quarta-feira, 18 de novembro de 2015

ATENTADO EM MARIANA


                                                           Reinaldo Lobo*

      Mariana, doce nome de mulher para uma cidade. Linda e charmosa, por sinal.Um rio de nome doce. Um vale do Rio Doce. Não mereciam a morte e a devastação por toneladas de lama. Lama que arrastou 60 bilhões de rejeitos de mineração de ferro por mais de 500 km ao longo da quinta maior bacia fluvial do País, destruindo tudo pela frente, inclusive vidas humanas e animais.
     Nossa "Fukushima", dizem as gazetas do mundo. Mas, diferente do tsunami japonês, é impossível considerar a morte trágica do Rio Doce e dos seus arredores um simples "acidente" natural. Foi algo além disso, pois barragens que se rompem, depois de vários avisos de risco, são obras de seres humanos. Mais exatamente da empresa Samarco, resultado da sociedade entre a Vale do Rio Doce e a anglo -australiana BHP Billiton.
     Se no Japão um fenômeno natural provocou brechas em  estruturas de uma usina nuclear, vazando substâncias mortíferas, no caso de Mariana foi, ao contrário, a ruptura das duas barragens que provocou o desastre "natural", espalhando os rejeitos de minério pelo vale, pelo  rio  e atingindo até montanhas. Os biólogos e ecologistas estimam que levará décadas, talvez centenas de anos, para recuperar o solo da região.
     Quem já visitou a pequena cidade de Mariana, cujas construções e  igrejas foram tombadas pelo patrimônio histórico, sabem do que falo quando me refiro ao charme e beleza de suas ruas, morros e montanhas vizinhas. Mariana foi a primeira vila e depois capital de Minas Gerais nos tempos coloniais. Predominam as igrejas que remontam ao século XVII e as ruas estreitas de casas igualmente antigas, envoltas numa paisagem verde que nunca se imagina cercada de tantos interesses econômicos e da exploração sistemática de "commodities". 
     A maldição das riquezas minerais parece seguir Mariana e a região do Vale do Rio Doce. Primeiro, foi o ouro extraído em grandes quantidades pelo portugueses e, quando foi escasseando, a decadência da cidade tornou-se inevitável. Mais tarde, pedras e minério de ferro começaram a ser comercializados. A cobiça pelo ouro e, agora, pelo ferro, tem feito a prosperidade e a desgraça da região.
      O que houve em Mariana foi uma brutal violação da natureza, conseqüência de uma super-exploração econômica. Não se refere apenas à cidade, mas ao verde de uma paisagem que era, em alguns trechos, deslumbrante. Ocorreu um atentado contra o equilíbrio ecológico e a morte de várias espécies de animais. Diz André Ruschi, biólogo e pesquisador de uma das mais antigas instituições de ciência ambiental no país, a Estação de Biologia Marinha Augusto Ruschi:  "Há espécies animais e vegetais que podemos considerar extintas a partir de hoje (dia das explosões das duas barragens)".
       O rompimento das barragens coincidiu com o período de reprodução de várias espécies de peixes e, além disso, muitos tipos de vegetais que eram específicos da área atingida não mais nascerão lá e em parte alguma.
      Muita gente não faz idéia da delicadeza do equilíbrio da natureza e intervém nela de modo abusivo. O Brasil já virou cenário de destruição em vários pontos do Centro-Oeste, do Nordeste e na Amazônia, mas agora foi atingido no coração de Minas Gerais. "É o maior desastre ambiental da história do País" , comentou o cientista Ruschi.
      A quantidade de lama despejada foi calculada como o equivalente a 24 mil piscinas olímpicas, com a agravante de ter espalhado material erosivo nos resíduos.
     O mais curioso é que os políticos mineiros e a grande imprensa procuraram, no início, minimizar o evento, praticamente reduzindo-o a uma entre muitas catástrofes "naturais" que podem ocorrer, ainda que "lamentável". Em primeiro lugar, a empresa Samarco, responsável pelas barragens, procurou desviar a atenção para possíveis tremores de terra de pequena escala que teriam ocorrido naquele dia. Inúmeros cientistas descartaram essa possibilidade como causa provável.
     Houve um político, Aécio Neves, que se apressou em dizer :"Não é hora de buscar culpados". Se não era a hora, quando? Quem vai punir os culpados por tamanha perda ambiental e pelas vítimas humanas,  que incluem mortos, feridos e dezenas de "desaparecidos"?
      Uma reação interessante foi a do fotógrafo mineiro Sebastião Salgado, figura mundialmente conhecida pelas suas brilhantes fotos de situações sociais e humanas. Criado na região, propôs que se iniciem logo as obras de recuperação, levando um projeto para a presidência da República. Nele, preconiza a responsabilização da Samarco, da Vale do Rio Doce e da BHP Billiton, e o ressarcimento da região e da população na forma de recuperação ecológica e investimentos reparadores.

