto para fora a chicotadas...”
       A sugestão do filósofo norte-americano Noam Chomsky – salvo engano, insuspeito de pertencer à direita--, de se formar dentro da própria esquerda uma “comissão da verdade” para avaliar “os erros do PT”, vem num momento em que o partido perdeu uma eleição e, apesar da grande votação, temos consciência da grande rejeição oculta nessa votação por parte dos eleitores que apenas queriam evitar Bolsonaro. Todos sabemos também que inúmeras pessoas à esquerda já haviam feito a sugestão de uma autocrítica petista, pois essa atitude só fortaleceria o partido internamente e junto ao eleitorado.
     A cúpula partidária, a começar por Lula, nunca aceitou uma posição de humildade, de submissão ao julgamento dos fatos, de reflexão ou de exposição das mazelas surgidas ao longo da Operação Lava Jato e mesmo antes, por ocasião do mensalão. Se houve autocrítica foi muito interna, quase secreta. Sua alegação sempre foi que isso fortaleceria o adversário à direita e que negaria tudo de bom que o PT fez para os trabalhadores, os pobres e pelo País.
     Ora, vamos por partes. “Favorecer o adversário” : o PT não fez a autocrítica para “preservar votos”  e, mesmo assim, perdeu. Houve um momento em que o candidato Fernando Haddad esboçou um afastamento das mazelas partidárias e sua popularidade subiu nas pesquisas. Por isso mesmo, ainda tem o respeito de parte do eleitorado e poderá tentar novos voos políticos. Além disso, sempre que um partido perde uma eleição – qualquer partido—é saudável que dedique um tempo à reflexão sobre os equívocos que cometeu e, principalmente, sobre sua maneira de governar.
     O segundo argumento, o mais forte, segundo o qual a autocrítica poderia fazer obscurecer o que o PT fez de bom, precisa de consideração mais detida. De fato, o partido fez coisas boas, a maioria nunca feitas antes. Os exemplos são uma longa lista: a agricultura familiar forte; o fortalecimento do crédito popular e das cooperativas de pequenos produtores; a preservação dos direitos trabalhistas – o que não foi pouco, e custou uma enorme resistência aos lobbies empresariais que hoje apoiam Temer e Bolsonaro--; a ressurreição do Nordeste, que hoje agradece com votos e fidelidade; a consistência na manutenção da democracia nacional; a legislação que permitiu a investigação da corrupção; a autonomia da Policia Federal e das Procuradorias ( o juiz Sergio Moro deve a Dilma sua carreira de “paladino da Justiça”, graças à instituição da delação premiada em seu governo); a redistribuição de renda não só via créditos, mas também dos programas sociais bem conhecidos, com destaque ao Bolsa Família, que até o governo de extrema direita de Temer-Bolsonaro hesita em anular; a política externa pacificadora que garantiu identidade, dignidade internacional e respeito ao Brasil; e muitas outras.
      A direita insiste em dizer que tudo aconteceu graças ao governo de FHC, o que é uma outra grossa mentira-- esse governo quebrou mesmo por três vezes o País, a desigualdade social cresceu cerca de 35%, assim como o desemprego, sua política externa era bilateralista, ignorou o Terceiro Mundo e se submeteu docilmente a Bill Clinton e ao neoliberalismo então imperante. Ao contrário do que dizem as más línguas, Lula colocou o Brasil na posição de manter 40% de seus negócios externos com os EUA (com a Venezuela e Cuba foram menos de 2%) e com o restante do mundo, como África e Ásia, sobretudo com a China.
       Tudo isso – e, repito, não é pouco—não justifica o que o partido andou fazendo ao se relacionar com gente como o deputado Roberto Jefferson no mensalão, comprando votos par aprovação de projetos no Congresso ou com o “pragmatismo” aventureiro do ex-guerrilheiro José Dirceu nos tratos com a Petrobrás. A teoria simplista de que “o fim justificam os meios” ignora que, numa política socialista, significa invalidar os fins.
       Dizer que o PT “cometeu erros” é bondade. O partido de Lula foi longe nos acordos e cambalachos com seus parceiros da Nova República, em nome de alcançar e manter o poder. Os casos que ocorreram não são dignos de um partido socialista, cujo objetivo, entre outros, é combater a corrupção capitalista, e não aderir a ela.
      O principal argumento dos defensores da teoria “pragmática” de Lula e Dirceu é que, se não tivessem recorrido aos meios correntes na Nova República (“afinal, todos faziam e não havia meio de sobreviver sem isso”.) não teriam chegado sequer à Presidência. Ora, houve também abusos pessoais de personagens mais ou menos importantes, como Palocci, o pequenino Silvio Pereira e sabe-se lá quem mais nos quadros intermediários.
     Dizer que Palocci foi um traidor, depois das delações, não resolve. Por que se permitiu que tudo  ocorresse nas barbas de Lula. E as relações de Lula com a Odebrecht? Ela era parceira, é verdade, de muitos governos anteriores, desde a Ditadura civil-militar, mas isso também não justifica o PT ter-se aconchegado no interior de um Sistema corrupto (como, aliás, tenho dito aqui há muito tempo e já dizia em 2005).
     Quem disse que o PT não conseguiria ajudar os pobres ou mesmo chegar ao poder, se se mantivesse menor e combativo como era em seus princípios? Teria a oportunidade, mesmo não se tornando poderoso nacionalmente logo de início, de ir dando o exemplo em programas menores, localizados em municípios e estados, formulados com a sua pressão nos parlamentos. Houve um tempo, no Rio Grande do Sul, que os deputados e prefeitos eleitos pelo PT criaram os orçamentos participativos, de grande repercussão e eficiência. Ajudaram, inclusive, em gerar sistemas de transparência adotados por todos os partidos perante o eleitorado.
     A fantasia de uma mudança global, em escala federal, foi instaurada a partir da ambição de poder de alguns líderes da cúpula. Essa cúpula deve ser criticada e responsabilizada, inclusive, pela derrota na eleição presidencial de 2018, pois demorou demais a assumir que precisaria unir-se a outras forças para barrar a direita. Quando fez isso, já era tarde e não se pôde evitar a avalanche em que tentam enterrar a esquerda brasileira, toda ela, mesmo a independente, sob a arrogância e repressão de fascistas e reacionários de todo tipo.
      Se o PT tiver a coragem coletiva de se autocriticar e de se renovar, seus militantes e simpatizantes poderão dizer, talvez mais cedo do que imaginam, algo que li no pórtico de uma floricultura: “Tentaram nos enterrar. Não sabiam que éramos sementes.”

