quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

A MAIORIA SILENCIADA

  

                                                              Reinaldo Lobo*

    Muitas pessoas têm preconceitos, talvez a maioria delas. Ideias politicamente incorretas sobre raça, gênero sexual, imigrantes, pobreza e democracia. Até há poucos anos, enunciar publicamente essas opiniões era uma vergonha. Poderia prejudicar alguém no trabalho ou nas relações sociais. A maioria se submetia a uma era de avanço dos direitos civis e humanos e ficava silenciosa. Mas se sentia, ao que tudo indica, injustamente silenciada.
     Com a crise econômica internacional, o fracasso da chamada globalização em promover a integração, a harmonia cultural e a universalização dos valores, vai surgindo aos poucos o retorno do reprimido. A catarse promovida nas eleições norte-americanas por Donald Trump tem acelerado o processo de virada à direita no mundo dos valores e dos costumes.
      Há alguns dias, um veterano jornalista ligado ao PSDB e ao Movimento Contra a Corrupção soltou esta pérola na sua rede social :’Homem que é homem não casa com homem”. Recebeu algumas “curtidas” de seus semelhantes. A figura criou coragem e veio a público. Saiu do armário. Assumiu sua homofobia, como se fizesse uma piada. 
     Algumas décadas atrás, seu comentário seria considerado perfeitamente natural, motivo de orgulho entre os pares. Mesmo entre jornalistas, profissionais considerados na vanguarda da opinião e dos valores, o machismo, o racismo, o conservadorismo em relação aos jovens, às drogas e às mulheres era quase o “normal”.
     Depois da revolução feminina e da entrada massiva das mulheres no mundo do trabalho, o quadro foi mudado e o estupro, por exemplo, entrou na lista das coisas muito feias. Antes, não constava.
     O senso comum, que a escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir chamava ironicamente de “sabedoria das nações”, prescrevia que as mulheres deveriam ser “belas, recatadas e do lar”. E ninguém sentia arrepios ou se escandalizava ao ouvir que “lugar de mulher é na cozinha” ou que “homem com homem dá lobisomem” e “mulher com mulher dá jacaré”.
      O silêncio obsequioso das maiorias deu-se em função da força das minorias em países avançados e com o respeito aos direitos humanos que se seguiu à sucessão de ditaduras e de governos autoritários na América Latina, Ásia e África, mas também na Europa e nos Estados Unidos. Os governos Nixon, Reagan, e Bush, nos EUA, Thatcher na Inglaterra, e o advento da AIDS foram sinais de uma virada conservadora, cujo ápice contra a modernização foi atingido neste momento.
       A onda de emergência dos particularismos antiglobalização, a começar pela ascensão dos cristãos evangélicos e dos muçulmanos radicais, expressa a catarse das maiorias silenciadas. Nas conversas de salão, nos púlpitos e nas arenas políticas vai deixando de ser vergonhoso mostrar-se um reacionário.
      Penso que aqueles massacres estudantis sucessivos por tiroteios nas escolas norte-americanas e o de mais de 70 pessoas por um neonazista na Noruega há uma década, não são outra coisa senão um sinal (um sintoma) da emersão de algo sinistro na cultura, agora traduzido, de forma mais benigna nas urnas e em muitas partes. Mesmo a radicalização entre direita e esquerda em muitos países, inclusive em tradicionais “democracias liberais” de caráter centrista, consiste, a meu ver, em uma liberação do que fora considerado lixo político e varrido para debaixo do tapete.
      Ainda que a cultura norte-americana -- incluindo aí o faroeste do porte de armas até para adolescentes e crianças-- seja um tanto específica, não se pode descartar o fato que se desenrolava desde as décadas de 60 e 70, na forma de uma notável ascensão dos negros e de todas as minorais a posições de igualdade.
      Os brancos conservadores norte-americanos “engoliram” essa ascensão por muito tempo, mesmo porque a ideologia dominante era liberal. Os próprios republicanos chegaram a fazer concessões notáveis, integrando uma “ala gay” no partido.
       Agora, com os excluídos e os ameaçados pela globalização manifestando sua ira em muitas áreas do mundo, o recalque se rompeu. Vieram à tona a violência e os valores mais regressivos que estavam sob o manto do silêncio e da continência. As pessoas perderam a vergonha de votar num Trump, contra a paz na Colômbia no plebiscito sobre um acordo com as FARC guerrilheiras, e pela retirada da Inglaterra do Mercado Comum Europeu, essa utopia derivada do projeto de paz perpétua de Kant.
        Há um odor de fascismo no ar, sem dúvida. A democracia e a liberdade são conceitos predominantemente racionais. O nacionalismo, o racismo, a xenofobia e o ódio ao outro pertencem à categoria de paixões baixas e primitivas. Têm características emocionais infantilizadas, mal elaboradas e brutais. Sua natureza irracional é evidente: não há lógica nem argumentos sustentáveis que os justifiquem. São puros impulsos e emoções.
        No Brasil, a onda de ódio que precedeu o impeachment da presidenta Dilma tinha esses traços. O “desrecalque” de preconceitos sufocados por uma década de “lulopetismo”, de desprezo pelos pobres, revelou, sobretudo, o medo da classe média de se proletarizar, sentindo-se excluída em benefício de uma “nova classe média” criada por Lula. Esse ódio reverbera até hoje.
       Ficou patente que os ricos e os pobres se beneficiaram e surfaram na onda de crescimento econômico da era lulista, mas as classes médias, pelo menos nos seus setores mais conservadores, ficaram espremidas, sem lugar na nova ordem “socialista”—que, de socialista, nem tinha nada.
    As massas silenciadas estão cada vez mais ruidosas, despudoradas até, reivindicando seu lugar no admirável mundo novo do século XXI, mesmo que , para isso, tenham de adotar a legitimação da violência política como seu desejo explícito.

     