      Uma lição inevitável a ser extraída da violação da doce Mariana e do assassinato do Rio Doce só pode ser a conscientização política do nosso povo, no sentido de criar definitivamente uma verdadeira resistência ambiental e uma agenda ecológica severa contra a voracidade  do Capital.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

PAIXÃO DE FACEBOOK

                                     
                                                                       Reinaldo Lobo*

        Muitas pessoas se conhecem pelas redes sociais, via internet ou telefone  celular. Algumas, não se sabe quantas, apaixonam-se, amam, traem os (as) parceiros (as), têm algum sexo masturbatório, "relações sexuais", namoram,   divorciam-se ou casam com alguém que viram pela primeira vez ou reencontraram assim.
      É preciso achar um "culpado" por isso? Uma única causa determina essas situações? Parece que sim.
       A "culpa" é da tecnologia, dizem os afoitos! Ela aproximou de tal modo as imagens e a comunicação entre as pessoas,  que se tornou quase inevitável a intimidade, a exposição mútua, a expressão de emoções e dos tons de cinza. Amizades também se constroem a partir do virtual, mas essas não incomodam tanto.
      Há verdade nisso tudo, mas não toda e nem a definitiva.
      Quanto menos se entende como um aparelho funciona, mais misterioso e mágico parece. A técnica por trás de um computador ou de um celular só é conhecida por quem se dedicou ao assunto e, mesmo esses, tendem a divinizá-la ou atribuir-lhe poderes demoníacos. Imaginem o impacto que os primeiros humanos sofreram com a descoberta do fogo. Há toda uma história de significados e até uma psicanálise em torno do fogo e de seus milagres incríveis.
      Com as redes sociais e seu funcionamento acontece hoje a mesma coisa. Os "experts", às vezes, as idolatram e enxergam nelas possibilidades infinitas. Os moralistas, os religiosos e os ideólogos da modernidade as demonizam e as acusam de incrementar os divórcios e a pornografia. 
     O "meio é a mensagem", dizia o célebre Marshall McLulhan, radicalizando a importância dos meios de comunicação. Isto é, os meios condicionam o conteúdo.  Há um exagero na afirmação, ainda que se baseie na idéia interessante de que a mídia é uma extensão do sujeito humano, sobretudo do seu corpo. A frase do  teórico canadense implicava em criar um fetiche da técnica, atribuindo-lhe um significado moral e estimulando a "tecnofobia".
    O medo da tecnologia -- por exemplo, a ojeriza ao computador ou ao telefone celular -- é uma doença contemporânea tão alastrada quanto o seu contrário, a adesão cega. A tecnofobia se manifesta por meio dos  seus sintomas, inclusive o  da condenação moral.
      As crianças são automaticamente advertidas por seu interesse lúdico, vigiadas  e admoestadas quanto ao seu uso, ainda que o único problema real seria o excesso, o perigo de sedução dos pedófilos e o abuso. Quando não estão apenas trabalhando, os adultos são suspeitos de perderem tempo em namoricos, flertes e por seu vício pela pornografia.
      É impossível falar da tecnofobia sem lembrar a observação citada pelo falecido filósofo Gérard Lebrun , segundo a qual nossa época parece ter invertido as perguntas de Kant sobre o que podemos querer e o que devemos fazer, mas as substituiu pelas indagações "o que precisamos temer?" e "o que devemos proibir?".