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

O CAPITÃO SEM FORÇAS




                                                               Reinaldo Lobo

      Desde o estrondoso sucesso do filme “Tropa de Elite” (2007), do diretor José Padilha, ficou evidente que estava em gestação na sociedade brasileira um tipo repressivo, violento, “faca na caveira”, um justiceiro admirado por sua capacidade de simplificar tudo e, assim, alcançar resultados rápidos contra o crime. O capitão Bolsonaro iria se tornar mais tarde a encarnação do capitão Nascimento, que até hoje povoa o imaginário da classe média.
      A idealização do herói assassino e torturador é, todos sabemos, perigosa para a democracia, mas, com a crise econômica iniciada em 2008 e generalizada a partir de 2013, a extrema direita ganhou uma opinião pública favorável, pela primeira vez desde a Ditadura civil-militar de 1964-1985.
     Que fique claro: não foi o filme de sucesso que criou essa situação, mas ele refletiu um clima potencial no interior de várias camadas das classes médias e até mesmo das mais pobres. As pessoas estavam cansadas da criminalidade impune, cujo auge se revelou nas denúncias na Lava Jato.
      A violência cotidiana dos morros e favelas, o tráfico fortalecido pela desemprego em massa, os recordes de balas perdidas e assassinatos, tudo isso levou a formar um caldo de cultura favorável ao aparecimento de um Bolsonaro, não por acaso chamado de “o mito” por seus adeptos.
     Os seus potenciais eleitores viam nele a aura imaginária do capitão Nascimento: rude, tosco, voltado para o dever ao ponto de, com pouca relutância, matar friamente e torturar, mas sempre do lado “dos cidadãos de bem”. Estes, como os historiadores e sociólogos sabem, são a massa infantilizada, de mentes simplórias, dos seguidores de líderes fascistas mais do que idealizados, idolizados.
       A política passou a ser demonizada como um caso de polícia: “bandidos versus cidadãos de bem”. Essa visão simplória leva à reforçar soluções onipotentes e igualmente simplórias de Bolsonaro e seu vice “faca-na-caveira”, o vaidoso e arrogante general Mourão, os quais não deixam dúvidas sobre seu propósito: tornar a violência política de Estado.
       Ocorre que, para isso, precisavam alimentar o mito do capitão infalível. Depois da facada desferida por um presumível psicótico que recebia “ordens de Deus” --talvez um invejoso admirador secreto do “capitão justiceiro” --, houve um efeito psicológico paradoxal: o capitão mostrou-se às mentes adolescentes e infantilizadas completamente vulnerável, com perigo de morte, prostrado num leito de hospital.
         A pena e a comoção não fizeram disparar as pesquisas de opinião a favor do líder fascista, cujo ídolo pessoal é o ex-major Carlos Brilhante Ustra, já falecido, antigo chefe dos torturadores do DOI-Codi, centro de operações do II Exército em São Paulo – o “herói que mata”, segundo o vice Mourão.
       Os jovens que não viveram o período da Ditadura e que estão revoltados com os políticos continuam a se inclinar diante de Bolsonaro, mas talvez percam um pouco do fascínio em relação a um ídolo vulnerável, vítima de sua própria incitação à violência. A dó pela sua condição de alvo de um ataque brutal pode não ser suficiente para recuperar o prestígio de “homem forte”. 
     O Super-homem que queria armar toda a população brasileira contra os “bandidos” encontrou a sua “criptonita” na forma de uma simples arma branca e as mentes simplórias dos que o apoiam talvez neguem sua fragilidade, mas o fato é que sua popularidade não aumentou depois do atentado. Tentam restaurar a idealização desfeita cultivando uma outra imagem, a de mártir. Até agora, sem sucesso.
     Um mérito se deve à candidatura do inquieto fascista: colocou, talvez definitivamente, a questão da segurança no centro do debate político. A própria esquerda sempre evitou entrar direto no assunto, negando sua pertinência em função da necessidade de achar soluções sociais para o problema.
    Agora, é impossível ignorá-lo. Os candidatos da esquerda e da centro-esquerda, como Ciro Gomes, Marina Silva e Fernando Haddad, sem falar no jacobino Guilherme Boulos, estão sugerindo fórmulas para reforçar a vigilância das fronteiras, criar uma área forte de inteligência, unificar as polícias, a fim de enfrentar o crime organizado. Suas soluções são sempre mais complexas do que as da chapa Bolsonaro-Mourão, que já propuseram invadir, e não intervir, as favelas para “metralhar uns dez mil de uma vez”. Parecem que tiraram suas opiniões desses programas policiais na TV, sensacionalistas para impressionar o público.
     O problema com os “profissionais da violência”, como se autodenominam, é que não se limitam a falar, mas podem agir num futuro governo, a se delinear a partir das eleições das próximas semanas.  Uma característica das mentes fascistas, desde Mussolini e Hitler, é que costumam anunciar medidas que muitos não acreditam que serão postas em prática, mas que se mostram efetivas logo depois.
    Alguns dizem que Bolsonaro não passa de um boquirroto, como Trump. Ele gosta dessa comparação, pois pode ajudá-lo a ganhar uma eleição até aqui bizarra. Mas há uma diferença em comparação com Trump: as instituições da democracia norte-americana são muito mais fortes do que as brasileiras.
     Aqui, onde Bolsonaro encontrou sem dúvida, como queria o ditador Stálin, o “inimigo objetivo” para assustar o povo -- a ameaça do banditismo e dos traficantes--, as instituições estão enfraquecidas pela Lava Jato e pelo impeachment, fruto de uma operação parlamentar bem armada para desalojar a presidente eleita. O Executivo está fraco, o Judiciário parece forte, mas está politizado e dividido, e o Parlamento todos sabemos como está. O poderoso Collor também havia encontrado seu “inimigo objetivo” – os “marajás” do funcionalismo— e hoje vemos o que resultou do seu governo.
      Há uma esperança: na manifestação em que o capitão foi ferido não havia uma única mulher lhe dando apoio político. A maior rejeição ao candidato nas pesquisas é das mulheres. Vamos torcer para que elas, hoje mais próximas da política do que nunca, arranquem de vez a aura dos fascistas e deem a resposta democrática que a maioria deseja.