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

O CAPITAL DE TRUMP


                                                                      Reinaldo Lobo
    O mundo se pergunta boquiaberto de onde vem a força social e política que elegeu Donald Trump. Da classe média branca empobrecida, respondem alguns. Do “lumpen proletariado“, dizem outros. Da decepção dos mais velhos com a globalização, afirmam os sociólogos. Do medo da imigração que rouba empregos e do fracasso dos democratas em distribuir renda, insistem os economistas.
    Todos talvez tenham fragmentos de razão. O fenômeno de um arrivista chegar à presidência da maior democracia liberal do mundo, com uma linguagem confusa e inclinações fascistas, não é pouca coisa. Exige no mínimo vários ângulos de uma abordagem multidisciplinar. Mas é possível pensarmos, além disso, que os vários pedaços da realidade norte-americana não apareçam ainda como uma Gestalt mais acabada, isto é, um conjunto significativo que dê visão precisa do que está ocorrendo.
     Uma hipótese a ser considerada sobre a ascensão de Trump, assim como a respeito do Brexit, a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, é que sejam um resultado da mudança qualitativa do Capital no século XXI, gestada nas últimas décadas do século passado.  Não é difícil de entender.
      Com a avassaladora globalização que destruiu fronteiras econômicas e barreiras culturais, com a expansão de monopólios transnacionais e a política neoliberal que vigorou em mais de 160 países do planeta nas últimas décadas do século XX, não mudou só a forma do capitalismo mundial. Mudou a sua própria composição. Sua natureza mais íntima.  Mudaram as relações de produção e as forças produtivas, deslocando seu eixo lógico. Mudou a estrutura econômica e social, com consequências inevitáveis na política.
      Nos tempos de constituição e de desenvolvimento do capitalismo mundial, em sua fase parcialmente globalizada, a sua contradição principal era entre o Capital e o Trabalho, tal como foi diagnosticada por Marx e vários outros economistas. As classes, as hierarquias, os grupos de pressão, os sindicatos, as lutas socais, a produção e a apropriação, giravam em torno desse núcleo lógico.
      Hoje o eixo mudou, após as crises sucessivas iniciadas lá por 1914, passando por 1929 e culminando em 2008, seguidas de reordenamentos, primeiro, monopolizantes, depois estatizantes, como no New Deal norte-americano e do Welfare State europeu, e mais tarde neoliberais, como nos períodos pós Reagan e Thatcher, que vem até recentemente.
       Se quisermos usar uma linguagem consagrada pelo marxismo, pode-se conjecturar que a contradição fundamental do capitalismo atual é a relação entre o crescimento econômico e o rendimento do capital. Um dos primeiros autores a notar essa relação contraditória entre renda e crescimento foi o filósofo e economista greco-francês Cornelius Castoriadis, para quem existia de longa data um mito do crescimento infinito da produção, do emprego e da tecnologia na sociedade capitalista, combinada com o consumo. Na relação com a concentração e aumento da renda, o crescimento perde, gerando um descompasso permanente e a exclusão de milhões de pessoas do processo econômico.
        Outro que fez o mesmo diagnóstico, neste caso de modo mais exaustivo e técnico, é o professor Thomas Piketty, da London School Of Economics e do MIT, hoje lecionando na École de Economie de Paris. Ele é o autor de “O Capital no Século XXI”, onde apresenta uma abundância de dados para demonstrar que a taxa de rendimento do capital supera em muito o crescimento econômico. Isso provoca uma grande concentração de renda, ao ponto de cerca de um por cento da humanidade reter o equivalente a praticamente todo o resto da riqueza mundial.
        O descompasso estrutural gera um circuito de desigualdade que, levado ao às suas últimas consequências, pode atrair os descontentes de todo o planeta para causas como as propostas por Trump ao eleitorado norte-americano de áreas falidas. As migrações, as crises cíclicas do Terceiro Mundo e a monopolização da economia em escala mundial são alguns dos efeitos extremos da crise do Capital. Os pequenos empresários do centro norte e meio leste, bem como os agricultores do meio oeste dos EUA, foram a massa de manobra do populismo de direita.
        O capitalismo é um regime que se alimenta das crises. Elas destroem mercados e abrem novas oportunidades. São conhecidos os inúmeros casos de superação das crises pela abertura de novos mercados. Uma outra forma de resolvê-las têm sido as guerras. Outra, as mudanças políticas.
       O valor principal do regime do Capital é econômico. O lucro e a renda. Os valores humanos estão em outro nível, mais baixo, de consideração. Todos sabem que o capitalismo é um regime de crises, mas nem todos têm consciência de que as crises não representam uma ameaça ao sistema, nem mesmo a sua inevitável decadência. Fazem parte de sua lógica interna e garantem sua sobrevivência. Essa é a “plasticidade” do capitalismo.
        Além de abrir ou fechar mercados, as crises cumprem a função de inovar dentro do sistema, de ocupar áreas e de destruir outras. Os bairros inteiros destruídos de algumas cidades norte-americanas, de que tanto falou Trump na campanha, comoveram o eleitorado branco empobrecido. São o resultado da globalização na área da indústria automobilística e da siderurgia.
       O medo que setores da Inglaterra têm da migração dentro da União Europeia tem o mesmo sentido sintomático de desespero diante dos resultados da internacionalização monopolista e da  concentração da renda. As populações de zonas saturadas ou deslocadas dos centros beneficiários do Capital são presas fáceis do nacionalismo e da xenofobia.

       A hora é, infelizmente, a do sucesso da direita e do extremismo fascista. 

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

A ARMA DA CRÍTICA

                                     

                                                              Reinaldo Lobo
          Os conservadores não apreciam a palavra crítica. Na melhor das hipóteses, aceitam-na acompanhada de um adjetivo: “construtiva”. Ora, não existe crítica construtiva, assim como não há uma destrutiva. Criticar é examinar as condições de possibilidade de uma situação ou de um fenômeno; é questionar, interrogar, refletir e interpretar.
         É verdade, dizia Stendhal, que um bom raciocínio ofende. Criticar é o contrário de resignar-se. Significa inquietação, pensamento com liberdade. É quase um sinônimo de pensar. “Pensar é dizer ‘não’”, mostrou o filósofo Gaston Bachelard no século passado. Sócrates, um dos primeiros grandes, foi condenado a se envenenar por ser um crítico do poder em seu tempo.
         Há algo de profundamente “negativo” na crítica. Nega o que está estabelecido, aceito ou a opacidade das aparências. Vê o que não pode ser visto facilmente. Rompe, às vezes, com o “senso comum”, mas não quer dizer “falar mal” de algo ou de alguém. Pode ser vista como um convite a destruir uma ordem social e política. Não é a própria destruição.
         A crítica acompanha -- é verdade-- muitas revoluções. Às vezes, está na origem delas. O maior filósofo do século XVIII, o alemão Immanuel Kant, foi um entusiasta da Revolução Francesa de 1789 e representou uma expressão intelectual desse movimento. Suas ideias de autonomia e igualdade identificavam-se com o lema revolucionário: “Liberté, Egalité, Fraternité”.
       Kant inaugurou toda uma filosofia moderna sobre a base da palavra crítica. Suas três perguntas básicas: “O que consigo saber? O que posso fazer? O que posso esperar? ”, constituem uma crítica do conhecimento, da ética e da história.  Dizia que aquele que provou uma vez da crítica fica enojado para sempre de todo palavreado dogmático. Era radicalmente um democrata e um defensor da liberdade de pensamento.
        Já Karl Marx, autor que inspiraria a maior revolução do século XX, na Rússia de 1917, postulava claramente na sua “Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, que “a arma da crítica não pode substituir, é claro, a crítica das armas”.
      A alusão direta à necessidade prática de uma revolução para mudar a sociedade, mesmo pelas armas, era uma crítica aos hegelianos de esquerda, que se limitavam a questionar as instituições no plano das ideias, sem trazer a filosofia para a terra, ao plano das coisas e da ação.
       No entanto, Marx não desvalorizava a luta com palavras. Foi jornalista por um bom tempo, escrevendo inúmeros artigos de análise do capitalismo, antes e depois de publicar o célebre “Manifesto Comunista”, de 1848 e, mais tarde, “O Capital”, em 1867. Este último tinha como subtítulo “Crítica da Economia Política”
       Tanto Kant quanto Marx disseram que o mundo, depois das grandes revoluções, nunca mais poderia ser o mesmo. Não seria mais possível pensar como se pensava antes. Efeito da crítica e de sua realização prática.
       Os conservadores diriam que, pelo menos, o comunismo preconizado pela revolução russa acabou. Sem dúvida, o comunismo pertence hoje ao passado. Mas, como sustentaram dois filósofos – digamos-- pós-comunistas, Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, a questão do comunismo sobreviveu ao seu naufrágio: ela permanece no coração do nosso tempo.
      Estão aí, à luz do dia, os problemas da injustiça social, da desigualdade, da exploração, da concentração do Capital nas mãos de um por cento da população mundial, da escassez, das crises sucessivas do capitalismo, da anarquia do consumo desenfreado, da destruição da natureza em nome do lucro, da falta de fraternidade e de paz nas sociedades atuais.
      O pensamento conservador está certo ao fazer a sua crítica dos resultados da revolução comunista, cuja forte atração no século XX era menos inspirada nas promessas de felicidade social do que na oportunidade oferecida a uma esquerda pretensamente revolucionária de criar um Estado de tipo totalitário.
      Não foi possível reformar por dentro os regimes que reivindicavam o nome de comunistas e desabaram em sua maioria por inconsistência. Decepcionaram o assim chamado proletariado, a classe que assumiria o poder para “acabar com todas as classes”. Destruíram o sonho marxiano de uma sociedade em que se articulariam a liberdade e a igualdade, a democracia e a socialização dos meios de produção.
     O que os conservadores ainda não entenderam é que o fenômeno comunista não pode ser inteligível nem como um parêntese na história, uma espécie de aberração saída da “cabeça insana” de Marx, nem como um produto da necessidade – nasceu e se articulou da conjunção imprevisível de formas heterogêneas de organização, de ação e de pensamentos no mundo moderno, como disse Lefort.
   Para compreender o comunismo, assim como para apreender a complexidade do capitalismo, é preciso lançar um olhar abrangente sobre a sua realidade concreta, sobre os fatos intrincados – sociológicos, políticos, econômicos, jurídicos, morais, psíquicos – que lhe conferem sua especificidade. Não se pode esquecer também que o comunismo nasceu da crítica ao capitalismo, o que implica vários elementos de identificação inconscientes e involuntários. A própria emergência de uma classe dominante de burocratas e de dirigentes pode ser parte desse fenômeno.
     Estão enganados os que reduziram o comunismo à existência de um partido único ou mesmo ao poder de uma ideologia, explicando esses dois fatores à luz do efeito de sua decadência. A crítica precisa ser renovada também sobre esse aspecto.
     O capitalismo, por sua vez, parece eterno e indestrutível no mundo contemporâneo, apesar de terremotos sucessivos. Será eterno?
     A falta de alternativa aparente não elimina a crítica. Pode-se dizer que o capitalismo é um regime de crise permanente, tal o grau de instabilidade e de barbárie que incrementa. Não despareceram, a despeito do fim do comunismo, nenhum dos elementos contraditórios das sociedades regidas pelo Capital.
     Se a crítica das armas não é possível no momento, a arma da crítica não perdeu sua vigência. Lutar com palavras, como dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade, parece ser “a luta mais vã/ no entanto, lutamos/ mal rompe a manhã”. 