    Vivemos num tempo  de muitos medos, inclusive o medo da tecnologia.
    É verdade que o computador facilitou a comunicação íntima e, ao mesmo tempo, a distância  entre as pessoas. O advento da internet possibilitou a criação das "salas de bate-papo".  Foi criado um novo modo de intimidade, sempre com o risco da exposição excessiva. É um tanto artificial, na verdade, mas não deixa de ser uma forma interessante de expressão.
    Reforça o narcisismo e o exibicionismo? Não. Apenas os veicula. Quem quiser se exibir , pode. Quem tiver mais recato,  vergonha ou timidez-- que também são  um sentimentos narcísicos--, consegue se preservar. Há também uma experiência de pertinência e de reconhecimento nos processos de resposta do outro, como o "like" ou os comentários favoráveis.
     A paixão de Facebook é facilitada, mas não provocada. E começa pela possibilidade de idealização que não depende só do que é  oferecido pelo meio. As pessoas aparecem felizes, em fotos selecionadas, bonitas e ativas,  narrando suas próprias vidas e histórias, mas isso sempre foi assim no contato humano de superfície ou inicial.
    Só o preconceito contra o "narcisismo de vida", como se fosse "de morte" (expressões de André Green), poderia colar na mídia, antropormoficamente,  o que é constituído pela subjetividade humana. O computador não é em si mesmo um objeto narcísico, mas pode ser assim utilizado, quando sentido como uma extensão do próprio sujeito ou de seu corpo.
     A imagem projetada na tela, vista pelo outro, pode gerar uma proximidade e intimidade inicialmente artificiais, que vão depender, em cada caso, do seu progresso e da sinceridade dos participantes. Pessoas comuns, assim como as "celebridades", podem estar juntas no Facebook, dando uma impressão de inclusão num meio especial, seleto e agradável.
     Os namoros de Facebook podem ser perigosos quando os participantes  acreditam de um modo especial na Coisa Real. E, " acreditando", podem se comportar "como se" ela existisse. São as vicissitudes do que os psicanalistas chamam de "alucinação normal" ou "transformação em alucinose", mas que prefiro denominar de ilusão -- como aquela que o bebê vivencia, òbviamente sem o saber, ao criar o seio da mãe no próprio momento de encontrá-lo efetivamente no mundo, ou como a que experimentamos geralmente na esperança e no amor.
     Os que censuram, reprovam e criticam a paixão de Facebook tendem a crer -- como diz o inglês Adam Phillips-- que "existe um Eu que , por definição,  não é enganoso".
      Os amores no Facebook são promessas de salvação, de beleza, busca de uma "segunda chance" e de surpresas. Às vezes, conseguem ser mais do que promessas, promissores.  Nesses casos (e sempre deve-se lembrar que cada caso é um caso à parte), é porque a idealização foi substituída pela experiência efetiva-- "presencial", como se diz--, sem cair no demérito e no desprezo pela pessoa que foi inicialmente idealizada.
     Alguns casamentos razoáveis surgiram de situações assim, mas essas também não foram "culpa" -- nem mérito-- da mídia. Foram apenas o encontro da esperança de duas pessoas com alguma capacidade de se preocupar e de amadurecer.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