quinta-feira, 30 de agosto de 2018

AS CABEÇAS DOS ELEITORES





                                                                  Reinaldo Lobo

   O eleitor não existe. Há eleitores, no plural. Pertencem a classes sociais diferentes, têm sonhos e aspirações distintas, alguns professam uma ideologia propriamente dita, expressam raivas, ressentimentos, visão-de-mundo e expectativas diversas. Os chamados analistas políticos costumam, às vezes, juntar tudo sob um mesmo rótulo e tentam entender as diversidades pelas pesquisas de opinião, hoje mais científicas do que no passado, mas ainda falhas.
    Em 2014, várias sondagens davam como vencedor Aécio Neves, que perdeu no seu próprio Estado e, de fato, quase ganhou em escala nacional. Foi apontado o fator Nordeste, o que também não é simples, pois o voto dos nordestinos não é homogêneo. Aí, um dado decisivo foi a saída do pernambucano Eduardo Campos da corrida presidencial. Outro ponto foi a sombra do ex-presidente Lula, de origem nordestina, catalisando votos em favor de Dilma Rousseff.
      Hoje, as disposições psíquicas dos eleitores variam nas diferentes classes e regiões, mas existem elementos comuns de desconfiança, de descrédito dos políticos e de completo realismo – quase cinismo— provocado pela crise econômica e o desencanto generalizados.
      O fator Lava Jato impera nas eleições deste ano de modo a produzir escolhas que variam da busca da “pureza” na política até uma certa complacência em relação a políticos alvejados pela Justiça, mas cuja história está registrada na memória de muitos eleitores como aqueles que deram algo novo à população –isto é,  os que fizeram efetivamente alguma coisa que beneficia as maiorias mais pobres do País.
       A complacência aparece com clareza no caso de Lula, a maior surpresa destas eleições estranhas, uma vez que está preso, mas ganharia no primeiro turno segundo as pesquisas mais recentes. Depois de vários anos de desconstrução de sua imagem de líder popular, seu registro  quase “de protesto” no TSE -- uma espécie de anticandidato, na forma de desobediência civil--, deixa muitos eleitores confusos e perplexos, mas também demonstra que o seu eleitorado registrou na memória a fase de crescimento econômico, de pleno emprego e de distribuição de renda, e entendeu perfeitamente sua mensagem.
        Houve uma desidealização geral da atividade política na mente dos eleitores, mas que deu lugar aos poucos a um maior realismo numa fatia significativa do eleitorado. O ódio surgido a partir de 2013 levou às ruas  uma classe média que se sentia ameaçada pela “ascensão” dos mais pobres e que saiu em passeatas repercutidas com barulho pela imprensa  Foi a origem do antipetismo militante que desembocaria nas vitórias eleitorais municipais do tucanato e do MDB há dois anos e meio, e ,agora, na candidatura do militar  fascista.
       Na cabeça dos eleitores de classe média, eliminar definitivamente o PT é um objetivo prioritário. Esses são os mais decepcionados com as pesquisas neste momento. A força simbólica da figura de Lula não deu espaço para candidaturas que expressariam o “novo”, isto é, a anticorrupção, a moral, os bons costumes e o anticomunismo, tradicionais “princípios” das frações que apoiaram um dia o golpe de 1964 e hoje pediriam, em última instância, intervenção militar.
      Os petistas costumam incluir nessa categoria de eleitores os juízes e procuradores que condenaram celeremente o ex-presidente Lula. Em parte, podem ter razão. Mas esquecem nessa avaliação a presença de um forte corporativismo no judiciário e o fato de que não são todos os juízes que comungam com os magistrados de Curitiba e de Porto Alegre.
      É muito provável que a escolha do próximo presidente, da maioria parlamentar e dos governadores dependerá de uma “onda” de impulsos na opinião pública, que é diferente das manifestações de classe, e que ultrapassa as fronteiras sociais na reta final das eleições. Essa “onda” esteve convergindo para o candidato militar até há pouco, em função do medo “do comunismo”, da inação das autoridades de segurança e do ódio anti-petista estimulados, inclusive, pelos meios de comunicação, incluídas aí as redes sociais, a TV, o rádio, os jornais e as revistas, em sua maioria.
     As aspirações dos mais diferentes eleitores podem ser dirigidas, em grande parte, para a visão paranoica que elege um” inimigo comum”. Neste momento da luta eleitoral, no entanto, os cidadãos estão cansados, saturados de informações e de notícias de violência. Há um governo praticamente inerte, incapaz de dar direção até aos seus próprios candidatos, Alckmin e Meireles, que representam o período de “austeridade” que se seguiu ao governo petista, exacerbando a crise e o desemprego sem o prometido crescimento econômico real. Além disso, o inimigo comum mais visível até agora --a Corrupção--, está diluído e presente em todos os partidos do cenário político, exceto em alguns virgens como o Psol,  na esquerda, e o Partido Novo, à direita. São os que mais empunham a bandeira do moralismo político, são as novas UDNs.
      O impeachment que derrubou Dilma Rousseff teve como consequência a destruição da força do Executivo quando já havia um Legislativo desmoralizado e fraco. Os corações e mentes dos cidadãos dirigiram-se, então, com esperanças para um Judiciário subitamente fortalecido, ao ponto de se falar de um Partido da Justiça.  Hoje, o próprio Judiciário perdeu força perante a chamada opinião pública, pela divulgação de seus privilégios e por suas contradições quanto ao prosseguimento da Lava Jato.
      A perplexidade é o estado mental de boa parte do eleitorado, mas os mais pobres ainda esperam dos seus símbolos uma saída vitoriosa. Vai depender do que o Judiciário Eleitoral vai fazer com a chapa “triplex”: Lula, Haddad e Manuela.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