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

CURIOSIDADE

  

                                                    Reinaldo Lobo

    Quando um jornalista perguntou ao célebre historiador inglês Arnold Toynbee por que se deu ao trabalho de escrever aos 80 anos um livro de mais de 1000 páginas sobre o antigo Egito, em lugar de estar gozando de sua aposentadoria, a resposta foi: “Curiosidade”.
    Essa inquietude mental de perguntar, pesquisar e procurar respostas é um elemento comum nas ciências, nas artes e na filosofia. A curiosidade está presente em todas elas. Há um caráter mais ou menos desinteressado nessa atitude, o que torna diferentes o desejo de saber e a simples fofoca. Quanto mais desinteressada, mais eficiente, livre e produtiva será uma investigação.
    Alguns psicanalistas falaram -- Melanie Klein entre eles-- na existência de um “instinto epistemofílico” que empurraria o ser humano, desde criancinha, para amar e buscar o conhecimento. É difícil pensar num instinto que tenha uma direção que levaria ao teorema de Pitágoras. Por definição, um instinto é apenas um impulso virtual, biologicamente determinado. Instinto é o contrário de pensar. Um instinto “do pensar” chega a parecer um contrassenso.
    No início da psicanálise, havia “instinto” para muitas coisas complexas que não eram muito bem conhecidas. O próprio Freud chama sua teoria dos instintos de “nossa mitologia”. Não há dúvida, porém, de que as crianças têm uma grande curiosidade sobre o mundo que estão descobrindo, um forte impulso para a integração de informações e para “ir para a frente “, atrás do próprio desenvolvimento.
    Foi Klein quem chamou a atenção pela primeira vez, e lamentou, a perda da curiosidade que a sociedade impõe àquela criancinha que olha fascinada para as próprias mãos, como se as estudasse. Ou que explora o seio da mãe como um território admirado e a ser conquistado. À medida em que crescem, as crianças submetem-se à autoridade dos pais e dos adultos em geral. Estes, às vezes embaraçados com as perguntas infantis, tendem a “satisfazer” sua curiosidade com respostas prontas, crenças religiosas e preconceitos.
   Exemplos como o de Toynbee costumam ser, infelizmente, raros. A proverbial curiosidade das crianças é sempre ameaçada pelas respostas dos pais ou dos adultos em geral, a começar pelos professores. As crianças consideram, até por sua dependência, que os adultos são portadores de um suposto saber. No fim das contas, é com eles que vão aprender o que é necessário para a vida em sociedade. Mas todos sabemos que os adultos são incapazes de dar explicações realmente satisfatórias a algumas demandas das crianças.
     Por exemplo, o conhecimento da sexualidade: as respostas costumam ser apenas destinadas a interromper as perguntas inquietantes das crianças, mas não chegam a explicar adequadamente o que leva as pessoas a fazerem amor ou a verdadeira origem dos bebês. A história das “sementinhas” inoculadas pelo papai na mamãe é uma caricatura de uma exposição fria de um processo científico ou a explanação da atividade dos cozinheiros numa aula gourmet. Às vezes, vem acompanhada de uma ressalva: papai faz isso na mamãe por amor. 
      Sejam as crianças enervantes, divertidas, grudentas ou mesmo “reflexivas”, surge nos adultos um desconforto pelas perguntas acachapantes, que leva à imposição da autoridade por meio da linguagem da “gente grande”. A linguagem delimita um território do que pode ser compreendido, assim como do que não pode ser ultrapassado.
     Uma vez circunscritos os limites, os pequenos tendem a seguir o curso da socialização até, pelo menos, à pré-adolescência e à rebeldia frequente da crise adolescente. Mas, mesmo aí, a sociedade foi internalizada com seus valores, tecnologias e recursos disponíveis para “matar a curiosidade”-- expressão ambígua que tem pelo menos dois significados: satisfazer as dúvidas e assassinar a atitude mental de inquirir.
       A curiosidade também tem pelo menos dois lados, um deles arrogante e destrutivo; o outro, criativo. Um é de fechamento, o outro de abertura para a imaginação.
      No mito de Édipo, dramatizado pela peça de Sófocles, há um herói que quer tudo saber, investigar até o fim quem matou o Rei num incidente na estrada. Deseja a verdade. O sábio Tirésias, como um analista, mostra que a curiosidade do herói poderá levá-lo a descobertas muito dolorosas. Édipo insiste e, no fim, descobre que matou seu próprio pai sem saber quem era e que casou com a mãe, cometendo parricídio e incesto. Sua arrogância em não parar de pesquisar jogou-o na desgraça. Ele decide “matar sua curiosidade” cegando-se para sempre.
     Essa interpretação do mito edípico, traçada em linhas gerais pelo psicanalista britânico Wilfred Bion, pode ser acrescida do comentário de que a atividade do conhecer, quando é marcada por uma gratuidade como em Toynbee, não é motivada inconscientemente apenas por culpa, mas por reparação e sublimação. Isso leva o ser humano a uma abertura para o outro: curiosidade por viajar, conhecer outras culturas, decifrar a personalidade do outro, ser tolerante com o diferente, pesquisar a cura de doenças e males da humanidade, etc.
    Admiramos os grandes criadores, cientistas, artistas e filósofos porque conseguiram, em grande parte, romper com as imposições que limitariam seus territórios e foram muito além em sua curiosidade. Saíram de uma atitude primária de voyeurs da cena primitiva, aprisionados pela curiosidade sobre o que se passa no quarto de dormir de papai e mamãe, para imaginar soluções sobre os problemas da humanidade.
    Amós Oz, o escritor israelense, diz que a curiosidade é um remédio contra o fanatismo, quando surge um legítimo interesse sobre o que o outro pensa, vive e sonha. A curiosidade abre a mente para o desconhecido e o novo, caminhos capazes de nos surpreender e de acionar nossa imaginação. Talvez até ao ponto de gerar uma cultura de paz, não de ódio.
   Hoje, as tecnologias estão criando novas gerações que recebem aparatos técnicos prontos, sem saber como se constituíram, mas não se pode esquecer que muitos desses jovens sonham com se tornar pesquisadores de novos aparelhos e querem saber como tudo isso funciona.
   A imaginação humana não é racional, certinha, e pode dar origem tanto a um Toynbee quanto a um Nero, que ficou curioso sobre “de onde veio” e abriu a barriga da mãe viva para “pesquisar”. Contudo, sempre haverá quem deseje matar a curiosidade sem destruí-la no mesmo ato.