O CASAMENTO AMEAÇADO

  

                                                                       Reinaldo Lobo

         Casamento e religião estão unidos há muitos séculos, até que a morte os separe. Não é nada de novo. Já um livro de auto-ajuda evangélico -- "Casamento Blindado- O seu casamento à prova de divórcio"-- para administrar o "empreendimento" que é a vida dos casais significa, que eu saiba, uma novidade aqui no Brasil.
        Quando seus autores , Renato & Cristiane Cardoso (apresentados assim mesmo, com o "&" de sociedade comercial), informam que venderam mais de 2 milhões de exemplares, pode-se dizer que essa obra é um fenômeno editorial.  O sucesso vem acompanhado de um programa de TV, "The Love School - A Escola do Amor", que passa na rede evangélica do bispo Edir Macedo.
        O casal globe-trotter viveu nos EUA e, possivelmente, aprendeu lá os métodos de ganhar dinheiro com auto-ajuda. Também morou em mais dois países e percorreu pelo menos 30 outros fazendo palestras, por vinte anos, para ensinar a performance do casamento "blindado" contra o Mal. Se é preciso "blindar" um casal é porque o vínculo é muito frágil diante dos "perigos" da sociedade moderna.
       O Mal é -- acreditem-- o Facebook, que teria provocado o crescimento do número de divórcios. É também a independência excessiva das mulheres, sobretudo as jovens, que estariam traindo em grandes proporções, além das tentações da pornografia: segundo uma pesquisa norte-americana,  citada por eles, até mesmo 54% dos pastores cristãos viram exibições pornográficas nos doze meses pesquisados e uma outra revelou que, entre os fiéis cristãos nos EUA, 50% dos homens e 20% das mulheres na igreja eram viciados em pornografia.
       A  dupla está  assustada com os "novos desafios" que "nenhuma geração antes conheceu",  como a internet, as redes sociais , as novas tecnologias de comunicação, o celular, o MSN, o SMS, a proliferação da indústria pornô, o "avanço da mulher na sociedade" que a tirou da "bíblica submissão" ao homem, a facilitação do divórcio e outros fenômenos, como a mudança dos valores e dos gêneros no interior da família.
     Dizem Renato & Cristiane e vale a pena citá-los literalmente:  "Mark Zuckerberg, criador do Facebook, é um dos maiores destruidores de lares na Grã-Bretanha. Segundo estudo divulgado pelo site especializado em divórcios Divorce-Online, o Facebook é citado como motivo de uma em cada três separações no país. Cerca de 1.700 dos 5 mil casos mencionaram que mensagens inadequadas para pessoas do sexo oposto e comentários de ex-namoradas (os) no Facebook foram causas de problemas no casamento. Em 2011, a Associação Americana dos Advogados Matrimoniais (AAML)  divulgou que o Facebook é citado em um de cada cinco divórcios".
        O que Mark Zuckerberg tem exatamente com isso? Será que adiantaria dizer ao ilustre casal que os meios de comunicação em geral, não só o Facebook, apenas facilitaram o contato mais direto e rápido entre as pessoas? E que a decisão de usar esses meios virtuais para fins amorosos depende de cada indivíduo e de sua escolha?
        A visão de mundo ameaçadora do casal parte do pressuposto de que o aumento da autonomia, sobretudo das mulheres, deixa todos expostos a uma tal fragilidade que os seus desejos e ações precisam ser controlados e educados, para que façam as "escolhas certas". As mulheres, desde Adão e Eva, levam a culpa.
      Os direitos e a liberdade individual não contam, pois os seres humanos estariam sempre sujeitos ao Mal.  Há uma concepção de uma natureza humana maliciosa,  incapaz e infantilizada por trás da "ajuda" oferecida por Renato & Cristiane. Pertence a uma pedagogia cristã, é verdade, mas fundamentalista e prescritiva.