SALADA IDEOLÓGICA




                                                         Reinaldo Lobo

         Não é de espantar que o cabo Daciolo tenha inventado a URSAL, “União das Repúblicas Socialistas da América Latina”, para descrever suas preocupações com o avanço do chamado “comunismo” nessa região do planeta. O cabo presidenciável, avatar de Bolsonaro, foi injustamente alvo de chacota nas redes sociais. Chamado de delirante e paranoico, é apenas um simplório e ignorante em matéria de política, ainda que se ache um espertalhão. Como, aliás, a maior parte da “elite” política brasileira.
         O cabo não sabe distinguir socialismo democrático de comunismo e isso não é só culpa dele. Toda a direita brasileira não vê gradações e nuances entre os que estão à esquerda no espectro político. Para essa turma, uma simples crítica social vira sinônimo de “comunismo”, a fim de aterrorizar a classe média e defender “intervenção militar”.
       A pobreza do imaginário político brasileiro só é comparável à sua capacidade para criar siglas falsas, vazias e absurdas, além das mais complexas fantasias conspiratórias.
      Temos um Partido Social Democrático, que não é social, mas só um grêmio fisiológico liderado pelo oportunista ex-prefeito Kassab, de São Paulo.
      Há um Partido Progressista, de Maluf, filho da Ditadura, agrupamento que não tem nada de “progressista”, dedicado hoje a fazer negócios e cujos membros apenas buscam se safar da cadeia.
     Existe uma série de partidos “trabalhistas” cujos militantes e líderes nem sabem exatamente o que é trabalhismo e nunca ouviram falar de Alberto Pasqualini. Hoje, seu chefe é o honorável Roberto Jefferson, cujo estilo nem chega perto do perfil de Getúlio Vargas.
     O PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), tido no início como de centro-esquerda, comportou-se como um autêntico grupo neoliberal no governo FHC, e, agora, alinha-se com o apodrecido governo Temer, cuja política de “austeridade” é ultraconservadora. Já o MDB de Temer nada tem em comum com um movimento que foi capitaneado por Ulysses Guimarães, tendo se tornado um saco de gatos pardos e noturnos.
     O próprio Partido dos Trabalhadores, considerado o mais coerente ideologicamente e visto como representante da classe operária, uma vez no governo defendeu interesses de banqueiros, de algumas empreiteiras corruptas e teve seu auge no governo Dilma, que chamou o banqueiro conservador Joaquim Levy para dirigir a economia. Quanto ao PC do B, originário da” linha chinesa”, afirma defender a democracia, mas tem no seu passado a meta da ditadura do proletariado.
     É de se duvidar que exista no mundo tamanha proliferação de partidos e  tanta contradição entre os seus “princípios” e sua prática efetiva como no Brasil. Não nos referimos somente ao jogo das denominações, mas ao vazio de conteúdo programático e ideológico. Boa parte do discurso político nacional reflete a ignorância em relação a qualquer filosofia, ética e fundamentos da política.
    Na Europa, o presidente francês Macron já citou o filósofo liberal Bertrand de Jouvenel com facilidade; os alemães social democratas lembram a filosofia de Jurgen Habermas ou mesmo recordam seus sólidos antecessores políticos, como Willy Brandt. Já os conservadores não hesitam em evocar Conrad Adenauer e, quanto aos ingleses, falam com naturalidade do filósofo liberal anglo-austríaco Karl Popper e de Winston Churchill, o seu grande estadista.
    É claro que, na Europa, existem o fisiologismo eventual e a estupidez dos neofascistas franceses ou, nos EUA, a de Donald Trump. Mas isso não é a regra dos partidos tradicionais nem do eleitorado que demonstra alguma fidelidade.
     Em nosso País, falta-nos uma tradição ideológica nítida, fundada não em reações epidérmicas, mas em pensamento. Nossos partidos têm programas frouxos, que oscilam em expressar interesses ou motivos eleitorais de ocasião.
    Boa parte do mantra anticomunista e anticorrupção que anima a direita vem dessa estreiteza de pensamento, que estimula fantasias simplistas como as dos eleitores de Bolsonaro e as do cabo Dalciolo, esse novo emergente da estupidez nacional, que ganhou uma audiência súbita e fugaz.
    Para esses, a política se resume a uma luta entre bandidos (comunistas e imorais) e a polícia (incluídos aí procuradores de justiça e juízes). Os mais sofisticados entre os conservadores falam do perigo “populista” na América Latina que precisa ser combatido com a extirpação de seus líderes e a promoção de uma “centro direita” privatista e pró-norte-americana. Desse ponto-de-vista, a URSAL é o populismo. Esquecem que pode existir populistas de direita, como fascistas, neonazistas, bolsonarianos, capitães, coronéis e generais latino-americanos, além de malucos do tipo de Trump.
    Em épocas de crise do capitalismo, que se sucedem em ondas recentes, o aparecimento de fantasias autoritárias é tão comum quanto as Fake News hoje em voga. As pessoas inseguras preferem crer em teorias conspiratórias e buscar soluções “rápidas e simples” para a segurança pública, o desemprego e a instabilidade social e econômica.
   Grande parte dos que seguiram Hitler nos anos 30 não se baseavam em nenhuma teoria filosófica nazista nem tinham tanta clareza do que faziam, mesmo existindo tradições social-democráticas na Alemanha, bem como liberais e monárquicas, todas foram diluídas pela salada ideológica oferecida pelo “tio Adolf”. Ele foi seguido, em grande parte, por gente motivada por impulsos reativos ao caos, à inflação e à ameaça de miséria permanente.
    Nossa salada ideológica não tem a maionese filosófica francesa nem o molho democrático inglês ou mesmo o chucrute prático alemão. Nossa salada tropical é salpicada de violência, fantasias mitômanas e ignorância profunda. Precisamos de muito cuidado nesse momento eleitoral pelo qual passamos.
   