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

ADMIRÁVEL MUNDO VELHO



                                                                  Reinaldo Lobo

     O simples não existe, há o simplificado – dizia Gaston Bachelard, o filósofo que punha imaginação na ciência. A lenda urbana de que o mundo pode ser reduzido a partículas moleculares, pois essa seria sua natureza íntima, é o mito do reducionismo. Nem o universo subatômico funciona assim. Esse é um campo de relações complexas e até de alguma indeterminação, provavelmente como a sociedade, a cultura, a economia, a história e o próprio pensamento.
    Tudo poderia “ser melhor” se a realidade fosse simples, restrita a alguns pequenos pedaços fáceis de recompor e de manipular. No próprio espírito científico, as explicações tendem à redução ao mais econômico e às ideias mais elementares: essa é considerada a “elegância” de uma teoria. Diz uma ideia utópica decorrente desse mito que, um dia, o mundo foi tão elementar que deveríamos voltar a esse tempo inaugural. Nada disso é certeza.
    O mundo contemporâneo joga na nossa cara que o simples não existe e parece nunca haver existido, por mais que as explicações possam ser simplificadoras. Obriga-nos a rever nossa maneira de pensar e a enfrentar o mito do reducionismo. Vivemos cada vez mais em uma realidade complexa, heterogênea e diversificada onde o chamado pensamento binário, do tipo “ou isto ou aquilo”, pode funcionar nas formulações de certas áreas da ciência, mas não em todas e nem para tudo.
    O universo “velho” era admiravelmente binário e ainda o é em certa medida, graças aos resíduos do século XX. A dicotomia é uma das formas básicas do reducionismo. Uma interessante pensadora argentina, Denise Najmanovich, costuma dizer que esse é o “Reino da Planolândia”, onde tudo é dividido simplificadamente em dois, como num plano básico, quase bidimensional. É a terra do Bem e do Mal. Diz ela:
         “Dividir o mundo em bons e maus, bonitos e feios, inteligentes e burros, pobres e ricos, relativistas e dogmáticos, heróis e anti-heróis, etc., é um dos vícios mais profundos e ativos da nossa civilização. Essas classificações dicotômicas são ideais para todos os amantes das ideias “claras e distintas”; exceto quando alguém ousa situá-los em um grupo “indesejável”. Os adictos ao pensamento polarizado ou dicotômico tendem a se reunir sempre no paraíso e destinar seus inimigos ao inferno. Além disso, deve-se dizer que todo aquele que não esteja de acordo com eles passa “ipso facto” para campo do inimigo. Qualquer opção intermediária está excluída da paisagem dicotômica”.
         O próprio conhecimento tem sido pensado como se tivesse por objetivo exclusivo a tarefa heroica de dissolver a complexidade aparente dos fenômenos, para explicitar a ordem simples a que estão submetidos. O resultado é uma forma mutiladora de organização do conhecimento, incapaz de detectar, descobrir e apreender a complexidade do real, como têm mostrado as novas teorias sobre a ciência.
        Nos tempos em que o planeta estava dividido geopoliticamente entre um Império Norte-americano e um Império Soviético, separados na aparência entre capitalismo e comunismo, existiam, ao mesmo tempo, estranhos fenômenos contraditórios como uma economia híbrida na antiga Iugoslávia, os kibutzim israelenses, os países nórdicos como Dinamarca, Suécia, Noruega, Holanda, Finlândia, os movimentos das comunidades autogeridas da Califórnia, nos anos 60, a autonomia operária na Hungria, em 1956, as reformas trabalhistas inglesas, revoluções capitalistas no Terceiro Mundo em nome do anti-colonialísmo e de um suposto socialismo, etc.
       Ao mesmo tempo, intelectuais importantes como Raymond Aron e John Kenneth Galbraith apontaram, paralelamente, uma inclinação tecnoburocrática e distributivista nos Estados, que tendia a aproximar cada vez mais as sociedades desenvolvidas, incluindo a pulverização acionária do Capital e a democratização do consumo. Era a teoria da confluência entre socialismo e capitalismo. As crises que atingiram os Estados do Bem-Estar e o capitalismo em geral, seguidas da decadência da economia soviética, acabaram por desviar o caminho dessa tendência.
      Nada disso era uma “terceira via”, como quer o pensamento dicotômico, mas situações contraditórias e paradoxais no interior das sociedades existentes.
      A realidade era aparentemente transparente, mas, na verdade, opaca. O Império Soviético parecia irremovível e permanente. Quando caiu com muita rapidez, inúmeros cientistas políticos foram apanhados de surpresa e alguns ficaram perplexos. O consequente fracionamento imperial, dando origem a inúmeros países no Leste Europeu, singulares e com culturas diferentes, mostrou um pouco como seria o século XXI.
    Hoje, a realidade é híbrida, como sempre foi. É cada vez mais explicitamente opaca e complexa, e não comporta explicações redutoras ou simplificadoras.
    A família, tida como célula básica da sociedade, perdeu seu contorno anterior, patriarcal, tornou-se múltipla, surgiram famílias combinadas, a simplificação em torno de valores impostos e naturalizados já não é possível.
    A diversidade de gêneros sexuais, rompendo com o binarismo homem-mulher da heterossexualidade, também fez emergir fenômenos contidos por séculos de redução mental e social.
    A realidade contemporânea é ostensivamente multidimensional e virtual. Não pode mais ser apreendida por esquemas binários simplificados, nem por um determinismo científico clássico e estrito. Comporta um princípio de incompletude e de incerteza.
    Exige uma reforma do pensamento, como diz Edgar Morin, isto é, um pensamento que aspire a um conhecimento multidimensional, mas que saiba, de saída, que o conhecimento completo é impossível. Uma das regras básicas de uma teoria da complexidade é a impossibilidade, mesmo em tese, de uma onisciência. Não dá para apreender a totalidade dos fenômenos. Mas, mesmo assim, é preciso reconhecer que todas as coisas “são causadas e causadoras”, como dizia Pascal, e mantém um elo entre si, mesmo que se reconheça nelas as diferenças.
      O pensamento da complexidade aparece onde o simplificador falha, mas integra nele tudo o que põe ordem, distinção, clareza e precisão no conhecimento.  Se, por um lado, o pensamento simplificador e binário desintegra a realidade para tentar explicá-la, o conhecimento complexo integra o mais possível os modos simplificadores de pensar. Só recusa as suas consequências redutoras, unidimensionais e mutiladoras, assim como a ilusão da simplificação que, como diz Morin, se toma pelo reflexo do que há de verdadeiro na realidade.
       O século XXI -- quando já existe uma realidade mundial em rede, inclusive virtual nas “nuvens” da comunicação, onde a interconexão é cada vez maior e mais rápida-- tornou impossível pensar como pensávamos no admirável mundo velho e unidimensional da simplificação.