      A performance do casal exemplar aparece  como modelo de comportamento a ser aplicado para a salvação de todos, principalmente os que se sentem ameaçados pelas mudanças da sociedade contemporânea. Um detalhe curioso : apesar da tecnofobia dos pregadores moralistas, a grande maioria das citações bibliográficas do livro são de sites, blogs e twites. Prestam assim uma homenagem involuntária aos meios que abominam, reconhecendo que tudo depende do uso que se faz deles.Não há "imoralidade" do meio técnico, mas uma função comunicativa. E eles a utilizam para divulgar sua mensagem persecutória a fim de amedrontar e adestrar os casais.
       A fórmula é bem simples. Basta evitar as tentações do mundo atual para que o Bem se instaure e advenha a Felicidade conjugal. Mas como evitar a atração do "pecado", mantendo intacto o elo conjugal? É aqui que entram as instruções preconceituosas.  Dona Cristiane se dirige às mulheres incitando-as a tomarem cuidado com  as amigas e as outras mulheres, pois representam o perigo de infidelidade do marido.  O conselho é que, uma vez casada, a mulher deve voltar-se para a missão de suprir as necessidades do seu homem, não dando chance ao acaso. Não se pode "dar mole" .
    Primeiro, a esposa precisa evitar manter amizades com mulheres em geral, as solteiras em particular. Deve ter o marido como o único , verdadeiro e melhor amigo -- diz ela.
     Segundo, a mulher "naturalmente gosta desabafar , contar a razão de seus estresses para a amiga, a mãe, ou outra confidente. Aí está o perigo : revelar pontos negativos do marido para outras pessoas. Em vez disso, seja a embaixatriz de seu marido. Represente-o bem e reforce assim o respeito por ele".  Além disso, precisa descobrir as necessidades reais do marido, sejam estéticas, sexuais ou afetivas,para atendê-las prontamente. Mas deve evitar atividades sexuais "contra a natureza", como o sexo anal e quaisquer outras variações.
    O que tem atrapalhado a mulher --diz a dupla de autores-- é se preocupar em estar bem de um modo geral, ocupando um lugar na sociedade e no trabalho, esquecendo-se de que o marido, segundo a Bíblia , é o líder a ser seguido. Mas esse líder tem de ser, como Renato, alguém que cuida e se preocupa com  seus liderados. Portanto, o homem deve cuidar bem da mulher.
    Essa ética do senso comum não vê paradoxos na monogamia, que exige, é verdade, uma espécie de "fé" na sua própria existência, mas que implica sempre a presença da infidelidade e a existência de um terceiro. Dois formam um par. Para haver um casal -- pelo menos no plano do inconsciente-- é preciso três. O terceiro excluído é, ao mesmo tempo, a sombra incluída em todo casal. Quanto maior a tentação de ceder ao outro fantasiado, maior deve ser a blindagem do casamento.
     Qualquer  tipo de complexidade  escapa a essa ética maniqueísta.  O casamento é como uma "empresa" que precisa ser bem administrada , dizem os sócios Renato & Cristiane. E uma empresa  elimina seus concorrentes. Simples assim.
     Os autores não se perguntam seriamente por que as pessoas "devem" permanecer juntas. O desígnio vem dos céus e do clichê : o amor tudo resolve. Cristo é amor. Cristo assim quer. O casamento não tem a História por trás e a família deve ser sempre a mesma, ainda que, de fato, venha mudando desde a Antiguidade.
      Esse livro deve ser lido como um sintoma. É uma defesa paranóide mal construída contra o desamparo, a solidão e a perplexidade diante de um mundo em rápida mutação. Renato & Cristiane são a nostalgia da família patriarcal burguesa do século XIX, apresentada por meios modernos. Seu discurso tem a audiência cativa dos que entregam sua fragilidade à manipulação da "salvação" messiânica. E pagam por isso.