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

BOLSONARIO, O MITO




                                                                Reinaldo Lobo

           A mitologia grega, com seus deuses e semideuses trágicos, está na base da cultura ocidental. Ainda hoje nos inspira. Todos sabemos que um mito tem um significado histórico, antropológico, filosófico e até político. O Mito da Caverna, de Platão, é ensinado nas escolas como forma de acesso a uma concepção da Razão. A revelação da verdade foi demonstrada muitas vezes por meio dos mitos, como o célebre mito de Édipo.
         Essa é a face nobre do mito, mas os dicionários nos ensinam que há um lado sombrio, com o sentido de pura mentira ou de “história da carochinha”. Os meios de comunicação veiculam mentiras nesse sentido mítico todos os dias.
        Os adeptos do capitão Jair Messias Bolsonaro, atual candidato à presidência por um certo “Partido Social Liberal”, perceberam, apesar de pouco sutis, essa ambiguidade da palavra. Inventaram a atribuição de “mito” a esse deputado bizarro, dublê de militar e político, antes desconhecido em sua longa permanência na Câmara Federal desde 1991.
        A palavra poderia conferir a essa figura do “baixo clero” político uma aura de potência, autoridade e coragem, como os heróis gregos. Nessa construção, o ex- capitão do Exército, aposentado em circunstâncias nebulosas, apareceria como um herói da luta contra corrupção, uma vez que foi citado pelo ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa, como um dos únicos-- ao lado de Paulo Maluf!--, que não teria recebido a propina do “mensalão”. Além disso, a palavra alimentaria a narrativa de que lutou, durante a Ditadura, contra o “terrorismo”.
       No entanto, as contradições reveladas na entrevista ao Roda Viva, da TV Cultura em São Paulo, mostraram que o ídolo não se sustenta. Aliado próximo do ex-deputado Eduardo Cunha, o Rei do Baixo Clero, de quem foi próximo durante vários anos, recebeu de forma indireta uma verba da JBS, que se apressou em devolver para o seu partido de então , o PP de Paulo Maluf e Ciro Nogueira, uma vez que a Lava Jato já estava em curso e os escândalos estouravam. Não há notícias de como pagou suas sucessivas campanhas a deputado federal nas legislaturas anteriores.
       Perguntado pela repórter Daniela Lima, da Folha, sobre a sua defesa do porte de armas pelo cidadão comum como forma de defesa contra os bandidos, enroscou-se de vez na resposta.  A jornalista fez uma pesquisa sobre ele e mostrou que , em 1995, o capitão treinado Bolsonaro foi assaltado numa rua do Rio de Janeiro e os assaltantes levaram sua arma e sua moto. Tentou explicar que foi “rendido” pelos bandidos num sinal de trânsito e que o seu batalhão de origem recuperou depois  a arma e a moto, sem responder de fato à questão.  Mas a repórter insistiu perguntando:  se ele que era treinado no uso de armas e defesa militar, foi rendido pelos bandidos, o que se poderia dizer do cidadão comum carregando uma arma?
        Os mitos da valentia militar e do herói messiânico também caíram no chão junto com o seu argumento a respeito da legislação sobre  armas e segurança.
        O capitão Bolsonaro, para associar a ex-presidente Dilma Rousseff à guerrilha de Carlos Lamarca, lembrou com orgulho que combateu no Vale do Ribeira, onde esteve, de fato, sob o comando, inclusive, do ex-coronel Erasmo Dias, como parte das tropas do Exército.
       O que ele não disse é que o Exército levou o maior baile dos guerrilheiros, que chegaram a capturar oficiais e a negociar sua soltura para abrir uma saída do cerco formado por centenas de soldados e vários batalhões, além de helicópteros e forças especiais anti-guerrilha. Enquanto negociavam, comandantes tentaram localizar Lamarca, o que resultou em combates e na morte de um tenente, executado pela guerrilha.
       A derrota das Forças Armadas no Vale do Ribeira levou o coronel Erasmo Dias a ser afastado de suas funções e relegado ao papel de chefe de polícia em São Paulo. Na versão de Bolsonaro – e, provavelmente, na versão oficial do Exército-- os “terroristas” de Lamarca foram traiçoeiros, os militares as vítimas e não existiram combates propriamente, apenas uma fuga. Ora, tudo indica, segundo inúmeros relatos históricos e de ex-agentes do governo, que os combates aconteceram e o Exército levou a pior. Lamarca só seria preso e executado no interior da Bahia muito depois.
      O capitão Bolsonaro não tem muito do que se orgulhar do desempenho no Vale do Ribeira nem em sua carreira militar de um modo geral.  Além de inventar versões históricas e dizer que apresentou 500 projetos de Lei nunca aceitos no Congresso-- quando, na verdade, admitiu na TV que foram 176 e nenhum foi aprovado--, sua carreira política não tem sido exatamente um sucesso. Mas é preciso admitir que sua equipe tem habilidade em criar “factoides” para impressionar a mídia e causar polêmica, como aquela foto dele ensinando crianças a atirar e fazendo gestos agressivos.
       O mito Bolsonaro é o resultado de vários fatores, sendo o principal a desilusão da população com os políticos em geral. Ele se apresenta como a única alternativa “fora do sistema” civil da chamada Nova República, agora em estado falimentar. As acusações de corrupção contra ele nunca apresentaram flagrantes e são relativamente pequenas.
       Seu discurso, se é que se pode chamar de discurso, é policialesco e se apresenta como um fruto da Operação Lava Jato, de caça aos políticos. A questão da segurança no País produz uma espécie de terror na classe média e também entre os pobres, que veem na fala de tom brutal uma única via simples para sairmos da guerra civil como a do Rio de Janeiro.
      Um fato inegável é que, desde 2013, quando os conservadores e a oligarquia dominante empalmaram um movimento de massas, pela primeira vez em décadas essas forças conseguem ter uma audiência. Existe hoje um público à direita que entende a política como uma luta entre a polícia e os bandidos, e ninguém apela melhor a essa demagogia simples.
       Bolsonaro não é um mito, mas uma “história da carochinha”. No entanto, tem o apoio de forças poderosas para exercer o seu populismo conservador e, se não for detido em sua ascensão eleitoral, causará sérios estragos à democracia.   Depois, será tarde, e nenhum de nós poderá dizer que não foi avisado.