      

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A ESQUERDA DESILUDIDA


                                                                         
                                                                     Reinaldo Lobo

          A esquerda está melancólica. De novo. A primeira vez foi quando a União Soviética se dissolveu no ar, levando consigo os sonhos de igualdade e justiça da revolução de 1917. Se o império romano decaiu por duzentos anos, o soviético levou apenas dois para desabar, de 1989 a 1991.
        A questão não foi o fim da grandeza imperial russa, mas a destruição burocrática do maior projeto socialista que a humanidade já produziu. De lá para cá, a esquerda mundial ficou na defensiva, quase perdida. Órfã de uma utopia – para usar a expressão de Ernildo Stein--, vagou em busca de uma brecha para continuar a existir. Uma parte dos antigos socialistas bandeou-se para o lado oposto, aderindo à direita neoliberal e ao conservadorismo.
      Na verdade, o fim da URSS não foi exatamente uma vitória do capitalismo. Quem perdeu foi o próprio socialismo, incapaz de realizar-se de acordo com seus princípios iniciais e gerando um monstro político, econômico e social, na forma do totalitarismo. Nenhuma das críticas ao capital e à exploração do homem pelo homem caducou. Só que o regime contraposto a isso não conseguiu atingir as metas de humanização das relações econômicas e sociais com garantia da liberdade.
      Quando a maior parte dos países do mundo seguia o “pensamento único” do neoliberalismo, que seria abalado por duas grandes crises capitalistas nas duas últimas décadas, pareceu surgir na América Latina uma alternativa democrática para mudanças socializantes.
      O Brasil dos governos Lula e Dilma, a Argentina do casal Kirchner, a Venezuela de Chaves, o Uruguai de Tabares Vasques e de Pepe Mojica, o Equador de Rafael Correa, a Bolívia do índio Evo Morales, o Paraguai do padre Fernando Lugo, Honduras de Manuel Zelaya – todos tiveram experiências nacional-desenvolvimentistas fora da orientação neoliberal e da influência norte-americana.
     Com as exceções do Uruguai, da Bolívia e do Equador, cujos projetos esquerdizantes ainda prosseguem com algum êxito, todos os outros ou foram encerrados ou estão sob bombardeio de fortes oposições conservadoras.
      A queda do governo Dilma foi a maior derrota da esquerda continental, não só pela importância do País, mas pela repercussão internacional. O “caso brasileiro” foi único pelo êxito de um governo dirigido por mais de uma década por um operário e, depois, por uma ex-guerrilheira marxista. A manutenção de taxas consideráveis de crescimento com distribuição de renda e vitórias eleitorais impressionantes tornaram esses governos alvos da reação conservadora, mas também davam a impressão de levarem a uma transição para a socialização.
      Nesses casos, onde até golpes de Estado parlamentares foram dados, não havia “socialismo” consolidado, mas programas sociais esquerdistas em andamento.
     Essas derrotas trouxeram a segunda melancolia da esquerda atual.
     Para se enfrentar a melancolia e a depressão no plano psíquico, existem pelo menos dois caminhos: a negação maníaca e a elaboração do luto. A primeira alternativa consiste em fingir que nada aconteceu de errado ou grave e partir para uma ação tão eufórica quanto inconsistente. Uma variante dessa saída maníaca é, como diz a psicanálise, identificar-se com o agressor: “Os socialistas falharam, então viva o capitalismo! ”
    Seria a fórmula da “síndrome de Estocolmo”: a vítima que adota o ponto-de-vista e os sentimentos de quem a vitimou. Assim é que surgem os “arrependidos”, os delatores e os traidores. Nenhum deles é sincero, apenas tentam dar a volta por cima pela negação da realidade. Deve-se minimizar a responsabilidade daqueles que sucumbem sob tortura, em ditaduras, mas não a daqueles que se entregam sem luta, apenas por serem derrotados politicamente.
    A segunda via é mais difícil, mas também mais sólida. É o caminho da lucidez.   Analisar o quadro real, assumir os erros cometidos e consertá-los na medida do possível é a única forma de superar as perdas e o luto, sem se afundar na paralisia e no medo.
   Houve um esquerdista célebre, derrotado pela brutalidade do fascismo de Mussolini e atirado na prisão, onde morreu, que sugeria uma visão aparentemente paradoxal da estratégia política socialista: “É preciso ter o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade”. Esse personagem era Antônio Gramsci.
    O “pessimismo da inteligência” é o realismo com que se examinam os fatos, as políticas desastrosas, as causas e consequências de decisões equivocadas. Gramsci era um entusiasta de Maquiavel, o mais realista dos pensadores políticos.
    Erros não faltaram no Brasil do PT. Um socialista inteligente, o escritor de origem paquistanesa Tariq Ali, fez um comentário duro e sarcástico sobre o nosso José Dirceu e seu “pragmatismo político”: “Quando foi submetido a uma cirurgia plástica em Cuba para se manter clandestino, os médicos cubanos não deveriam ter-lhe mudado o nariz, mas o cérebro”. Aliar-se a personagens como Roberto Jefferson, Marcos Valério e outros, valeram a Dirceu esse comentário pejorativo.
     O erro não foi só dele, Lula entrou no esquema em nome do apaziguamento da sanha conservadora e da aliança de classes com partidos notoriamente representativos das classes dominantes.
     O PT cometeu os mesmos erros dos tradicionais stalinistas, com suas alianças de “frente ampla”, sem as salvaguardas necessárias. Depois da experiência do governo Goulart, em 1964, quando a esquerda se aliou ao centro e a setores de direita para realizar reformas esquerdizantes, sucumbindo às tentações populistas, os intelectuais brasileiros sérios realizaram uma exegese severa do populismo e do seu caráter conservador. Parece que tudo foi esquecido. O PT subordinou a classe trabalhadora às decisões de partidos como o PMDB, notoriamente comprometido com dois sistemas: o Capitalista e o Corrupto, da aliança do Estado com empreiteiros, Fiesp, banqueiros, burocratas e latifundiários.
        O pior é que mantém, para as próximas eleições municipais, as mesmas alianças com os que derrubaram Dilma e querem prender Lula.
        Para sair da melancolia, a esquerda talvez precise usar mais o pessimismo da inteligência e, depois, partir para o otimismo da ação.