      

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

OS FALSOS REBELDES

                                     

                                                                 Reinaldo Lobo*

        Nunca na história deste país os conservadores tiveram tanto público e tantos aplausos. São um sucesso na imprensa, na TV e até nas ruas. Alguns intelectuais orgulham-se de dizer que "endireitaram", isto é, foram cada vez mais para a direita. Têm seguidores e até mesmo "tietes". Fazem palestras pagas nas casas do Saber, escrevem em jornais, blogs e revistas de massa, são chamados para comentar as notícias dos telejornais e animam grandes audiências. É um fenômeno novo, que pode ter explicação.
        Os "novos conservadores" parecem fazer oposição ao "status quo", são verdadeiros representantes de um movimento contra o "politicamente correto" e culpam a esquerda e o Estado distributivista, "socialista keynnesiano", pela corrupção e o déficit das contas públicas.
       Não adianta argumentar que a corrupção, na forma de um velho Sistema Corrupto, sempre existiu em grandes proporções entre nós,  sendo apenas revelada agora. Ou que o déficit público tem uma história nos governos de direita, sobretudo na Ditadura. Vão responder rápido : a culpa é do governo do PT.
       Num país do Terceiro Mundo, onde a "intelligentsia"  costumava ser de esquerda, apoiava movimentos sociais e guerrilhas de libertação nacional, não deixa de ser um tanto surpreendente o sucesso do discurso de ex-stalinistas convertidos, ex-trotskistas, velhos ideólogos aristocratas, burocratas e mandarins universitários.
      Esses "neoconservadores", alguns deles bem antigos na praça, fazem questão de aparentar uma revolta indignada contra o "estabelecido", seja na universidade ou em qualquer área. Isso é facilitado pelo fato de a direita ter pela primeira vez, além da audiência, a possibilidade de chegar ao poder com apoio eleitoral.
     Um deles, professor de filosofia, não hesita em se rebelar contra o que chama de hegemonia das Ciências Humanas nas escolas, lembrando que o Japão, esse exemplo de civilização tecnocrática, está cortando as humanidades de seu currículo.
     Seu argumento é simples, tão lhano que Sócrates chamaria de mero sofisma: no meio universitário brasileiro há um grande número de professores que privilegiam o ensino de Marx e de Foucault, abusando na dose; logo, seria de bom alvitre até mesmo suprimir, quem sabe, o ensino das Ciências Humanas.
        O raciocínio é tão  irresponsável, leviano e tosco  que nem valeria a pena comentar, não fossem grandes o seu sucesso ideológico e os aplausos vindos do seu público fascinado. A aparência é de uma rebelião contra o "establishment" universitário, mas o sentido é o de corroborar os bons e velhos valores tradicionais acadêmicos, políticos e sociais. É um discurso justificador com aparência de transgressor. Com  todo o respeito, poderíamos dizer  que esse é "um discurso do poder", citando ... Foucault.
       O professor que "endireitou" tem o direito óbvio de pensar à sua maneira, mas é preciso dizer que está completamente equivocado no seu diagnóstico sobre as Ciências Humanas e o seu ensino -- de cujo mandarinato, aliás, faz parte. Não conhece ou prefere ignorar a história da universidade brasileira. Além disso, sua retórica tenta confirmar um mito da cultura tecnológica contemporânea segundo o qual as humanidades e as artes seriam um desperdício de tempo.Esse mito é fundado num valor de segunda classe -- o da eficiência a qualquer preço. Tudo o que funciona -- leia-se: dá resultados "produtivos" ou "econômicos" -- é bom.
       A explicação para o sucesso dessa conversa da "nova direita", reforçada pelas confusas manifestações do anti-petismo das classes médias, deve ser buscada em duas áreas diferentes : a da própria luta pela hegemonia intelectual na universidade e pela onda de moralismo oportunista que tomou conta dos meios de comunicação de massas no país.
     A opinião pública vem sendo preparada cuidadosamente nos últimos anos pelas revistas, internet , rádio e TV, para odiar o pensamento crítico, a distribuição de renda e a igualdade de direitos humanos. As campanhas anti-intelectualistas são tão  sistemáticas como aquelas contra a "ascensão da classe C" , a "preferência pelos pobres" , a presença de cubanos e estrangeiros no Brasil. Estão em  moda na mídia há pelo menos uma década e meia. Um conhecido jornalista "neoconservador" fez, recentemente, pregações abertas em favor de um  livro pseudo-sociológico intitulado "Em defesa do preconceito".
       Os setores intelectuais da direita, que sempre foram minoritários e indigentes nas universidades, apropriaram-se agora da linguagem transgressiva da ... esquerda,  como se esta existisse, por sinal, de modo uniforme e unívoco. Falam hoje como "rebeldes" para serem ouvidos, inclusive pela juventude. Inverteram o sinal ideológico da crítica, para ver se isso "pegava" . Pegou.
        Não se ouve nenhuma fala abertamente  "machista" oriunda dessa direita, mas uma linguagem que se apresenta "contra a dominação" da fala feminista na mídia. Apresenta-se contrária ao "abuso do feminismo" e à sua pregação "exagerada". Também não há nenhum ataque direto aos negros e a seus movimentos, mas um combate contra o "racismo ao contrário" que partiria dos próprios negros.
        Todos conhecem a arenga contra o sistema de cotas nas universidades, que seria "injusto" com os que merecem por "legítimo" desempenho escolar, que seria um "privilégio" dos negros e pardos e que a seleção seria falha , contemplando pessoas de "cor duvidosa". Com isso, oculta-se a injustiça histórica contra os negros, a desigualdade de classes e de educação que os atinge principalmente.

         O efeito ideológico e político dessa "rebeldia" conservadora é engrossar os números da massa que sai às ruas para "protestar" contra a corrupção e insuflar, paradoxalmente, o imaginário dos que pedem uma "profunda transformação" no país : a volta à Ditadura.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

ONDE ESTÁ A SAÍDA?