quinta-feira, 19 de julho de 2018

A POLÍTICA DAS PAIXÕES



                                                                 Reinaldo Lobo*

      
           Os fascistas são os conservadores que mais têm medo. Medo da instabilidade econômica sob o capitalismo, medo de perder privilégios, medo do caos, medo do outro, do que pode mudar na vida,  do que é diferente,  do que se projetou em um inimigo escolhido como bode expiatório, medo da insegurança em geral e da vingança daqueles que submeteram infundindo o medo.
           Um filme em cartaz nas boas salas de cinema e na internet intitulado “1945” ilustra bem essa paixão oculta no coração dos opressores fascistas e de seus aliados: numa cidade húngara, mas que poderia ser qualquer uma do centro leste europeu ocupada pelos nazistas durante a Segunda Guerra, reaparecem após a libertação da ocupação alemã dois judeus ortodoxos que ali moraram. Os homens carregam duas misteriosas caixas que atemorizam os moradores locais: o que conteriam? Armas para a vingança contra a população aderida ao nazismo e que os delatou, roubou-lhes as residências e fingiu esquecer o que fez?
            A presença dos dois judeus causa um pânico nos moradores, pois aparentemente os novos ocupantes, os libertadores soviéticos, poderiam ter permitido que eles se vingassem. A insegurança se estabelece, a culpa leva uma personagem ao suicídio, as outras vivem conflitos aterrorizantes em relação àquelas caixas misteriosas e se preparam para o pior. O final é surpreendente, não vou contar para não dar “spoiler”, mas ilustra bem como paixões primitivas, como o medo e o ódio, levando à submissão irracional, ignoram o simbólico e a cultura.
          Os que não chegam a ser fascistas também têm medo da instabilidade na própria sociedade em que vivem, submetem-se e, muitas vezes, apoiam cegamente tiranias ou mesmo governos oligárquicos sob regime democrático. São os que colocam a felicidade e a segurança em primeiro lugar, como se esses fossem os principais objetivos da política e da sociabilidade. A principal paixão humana manipulada pelos governos, sejam autoritários, totalitários e mesmo hierarquias de regimes democráticos, é essa emoção subalterna, muitas vezes acompanhada de culpa, que leva a uma de servidão voluntária.
          Quem está submetido talvez imagine que está feliz e em segurança, e nega que o principal objetivo da política não seja nem a felicidade nem a segurança, mas a liberdade.
          Se aceitarmos a liberdade e a autonomia humanas como a essência da política, considerando necessária a criação de instituições que promovam realmente a liberdade, sem mentirinhas, não será o caso criarmos uma “boa sociedade” ou mesmo sem miséria. Mas seria necessário criar uma sociedade verdadeiramente livre, onde as paixões primitivas não sejam manipuladas para comandar as massas como bandos de incompetentes que não sabem o que desejam ou não possam escolher sobre suas próprias vidas. Uma sociedade autônoma será a mais consciente possível de suas necessidades, problemas, objetivos sociais e práticos. Não será perfeita, mas livre.
           Há lugares no norte do mundo, como Islândia, Finlândia, Noruega, Dinamarca e mesmo Suécia e Holanda, onde alguns experimentos que consistem em deixar a população governar quase diretamente deram excelentes resultados. Na Islândia, por exemplo, na crise do capitalismo deflagrada em 2008 e que afetou a todos até agora, a população tirou simplesmente a governança dos bancos, reuniu-se em assembleias autônomas e passou a gerir as decisões econômicas. A Islândia foi um dos primeiros, se não o primeiro país europeu a sair da crise.
            Ora, dirão, são países pequenos, fáceis de administrar e de aplicar “utopias”. Os resultados apresentados, como na Dinamarca, que em breve será o primeiro país totalmente sustentável do planeta, não são utópicos, mas concretos. O que possibilitou esses resultados não foi apenas o tamanho do território, mas uma história de conquistas sociais e políticas democráticas que vem de séculos.
           Além disso, a paixão política que alimenta essas decisões não é o medo, mas escolhas conscientes calcadas nas necessidades reais da população e nas discussões abertas de todos os canais da sociedade, onde o Estado existe, mas a serviço da população e não sobre a comunidade. São sociedades mistas, de economias “socialista” e “capitalista” ao mesmo tempo. Não são puras, nem perfeitas, mas perfectíveis em função do regime democrático.
          No Brasil, é fácil perceber dois fenômenos contrários a essa orientação: o clima de medo e de incerteza, de um lado, e a demanda de segurança, de “intervenção militar” e autoritarismo. Nem passa pela cabeça da maioria dos nossos políticos no poder convidar sequer a população para uma consulta popular ou abrir os canais de participação para a maioria opinar de verdade. Precisam manter as regras estritas das formas de representação atual, absolutamente falidas, porque têm...medo.  E, principalmente, porque eles seriam os primeiros defenestrados se a população tivesse voz e porque não defendem o bem geral, mas interesses particulares.
          Basta lembrar o que estão fazendo com a lei dos agrotóxicos, que é exatamente o oposto do que o mundo civilizado luta para atingir: a sustentabilidade e a sobrevivência geral, não apenas a do agronegócio.
          Enquanto o Brasil for manipulado pelo medo e a insegurança, teremos salvadores da Pátria fascistas, populistas e falsos democratas, oligarcas de luxo.
         Há um mito entre nós --de direita e de esquerda-- que consiste em espalhar a ideia de mais segurança, de salvação pela educação e pela redução gradual da miséria. O que esse mito esconde é que precisamos primeiro, justamente ao contrário, de uma sociedade politicamente mais livre, onde possa florescer a escolha da maioria, a mais ampla e participante possíveis, para termos os resultados práticos desejados.
       Para essa inversão dos valores e para a autoeducação política do povo, só uma paixão é necessária – a paixão da liberdade.
    

quarta-feira, 4 de julho de 2018

INVEJA NA COPA


  