segunda-feira, 19 de setembro de 2016

UMA QUESTÃO DE COMPETÊNCIA



                                                                        Reinaldo Lobo

         Em política, só é feio perder, diz o cinismo conservador. Esse pensamento ignora que existem belas derrotas, honrosas, assim como os gregos antigos falavam de uma ”boa morte”, derivada da luta digna. Para os pragmáticos, o que importa é o resultado. Mas não consideram que, na política como na economia, existem efeitos secundários, implícitos a longo prazo. Muitos desses efeitos, digamos de uma derrota, podem ser insuspeitos e inesperados.
         A visão conservadora colocou em circulação uma ideia simplista sobre a derrota da esquerda no Brasil. Consiste em repetir que governos esquerdistas “não vão bem” em economia de um modo geral e, em particular, não sabem administrar o capitalismo. Não é bem assim.
         A esquerda salvou o capitalismo diversas vezes, mesmo que nem sempre o quisesse. Na Europa dos séculos XIX e XX, foi a luta dos trabalhadores pela constituição dos sindicatos que levou à estabilização do capital, à integração da classe operária, à rotina de resolução das crises e, finalmente, ao Estado do Bem-Estar social. Isso tudo foi inspirado, primeiro, pelos anarquistas e, depois, pela emergência da revolução soviética na Rússia, em 1917. 
        As propostas do marxismo foram apropriadas pelos economistas europeus, incorporadas ao seu repertório instrumental e intelectual. Em alguns países, foram os próprios governos influenciados ou dirigidos por marxistas que inauguraram governos trabalhistas e economicamente reformistas, como na Inglaterra e nos países nórdicos. A Suécia, a Dinamarca, a Holanda, a Noruega, a Finlândia, todos eles tiveram governos socialistas. E isso sem se tornarem Estados totalitários.
      Na Alemanha, apesar das idas e vindas antes e depois da Segunda Guerra Mundial, o programa marxista do Partido Social Democrata (ocidental) só foi alterado em 1959, no Congresso de Bad Godesberg. Boa parte da recuperação e crescimento alemães, com Willy Brandt, foi sob a égide de uma orientação econômica esquerdizante, ainda que não comunista. A menos que não se considere a social democracia de esquerda, mesmo a conservadora Alemanha Ocidental sentiu a sua influência nas leis trabalhistas e nas políticas de distribuição de renda.  O mesmo aconteceu na França, na Itália e no sul da Europa, onde a presença de socialistas e comunistas nunca deixou de dar o tom em vários governos.
       Nos Estados Unidos, o exemplo mais notável foi o New Deal, com o presidente Franklin D. Roosevelt. A economia foi salva da brutal recessão de 1930 graças a um programa econômica inteiramente traçado e até executado pela esquerda. No Japão do após guerra, o próprio general ocupante, Douglas Macarthur, realizou uma reforma agrária inspirada nos modelos de esquerda e, depois, sucederam-se até hoje vários governos que incorporaram reformas esquerdizantes, ainda que sob a égide de diversos partidos conservadores.
        Na nossa América Latina, a APRA peruana, inspirada no socialismo de Haya de La Torre; na Bolívia, um arco de governos que vão desde os revolucionários de 1952 até os atuais; no Chile, o pensamento estruturalista da Cepal; no Brasil, os governos ambíguos de Getúlio, os avanços desenvolvimentistas inspirados em Celso Furtado, os governos de Kubitschek e de Lula — todas são experiências econômicas que realizaram profundas mudanças, com resultados de longo prazo. E , isso, “apesar” dos conservadores.
       Dizer que o governo Lula foi apenas um fracasso econômico significa não enxergar que o Brasil não será mais o mesmo depois dele, em busca do desenvolvimento com distribuição de renda e amplo mercado interno.
       São efeitos de esquerda em países que não são considerados repúblicas comunistas, para só citar alguns casos.
       Hoje, há governos de esquerda em Portugal e na Grécia, tentando corrigir os equívocos de três décadas de neoliberalismo no mundo. As pessoas esquecem facilmente que as crises de 2000 e 2008 foram provocadas pela mesma fórmula econômica conservadora de Reagan, Thatcher e Clinton, modelo que animou 160 países com o nome de “pensamento único”.
       Ocorre que a direita costuma associar imediatamente a palavra esquerda com a antiga União Soviética, a China e Cuba. O pensamento conservador toma como referência o totalitarismo de origem stalinista, mais fácil de combater do que admitir que ideias de esquerda influenciaram bastante a Europa Ocidental, o mundo e até os Estados Unidos. Isso sem falar nas políticas culturais e não diretamente ligadas à economia, como a de direitos civis e humanos.
       O fantasma do comunismo soviético é retirado do baú, como fantasia de festa no Halloween, sempre que algum governo composto por partidos de esquerda implementa mudanças que beneficiam grandes massas, e não apenas as minorias dominantes.
      Essa atitude ignora a profunda crítica que a esquerda tem desenvolvido não só em relação ao capitalismo, mas também aos regimes que dominavam o Leste Europeu e parte da Ásia. Muitos desses pensamentos concebem aqueles regimes não como socialistas, mas como aberrações que deram origem a um novo modelo de Estado, um monstrengo ainda sendo decifrado do ponto de vista social, econômico e social. 
    O totalitarismo soviético, hoje, não é visto nem mesmo como a realização do comunismo, mas como uma corruptela do capitalismo, onde as classes dominantes tradicionais foram substituídas por uma forma de dominação burocrática tão ou mais exploradora do que a anterior.
      A competência econômica da esquerda em administrar algumas formas de socialismo democrático e o próprio capitalismo tem sido indiscutível na maior parte do mundo. Só no nosso Brasil é que persistem a ignorância e a resistência ideológica das nossas classes dominantes. Como disse Roberto Schwarz, nossa elite tem as ideias fora do lugar. Nesse caso, está atrasada ao ponto de permanecer pensando como se pensava há uns dois séculos atrás.
       
    


                                                                        Reinaldo Lobo

         Em política, só é feio perder, diz o cinismo conservador. Esse pensamento ignora que existem belas derrotas, honrosas, assim como os gregos antigos falavam de uma ”boa morte”, derivada da luta digna. Para os pragmáticos, o que importa é o resultado. Mas não consideram que, na política como na economia, existem efeitos secundários, implícitos a longo prazo. Muitos desses efeitos, digamos de uma derrota, podem ser insuspeitos e inesperados.
         A visão conservadora colocou em circulação uma ideia simplista sobre a derrota da esquerda no Brasil. Consiste em repetir que governos esquerdistas “não vão bem” em economia de um modo geral e, em particular, não sabem administrar o capitalismo. Não é bem assim.
         A esquerda salvou o capitalismo diversas vezes, mesmo que nem sempre o quisesse. Na Europa dos séculos XIX e XX, foi a luta dos trabalhadores pela constituição dos sindicatos que levou à estabilização do capital, à integração da classe operária, à rotina de resolução das crises e, finalmente, ao Estado do Bem-Estar social. Isso tudo foi inspirado, primeiro, pelos anarquistas e, depois, pela emergência da revolução soviética na Rússia, em 1917. 
        As propostas do marxismo foram apropriadas pelos economistas europeus, incorporadas ao seu repertório instrumental e intelectual. Em alguns países, foram os próprios governos influenciados ou dirigidos por marxistas que inauguraram governos trabalhistas e economicamente reformistas, como na Inglaterra e nos países nórdicos. A Suécia, a Dinamarca, a Holanda, a Noruega, a Finlândia, todos eles tiveram governos socialistas. E isso sem se tornarem Estados totalitários.
      Na Alemanha, apesar das idas e vindas antes e depois da Segunda Guerra Mundial, o programa marxista do Partido Social Democrata (ocidental) só foi alterado em 1959, no Congresso de Bad Godesberg. Boa parte da recuperação e crescimento alemães, com Willy Brandt, foi sob a égide de uma orientação econômica esquerdizante, ainda que não comunista. A menos que não se considere a social democracia de esquerda, mesmo a conservadora Alemanha Ocidental sentiu a sua influência nas leis trabalhistas e nas políticas de distribuição de renda.  O mesmo aconteceu na França, na Itália e no sul da Europa, onde a presença de socialistas e comunistas nunca deixou de dar o tom em vários governos.
       Nos Estados Unidos, o exemplo mais notável foi o New Deal, com o presidente Franklin D. Roosevelt. A economia foi salva da brutal recessão de 1930 graças a um programa econômica inteiramente traçado e até executado pela esquerda. No Japão do após guerra, o próprio general ocupante, Douglas Macarthur, realizou uma reforma agrária inspirada nos modelos de esquerda e, depois, sucederam-se até hoje vários governos que incorporaram reformas esquerdizantes, ainda que sob a égide de diversos partidos conservadores.
        Na nossa América Latina, a APRA peruana, inspirada no socialismo de Haya de La Torre; na Bolívia, um arco de governos que vão desde os revolucionários de 1952 até os atuais; no Chile, o pensamento estruturalista da Cepal; no Brasil, os governos ambíguos de Getúlio, os avanços desenvolvimentistas inspirados em Celso Furtado, os governos de Kubitschek e de Lula — todas são experiências econômicas que realizaram profundas mudanças, com resultados de longo prazo. E , isso, “apesar” dos conservadores.
       Dizer que o governo Lula foi apenas um fracasso econômico significa não enxergar que o Brasil não será mais o mesmo depois dele, em busca do desenvolvimento com distribuição de renda e amplo mercado interno.
       São efeitos de esquerda em países que não são considerados repúblicas comunistas, para só citar alguns casos.
       Hoje, há governos de esquerda em Portugal e na Grécia, tentando corrigir os equívocos de três décadas de neoliberalismo no mundo. As pessoas esquecem facilmente que as crises de 2000 e 2008 foram provocadas pela mesma fórmula econômica conservadora de Reagan, Thatcher e Clinton, modelo que animou 160 países com o nome de “pensamento único”.
       Ocorre que a direita costuma associar imediatamente a palavra esquerda com a antiga União Soviética, a China e Cuba. O pensamento conservador toma como referência o totalitarismo de origem stalinista, mais fácil de combater do que admitir que ideias de esquerda influenciaram bastante a Europa Ocidental, o mundo e até os Estados Unidos. Isso sem falar nas políticas culturais e não diretamente ligadas à economia, como a de direitos civis e humanos.
       O fantasma do comunismo soviético é retirado do baú, como fantasia de festa no Halloween, sempre que algum governo composto por partidos de esquerda implementa mudanças que beneficiam grandes massas, e não apenas as minorias dominantes.
      Essa atitude ignora a profunda crítica que a esquerda tem desenvolvido não só em relação ao capitalismo, mas também aos regimes que dominavam o Leste Europeu e parte da Ásia. Muitos desses pensamentos concebem aqueles regimes não como socialistas, mas como aberrações que deram origem a um novo modelo de Estado, um monstrengo ainda sendo decifrado do ponto de vista social, econômico e social. 
    O totalitarismo soviético, hoje, não é visto nem mesmo como a realização do comunismo, mas como uma corruptela do capitalismo, onde as classes dominantes tradicionais foram substituídas por uma forma de dominação burocrática tão ou mais exploradora do que a anterior.
      A competência econômica da esquerda em administrar algumas formas de socialismo democrático e o próprio capitalismo tem sido indiscutível na maior parte do mundo. Só no nosso Brasil é que persistem a ignorância e a resistência ideológica das nossas classes dominantes. Como disse Roberto Schwarz, nossa elite tem as ideias fora do lugar. Nesse caso, está atrasada ao ponto de permanecer pensando como se pensava há uns dois séculos atrás.
       