                                                                           Reinaldo Lobo*
         As pessoas estão mais preocupadas com a bunda da Kim Kardashian do que com as brutalidades do Estado Islâmico, afirma a escritora e feminista norte-americana Camille Paglia, o furacão pensante que veio  pela nona vez ao Brasil e deu uma interessante entrevista ao suplemento "Aliás", do Estadão.
        Crítica feroz da alienação da sociedade contemporânea, a autora de "Personas Sexuais", "Vadias" e outros ensaios tão brilhantes quanto polêmicos, Camille Paglia fala como uma metralhadora. Dispara. 
      Seu estilo lembra muito  o daquele filósofo leninista lacaniano, Slavoj Zizek, de origem eslovena,  cujos diagnósticos sobre a contemporaneidade são tão peremptórios e incisivos quanto os dela. Ambos, cada um a seu modo, descrevem as mazelas da modernidade com alguma precisão e muito pessimismo, mas têm dificuldades de apresentar soluções. Diz ela: "Estamos caminhando para a morte, ou melhor, para o suicídio da civilização ocidental.[...] Sinto que a classe média próspera está numa bolha em relação à instabilidade internacional, do terrorismo ".
       A ênfase de Paglia é na critica à tecnologia eletrônica e à realidade virtual, que estariam facilitando por demais a vida da classe média dos países desenvolvidos. Diz ainda mais:
      "As pessoas não querem dificuldades, não querem se sentir deprimidas.E deixam de fazer reflexões importantíssimas. Precisamos reaprender a contemplar a arte para sobrevivermos na era da vertigem. As crianças , principalmente, merecem ser salvas do redemoinho de imagens que hoje fazem a realidade, com suas tarefas e preocupações, parecer uma coisa fútil e menor".
     A caracterização de uma Era da Vertigem pode ser correta. É um dos nomes da época em que vivemos --pós-modernidade, modernidade líquida, sociedade do espetáculo, capitalismo avançado, modernidade singular, etc. A expressão descreve bem a velocidade e a torrente de imagens no meio das quais estamos mergulhados. Somos atravessados por informações e figuras veiculadas por mídias cada vez mais rápidas e perecíveis. Uma figura substitui ou se converte em outra, um novo meio técnico é inventado a cada dia. A imagem de um menino sírio morto numa praia turca "viralizou-se" de tal maneira no mundo inteiro que acolher os refugiados da guerra civil na Síria se tornou ... moda.
    A sociedade da Vertigem funciona assim. Não dá para dizer que estamos numa nova estrutura social diferente do capitalismo, uma vez que permanecemos submetidos ao consumo irrefreável e ao mito do crescimento econômico interminável. Mas existe, sem dúvida, algo que poderíamos chamar de "pós-industrial" nessa era vertiginosa.  Não é mais uma sociedade puramente industrial, onde predominavam as fábricas com aquelas colunas de chaminés fumegantes e o sistema taylorista de trabalho das linhas de produção. Hoje existem empresas que começam a funcionar automatizadas diariamente, apenas com a inserção de um cartão com chip,. Só que continuam essencialmente desiguais os métodos de apropriação dos meios de produção, da renda, da distribuição do capital e das classes sociais.
     Houve algo como uma inversão do esquema da sociedade, onde o saber e a informatização tornaram-se a nova infra-estrutura. Como lembrou o filósofo Michel Serres, a ciência entrou diretamente para o rol da produção e da reprodução do capital.
     Camille Paglia não está especificamente interessada na descrição sócio-econômica dessa nova estrutura, mas em seus efeitos na cultura, que está fragmentada e à deriva. Dirige-se ao público privilegiado da próspera classe média dos países desenvolvidos e adverte com seu prognóstico: esse universo está-se tornando autista e vai-se auto-destruir.
     O remédio que aponta é fraco. Propõe a reflexão como antídoto para essas elites culturais, como se pudessem se interessar por repensar o próprio meio em que afundam. Acha que a única solução é pela arte, isto é, uma nova forma de pensar a arte que poderia nos levar a todos a uma espécie de purificação perceptiva e estética. Essa solução é compreensível numa intelectual que se dedica a ensinar cultura e literatura numa universidade norte-americana. E  que, apesar de gostar da sensualidade brasileira e desta nossa parte do mundo, ainda não parece ter compreendido que o sistema capitalista é ligado à miséria dos outros, não apenas a uma classe média próspera e desenvolvida.
     Sua solução da salvação pela arte é tão simples e ingênua, a meu ver, quanto a fórmula de Slavoj Zizek para resolver as contradições da sociedade ocidental : voltar ao comunismo, por meio de uma mudança do tipo leninista-stalinista. Quem leva isso a sério?

     Fato é que ainda não temos a saída visível para essa sociedade que caminha, é verdade, por sendas perigosas e produz o aumento da alienação, ao lado de invenções tecnológicas extraordinárias. Como dizia um filósofo alemão do século XIX, se tudo o que é sólido desmancha no ar, também é legítimo esperar que o incremento sem igual das forças produtivas leve à criação de um novo mundo. 

terça-feira, 15 de setembro de 2015

" O mundo--não somente o nosso-- está fragmentado.
Contudo, não cai em pedaços. Refletir sobre isso me parece uma das primeiras tarefas da filosofia hoje".