                                                                    Reinaldo Lobo

       A inveja é um “monstro de olhos verdes”, disse Shakespeare – no “Otelo”, descrevendo-a sem nomeá-la exatamente e encarnada na personagem de Iago. Esse monstro é capaz de atormentar, corroer por dentro e até matar. Tem tudo a ver com olhar: a palavra “invidia” vem do latim, derivada do verbo “videor”, que quer dizer ver e, curiosamente, também ser visto. O olhar possessivo de um ser humano – todos nós—tomado pela inveja vê, vasculha, examina nos detalhes o que é do outro e que deseja para si. E ataca. A inveja dá medo.
       Não é por acaso que muitas pessoas, ao se sentirem invejadas por possuir um bem ou qualidades que as distinguem, fazem-se de humildes, como se pedissem desculpas. Têm medo de despertar ou confirmar a inveja dos outros. Algumas portam-se, ao contrário, de forma arrogante, mostrando seus bens e atributos admiráveis, defendendo-se pelo reasseguramento e o exibicionismo.
        Todos sabemos que ninguém quer se sentir um invejoso contumaz, mas o sentimento é universal. O mais difícil para contê-lo é quando está completamente mergulhado no inconsciente: a pessoa o nega com insistência, mas atua de modo a expressá-lo na conduta.
        No fundo, quem inveja se sente inferiorizado, sofre no íntimo por isso, sem se dar conta de que a inveja é apenas o desejo de possuir algo que pertence ao outro. Revela, é verdade,  o mal-estar pela felicidade do outro e por própria posição de inferioridade, por não ter o que o outro tem—e avaliar que nunca terá--, mas é um sentimento demasiado humano. A inveja envolve cobiça, voracidade e narcisismo ferido, isto é, orgulho atingido e sentimento de humilhação. Se assumida conscientemente, torna-se mais benigna.
       Não é uma emoção bonita, mas, no fundo, a inveja é admiração por linhas tortas. Para que a inveja leve a uma ação contra o objeto ou a pessoa admirada, depende do montante de raiva e de cobiça que envolve esse desejo, assim como do sentimento de inferioridade de quem cobiça. Daí os patuás de proteção, de “corpo fechado” contra o “olho gordo”, os esconjuros e as imprecações das religiões e crenças primitivas.
        É possível distinguir com certa facilidade um olhar invejoso, bem como uma fala carregada de inveja. Os jogadores mais famosos da Copa do Mundo são um alvo predileto dos comentários invejosos dos chamados cronistas esportivos e das pessoas em geral. Idealizados e admirados, são automaticamente invejados pelo público e, quando falham, é descarregado um desprezo violento ou um rebaixamento de sua condição de ídolos.
         O pavão é um bicho bonito de se ver, de plumagem colorida e de porte altivo, desfila sua beleza, mas um invejoso vai destacar um detalhe feioso: o pé do pavão. O pavão é lindo, mas o pé é feio – dirá o invejoso meticuloso.
          Há alguns dias, comentando uma declaração de alguém da equipe técnica da Seleção, que dizia a respeito do jogador Neymar que ele havia sofrido muito após uma cirurgia que o retirou dos treinos e dos campos por três meses, um cronista esportivo não hesitou em dizer na TV:
          -- Ele diz que sofreu, mas foi fotografado com a namorada Bruna Marquezine no colo em sua cadeira de rodas!
          Seguiu-se um muxoxo de desprezo no rosto do cronista. Ele ignorou o simples fato de que para um jogador de futebol no auge da juventude e da carreira brilhante ficar fora de sua atividade por três meses já é um sofrimento, além da cirurgia, da dor física, da difícil e incerta recuperação.
          E o cabelo de Neymar? Um capricho juvenil dele, um toque na imagem para fixá-la chamando a atenção, provocou uma torrente de ataques, de um tipo parecido com os dirigidos ao pé do pavão.
          Lembro-me de um episódio do célebre Ronaldo, o “Fenômeno”, que comprou certa vez uma Ferrari na Europa, no auge de sua carreira vitoriosa, e trouxe para o Rio de Janeiro, onde fez um rápido passeio à beira das praias. A imprensa caiu em cima dele com tal fúria, com afirmações sobre a indiferença   pelos pobres e a miséria no País. Não havia jornalista, esportivo ou não, que não falasse do assunto. Um cronista escreveu que Ronaldo não era lá essas coisas como jogador para merecer uma Ferrari e, ainda mais, exibir-se acintosamente pelo Rio.
         O tal cronista se esqueceu que só não ganhamos, possivelmente, a Taça em 1998 porque Ronaldo não estava em campo na final, acometido de uma doença, e que ele acabaria por vencer a Copa de 2002 com uma atuação que o consagrou como um dos maiores jogadores da história do futebol.
         Não deu outra: o coitado do Ronaldo (sim, nesse caso coitado) livrou-se da Ferrari e, para recuperar sua imagem desgastada, passou a mostrar as benemerências que fazia aos pobres e a visitar crianças doentes em hospitais.
         A frase do grande Tom Jobim --” No Brasil, o sucesso é uma ofensa” -- não vale só para o Brasil, ainda que, aqui, a desigualdade e a injustiça social tendam a  encobrir as manifestações invejosas com uma aura de respeitabilidade. É como se a inveja se justificasse pelas condições do País. Como a bíblica ira dos justos, a inveja dos cronistas esportivos e do público contra os ídolos do futebol é bastante cruel.
        Muitas vezes, a inveja provém do desamparo que a pessoa sofreu na infância, num ambiente que pode ter falhado com ela, levando-a a um sentimento de automenosprezo e fragilidade. Isso a faz atacar os “mais fortes”. Impede também de ver o outro em sua totalidade e a trajetória de vida que teve.
         Ronaldo -- como Romário, Neymar e outros-- saiu de vila pobre da periferia e passou, por seu trabalho, a ganhar milhões numa profissão que é uma das mais bem remuneradas do planeta. Não exploraram ninguém, não roubaram, não usaram o caminho da corrupção. Só jogaram bem.
         O contrário da inveja, dizia Melanie Klein, é a gratidão. Quando atacamos a mão que nos alimenta – com comida, amor, felicidade, prazer, alegria, identificação com o êxito, etc.—estamos sendo ingratos e incapazes de reparação pelo que recebemos e que podemos destruir. Há um ditado árabe que diz: “Por que me maltratas, se eu nunca te fiz bem”. Temos uma inclinação a maltratar aqueles que nos fazem bem.
        Por mais restrições que se faça a Neymar, Messi, Cristiano Ronaldo e outros craques do esporte, alguém que goste de futebol pode dizer, em sã consciência, que eles não deram aos torcedores grande momentos de identificação no êxito e muita alegria?