    


quarta-feira, 24 de agosto de 2016

UMA LÍNGUA MORTA

   
                                                             Reinaldo Lobo*

          Uma língua foi ressuscitada pelo imaginário social brasileiro nos últimos anos, digamos desde 2002. Uma língua morta. Não é o latim nem o grego antigo, mas o discurso ideológico dos tempos da Guerra Fria, do século XX.
          Expressões como “subversão”, “comunismo”, “imperialismo”, “perigo vermelho”, “vai para Cuba”, “estatismo”, “a mão da CIA”, “burguesia”, “populismo” e várias outras tornaram-se frequentes na mídia e nas ruas. Nas manifestações dos camisas verde-amarelas acrescentaram-se termos como “terrorismo”, “intervenção militar” e “bolivarianismo”, este como sinônimo do velho “totalitarismo”.
          O uso dessas palavras do jargão extremista de direita e de esquerda tornou-se generalizado principalmente após 2013, quando os conservadores contrários à continuidade do PT no poder ganharam forças a partir de um movimento de massas. Pela primeira vez em muito tempo, a direita derrotada repetidamente nas urnas conseguiu organizar uma pressão popular a seu favor. Precisava de um léxico que veiculasse seus planos e interesses, assimilável pelas multidões e fácil de inocular no imaginário por meio da mídia.
         O ponto mais importante é que essa linguagem não se destina a descrever uma realidade palpável. Sua elaboração, consciente para alguns e inconsciente para muitos, visa a dar sentido à política de remoção de Lula, de Dilma e do PT da cena política. Foi necessária uma língua morta.
          Nunca ouvíamos Lula e Dilma usarem expressões como “imperialismo” ou “burguesia” para definir qualquer política governamental. Não usaram nem como gesto simbólico. No entanto, quando se fala deles, é-lhes atribuído esse discurso. Pode ser que militantes de frações do PT mais desatualizadas tenham repetido algo desse vocabulário, mas o próprio partido tão odiado tem veiculado mais termos como “direitos sociais e humanos”, “movimentos sociais”, “empresariado”, “elites” e “patrões” no lugar de “burguesia”.
          Alguns ideólogos e jornalistas de direita atribuem “intenções” de uso dessa terminologia aos representantes do “lulo-petismo”. Esta última expressão parece nova, mas é uma réplica do “petebo-comunismo”, usado pelos chefes do golpe militar-civil de 1964, em plena onda “anticomunista”. Não seria preciso lembrar que João Goulart, o presidente derrubado, era trabalhista, nunca foi comunista, ainda que tivesse apoio dos marxistas para algumas das reformas que pretendia implementar. Ele fazia uma política de “frente ampla” com a direita, o centro e as esquerdas.
          Lula costuma ser pintado como um Fidel Castro “vintage”. Não adiantou o próprio dizer que “nunca foi de esquerda” ou que se apresentava como uma “metamorfose ambulante”. Para a mídia conservadora, sua caricatura oscila entre o “vermelho”, o “populista corrupto” e o “bolivariano” (leia-se “castrista”). O Brasil nunca teve, sob Lula ou Dilma, nada parecido com a Venezuela em termos institucionais e mesmo políticos, no plano interno. Muito menos com Cuba.
       A direita inventou uma caricatura da esquerda dos anos 60 e passou a bater nela como se ainda existisse. Aparentemente, deu certo até este momento.
       Lula nunca rompeu com a ordem democrática. Ao contrário inaugurou e manteve, assim como Dilma, um período de liberdade de imprensa que beirou à liberalidade, de tão ampla. Lula perdeu antes quatro eleições, continuou a defender a via democrática.
      Os governos de ambos podem ter cometido muitas falhas, a maior delas foi, sem dúvida, aderir sem crítica ao Sistema Corrupto montado pelos políticos e as empreiteiras na Petrobrás e em outros sítios, desde, pelo menos, a Ditadura civil- militar. 
       O PT imitou o jogo do PMDB, do PSDB, PTB, etc.-- nas campanhas, na coalizão governista e junto às estatais--, e isso foi usado contra ele pela mídia e a oposição. Estas se juntaram e se tornaram praticamente a mesma voz. O argumento mais forte encontrado é o de que o PT “aperfeiçoou” a corrupção, “para, exclusivamente, se manter no poder” (Aécio Neves). Como se o partido não tivesse outro projeto: onde foi parar o objetivo de instaurar “uma república vermelha no País”, como disse um dos símbolos da direita nacional, o senador goiano Ronaldo Caiado?
      O que parece ter havido é que as investigações estimuladas pelos próprios governos de Lula e Dilma pareciam levar a uma revelação de todo o Sistema, mas foram dirigidas preferencialmente, até agora, contra o próprio PT, ainda que pontualmente atinjam o esquema da Velha Política em geral. A Rede Globo, os ambiciosos promotores e juízes de Curitiba, alguns aliados no STF, a mídia conservadora em geral, têm cumprido esse papel de seleção preferencial.
      O PT era o caçula do Sistema Corrupto, “não podia” fazer o que os outros faziam em grandes proporções: sempre esteve fora do círculo da “oligarquia liberal” que nos governa, com intermitências, desde a República Velha.
      A esquerda próxima de Lula e de Dilma no poder foi sempre muito moderada, ainda que a paranoia estimulada por uma campanha iniciada em 2002, quando Lula virou presidente, diga o contrário e tenha chegado a dimensões exageradas de anticomunismo à moda dos anos 60.
     Não adiantou lançar a Carta ao Povo Brasileiro, comprometendo-se a não ferir o sistema capitalista. A desconfiança permaneceu à espera de uma oportunidade. Ela surgiu quando Dilma venceu as eleições de 2014 e a direita conseguiu uma votação expressiva do eleitorado para seu candidato.
      Lula e Dilma fizeram governos, no máximo, socialdemocratas. Suas propostas eram inspiradas em Keynes, não em Marx. A distribuição de renda promovida pela via estatal destinava-se a fortalecer o mercado interno e promover crescimento econômico. FHC foi o primeiro a reconhecer isso. Mas, para a oposição à direita, era necessária uma retórica distorcida, embebida num discurso que juntasse comunismo e corrupção para provocar um desfecho trágico. Como no golpe de 1964.
       “A tragédia é de direita, a tragédia não é jamais de esquerda” --- disse George Steiner, o excelente escritor, filósofo e crítico literário nascido em Paris e que vive nos Estados Unidos. A esquerda prefere a esperança e a generosidade, ainda que reconheça a existência da tragédia. Para gerar um trágico desfecho que anule o PT, Dilma e Lula de volta ao governo, a direita brasileira armou um cenário shakespeariano com um final infeliz.

      Permitam-me evocar de novo o Marx do “18 Brumário”: ocorre que a história foi trágica em 1964; agora não passa de uma farsa escrita numa língua morta. 

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

ESCOLA SEM PARTIDO


                                                                Reinaldo Lobo*


         Imagine seus filhos ou netos sendo obrigados a ler na escola “manuais de filosofia” de autoria do astrólogo Olavo de Carvalho, livros “de história” do professor Marco Antônio Villa, aquele que declarou não ter havido propriamente uma ditadura no Brasil, exceto “por um curto período”, ou, ainda, levados a estudar geografia política apenas com o ideólogo Demétrio Magnoli, que considera uma “formação de quadrilha” um protesto democrático assumido publicamente por respeitados historiadores.
        Para completar, imagine filhos ou netos obrigados a ter aulas de religião e leituras bíblicas das Igrejas evangélicas, além de rezar para expurgar o Capeta antes das aulas da manhã, da tarde e da noite.
       Se você concorda com esse cenário, gosta desse tipo de educação ou dos três exemplares de intelectuais citados, talvez fique tranquilo e julgue que seus filhos e netos estariam no melhor dos mundos possíveis. Pergunta inevitável: isso não seria escola partidária, doutrinária, monolítica e totalitária de direita?
        “Extirpar a mentalidade petista”, como quer o ilustre sociólogo Bolívar Lamounier, seja por decreto ou qualquer outro meio, inclusive o educacional, seria o protótipo do programa totalitário, pois não?
        Essa teoria da “escola partidária”, atribuída ao bode expiatório petista, é o pretexto idealizado para introduzir o ovo da serpente autoritária na nossa educação republicana, ainda leiga e democrática. Os que defendem essa teoria confundem pedagogia com doutrinação. Atribuem essa confusão aos adversários.
       Até prova em contrário, seria puro fascismo impor essa educação de pensamento único à nossa cultura pluralista, na qual os educadores podem até hoje expor livremente suas ideias e mesmo disputar qual tem a melhor delas, sem deter a hegemonia absoluta.
       O projeto da “Escola Sem Partido”, de autoria do senador Magno Malta, pastor de Igreja Evangélica envolvido em vários casos suspeitos de corrupção, é mais uma tentativa estúpida de burlar o Estado Laico. Esse senador faz parte do grupo que tem proposto mudar a constituição onde ela diz “todo poder emana do povo” para “todo poder emana de Deus”
      O mais grave é que tenha o beneplácito de muitos que se consideram sinceramente “liberais” ou da “direita civilizada”. Não deixa de ser um paradoxo curioso que liberais patrocinem uma proposta que ofende a ideia de livre concorrência (no caso, de ideias) e que reclamem que a esquerda tem vencido e conquistado o “mercado” no âmbito da universidade.
     Um deles, articulista da Folha e professor de Filosofia, Luís Felipe Pondé, vive reclamando que os estudantes só querem saber de Marx e de Foucault no currículo. Ele sabe    que nada é imposto pelas direções universitárias, pois temos escolas com inteira liberdade, até mesmo as de origem religiosa.
      Ora, com a plena autonomia reservada aos professores universitários, basta que esse professor ofereça aulas sobre John Gray, Cioran, Hobbes ou qualquer outro autor de sua preferência. E, depois, é só aguardar a afluência dos alunos. Pelo que se sabe, nada é imposto a eles, sobretudo nos cursos de Filosofia.
     Afinal, um liberal é ou não pela meritocracia? Popper costumava dizer que as ideias teóricas e científicas disputam pela sobrevivência, como acontece na natureza entre as espécies. As “menos falhadas” sobrevivem. Verdadeiro ou não, esse é um postulado genuinamente liberal. Sem ironia.
    Desconfio que a emergência desse projeto infeliz de limitar o direito de opinião dos professores, além de revelar que a estupidez humana não tem limites, não é só parte da onda conservadora que inclui, entre outras tentativas, as restrições ao casamento de pessoas do mesmo sexo. Mas vai além, tem um objetivo político que atende aos interesses do governo do interino Temer, preocupado com possíveis manifestações de massa reativas às suas medidas de “ajuste” econômico e social.
     São medidas repressivas e quem não espera uma possível resposta, em primeiro lugar, dos estudantes e intelectuais? Houve recentemente uma onda de protestos estudantis em São Paulo e no Rio contra as más condições do ensino, quase uma rebelião, com ocupações e gritos de “Abaixo o Golpe” e “Fora Temer”.
     A preocupação do novo governo de direita é com uma visível ressurreição do movimento estudantil em escala nacional, o que já vem ocorrendo desde 2013, naquelas manifestações que se iniciaram com protestos juvenis contra o preço das passagens do transporte público e que acabaram apropriadas por um movimento de massas de direita, incitado e engrossado pela mídia conservadora.
      Os articuladores da direita sempre acreditaram, ou fingiram acreditar, que todos os problemas sociais, culturais e políticos passam por uma estratégia de controle das mentes.  Essa é uma obsessão conservadora desde, pelo menos, a Guerra Fria. Falam de modo paranoico das “lavagens cerebrais”, dos “inocentes úteis”, da pedagogia da “doutrinação ideológica”, das “conversões”, das “infiltrações subversivas” e outras metáforas de origem militar e religiosa.
     Não espanta que estejam unindo hoje, como no fundamentalismo islâmico, política, força militar e Igreja. É no que acreditam como eficácia de manipulação, pois assistem ao sucesso exemplar, pragmático e financeiro, dos pastores sobre as almas desamparadas. Querem impor preventivamente um controle aos estudantes desse tipo.
     Os jovens não aprenderiam sobre a realidade política e social pela observação própria e por meio das suas famílias, mas estariam sujeitos aos malévolos “professores doutrinadores” – justamente, o que eles querem impor a todos.
     Acho que deveríamos, nós os pais e as mães, propor um projeto que proteja a democracia brasileira da estupidez fascista e do fundamentalismo religioso. São eles que falam, por exemplo, da “ideologia de gênero”, que inventaram para negar a existência de gays, travestis, transexuais, etc., como se não existissem na realidade. Só existem porque se fala deles e porque reivindicam direitos humanos! Fundamentalistas chamam de “ideologia de gênero” o que eles mesmos criaram e praticam.

      Deveríamos lutar para que existam os Olavo de Carvalho e Marco Antônio Villa, mas também os professores que dão aulas de Marx, de Foucault ou de qualquer autor malvisto pelos conservadores. Ainda que, pessoalmente, prefira que meus filhos e netos não apreciem Olavo de Carvalho nem o seus duplos, a escola democrática ainda é a melhor e deve sobreviver.