quinta-feira, 14 de junho de 2018

UMA UTOPIA SINISTRA


                                                                        
                                                                                 Reinaldo Lobo*

             13 de dezembro de 2018. O Brasil ganhou a Copa, as festas já cessaram, sobraram apenas algumas manifestações de patriotas e homens de bem, vestindo camisas amarelas e pedindo uma “intervenção militar”. Mas o país está agitado pelas incertezas de um pronunciamento militar feito pelo general Sérgio Etchegoyen, do Gabinete de Segurança Institucional, falando sobre as eleições realizadas em outubro e novembro
             Nesse mesmo dia, o general Eduardo Villas-Bôas, o militar mais “liberal” e simpático, comandante supremo do Exército, falando em nome das Três Armas, vem a público no horário nobre em cadeia nacional de rádio e TV , para dizer: 
            “Diante do caos causado pelas eleições fraudulentas, na qual um candidato da Ordem foi ilegalmente derrotado por um perigoso populista, somos obrigados a atender aos apelos das forças vivas da Nação para restaurar a democracia em sua pureza, afastando a corrupção e a subversão”.
            As “forças vivas da Nação” são -- como sempre-- os banqueiros, os empresários, as grandes corporações, o Mercado , uma parte da classe média e, desta vez, incluem um tanto de povo pobre desiludido com os políticos em geral. Depois de algumas reuniões com seus representantes aceitos pelos militares e consultas junto à Embaixada dos EUA, pedindo o consenso de Washington, o golpe de Estado foi consumado.
           O Congresso é cercado pelas tropas e fechado. O mesmo ocorre com o Palácio do Planalto e o STF. Centenas de deputados, ministros e funcionários do Governo somem de Brasília, alguns deles se exilam em Miami, com receio de serem presos. Vários parlamentares da direita religiosa, do agronegócio e da área de segurança procuram se aproximar dos militares que conhecem ou a quem têm acesso, procurando permanecer e reforçar o novo sistema.
          Dois ministros do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski e Dias Tóffoli, suspeitos de conspirarem com o PT antes e depois das eleições, são imediatamente cassados depostos e levados em condução coercitiva. O ex-presidente Lula é transferido da Polícia Federal, onde estava preso sem poder concorrer desde antes das eleições malogradas. Seu destino é ignorado, mas supõe-se que esteja sendo interrogado em algum quartel, com a permissão do Ministério Público de Curitiba.
           A ministra Carmen Lúcia, ex-presidente do STF, é reconduzida ao cargo por sua probidade e atuação decisiva na prisão de Lula. O juiz paranaense Sergio Moro é convidado a assumir o Ministério da Justiça. Também é sondado, com o plano B, Alexandre de Moraes, ministro do Supremo, também afeito às questões de polícia, repressão e manutenção da ordem.
           Os militares se dividem quanto às primeiras medidas junto à equipe econômica, mantida pelos banqueiros e acrescida de alguns economistas como Armínio Fraga e outros ligados ao Mercado. Um grupo nacionalista e proto-fascista propõe a manutenção da Petrobrás, o outro grupo, considerado mais “liberal” e americanófilo, sugere a imediata privatização e completa entrega do pré-sal à exploração estrangeira, na linha do que já começara com a Exxon e algumas companhias europeias. Surpreendentemente, o capitão Jair Bolsonaro, ex-candidato à Presidência, que se dizia nacionalista, passa a se alinhar com o grupo “liberal” e americanófilo.
          Uma censura prévia é imediatamente imposta à imprensa escrita e televisiva, assim como se instala uma comissão de investigação sobre o uso da internet e das redes sociais, que continuam parcialmente ativas após o golpe de Estado militar. Greves, sobretudo gerais, nem pensar. Os sindicatos sofreram intervenções e boa parte dos seus líderes, exceto aqueles patronais que pediram “intervenção militar Já”, já está presa
          As prisões, fugas e desaparecimentos prosseguem em todo o território nacional, bem como os exílios em embaixadas. As preferidas pelos políticos de esquerda são as de Portugal, França e Uruguai. Os da direita, acusados apenas  de corrupção e não de subversão, preferem os Estados Unidos, algumas ilhas no Caribe, o Panamá e , na Europa,  as ilhas Jersey , Mônaco, Luxemburgo e a Suíça, claro.
          O ex-presidente Temer desapareceu. Circulam boatos de que estaria no Líbano, terra de origem de sua família, ou então, o que é mais provável, estaria na garagem do Palácio do Planalto ou no Jaburu, negociando -- ao lado do ministro Eliseu Padilha, do deputado Carlos Marun e de sua Marcela--, uma possível composição com a Junta Militar para ter um ministério e salvar seu patrimônio de um possível Inquérito Policial Militar (IPM).
          Esse cenário futuro próximo descrito acima é distópico, isto é, o contrário de uma utopia. Sugere uma ditadura sinistra tomando conta em breve do Brasil. O pior é que esse pesadelo é, neste momento, o sonho de muita gente.
          O que essas pessoas mal informadas não sabem é que isso nos atiraria na lata do lixo do mundo e da história, perderíamos todo o prestígio internacional, seres humanos seriam injustamente detidos e humilhados nesse processo, quando não mortos. As agências de Direitos Humanos do mundo todo, a começar pela ONU, condenariam o País e o levariam aos Tribunais internacionais.
        Do ponto de vista econômico, haveria uma grande retração, diversos países parariam, no primeiro momento, de comprar produtos brasileiros e se aprofundaria a crise recessiva em que estamos mergulhados. Como o Mercado iria esperar as declarações “liberais” dos militares e de seus servidores para se recuperar, a médio prazo talvez os negócios se ativassem. Mas isso não significaria, como dantes se esperava, uma recuperação do crescimento nem a retomada plena dos negócios em escala mundial e multilateral.
      O Brasil iria depender dos acordos bilaterais com o governo Trump, que, certamente, seria dos primeiros a reconhecer a Junta Militar. O gol contra nacional nos tornaria uma pátria apenas de chuteiras e um ponto ficaria acertado e assente: o País assumiria francamente o seu papel de República das Bananas.