Cornelius Castoriadis
(Paris- 1989)

FUTILIDADE

                                          

                                                      Reinaldo Lobo*

            O novo filme em cartaz de Woody Allen, "O Homem Irracional", é sobre  alguém que tem o sentimento de que sua vida não tem sentido. Perdeu o significado ("meaningless") ou nunca teve. Uma pessoa sente que sua vida é sem espontaneidade, surpresas, alegria genuína, esperança e criatividade. Há algo de falso  nela, mas não sabe bem o quê, nem a razão.
            A personagem chega a um ponto crítico em que não é mais possível o auto-engano, a mentira ou o disfarce. O desespero se instala. É como se essa pessoa não existisse "realmente". Há um enorme vazio, um tédio e a sensação de que tudo é fútil. Parece que perdeu tudo, exceto a lucidez. Surge a dúvida: a única saída seria o suicídio?
          Ocorre, então, uma virada espetacular, provocada por uma contingência fortuita, como em quase todos os filmes de Allen. O professor, cuja história é narrada por uma aluna predileta,  descobre um meio de recobrar alguma alegria de viver, mas é uma tentativa forçada, igualmente falsa e artificial. Uma saída eufórica, excitada. Algo que se chama, em psiquiatria, de hipo-maníaca. De novo, o acaso vai operar e um acidente contingencial põe fim a essa tentativa.
          Há um dilema ético no filme, também recorrente nessa filmografia. A questão é do tipo "crime e castigo". Aliás, Dostoievsky é citado explicitamente.  Existe igualmente um fino humor nas aventuras do professor de filosofia perdido e de sua aluna apaixonada e empolgada, mas não ao ponto de perder um saudável ceticismo, o seu senso ético e uma inteligência sagaz.
        Esse dilema moral e o humor não são, porém,  os pontos que gostaria de destacar nesta obra brilhante de Allen, pois afinal são ângulos freqüentes em muitas de suas outras, assim como o jogo do acaso e do destino, presente de forma genial em "Match Point" em " Blue Jasmine".
       Chamo a atenção para o sentimento de futilidade existencial e para o sentimento de irrealidade da personagem central, o professor de filosofia atrapalhado. Do ponto de vista psicanalítico, o filme descreve de forma inteligente e sutil uma grave distorção do Eu, que é uma formação defensiva global da personalidade do tipo "como se" ou "Falso Si Mesmo (Self)".
      Não há na história um "diagnóstico" nem um tratamento "clínico", mas o assunto está lá, e bem expresso.   Também não é surpresa haver psicanálise num filme de Allen e o modo como a ilustra é muito claro e bem feito.
       A sutileza e a precisão do diretor do filme não é acidental, uma vez que toda a sua obra, com raras exceções, tem uma qualidade auto-reflexiva e de apreensão dos fenômenos psíquicos inspirada pela psicanálise.
     Allen mostra a psicanálise de um ponto de vista...psicanalítico. Já contou inúmeras vezes em entrevistas que fez análise pessoal por trinta anos. Piadas à parte, disse ainda que , apesar de tanta análise com os melhores profissionais "freudianos" de Nova York, precisou do cinema -- da sua arte-- para tocar em alguns pontos intocados de sua própria análise.
     Não ouso dizer que o filme "O Homem Irracional" é autobiográfico, porque não sei se é. Não há como ter certeza, pois nós, espectadores, não tivemos acesso à análise pessoal de Allen. Não será que todos são autobiográficos? Além disso, esse detalhe é quase irrelevante. Seria ainda mais irrelevante se ele mesmo não tivesse tocado no assunto de que alguns pontos de sua análise pessoal permaneceram intocados, o que é muito comum em muitas análises clássicas.
      O interessante nesse filme é como capta esteticamente e expressa um detalhe particular da condição humana. O fenômeno do sentimento de futilidade decorrente da existência de um "falso self" é muito específico. Escapa à escuta e à sensibilidade de muitos analistas, acostumados com os diagnósticos de neurose, psicose, "border lines", etc. Além disso, é preciso dizer que futilidade, aqui, não se refere, como diz o senso comum, à "superficialidade social"  de algumas pessoas, ainda que essa possa ser   uma conseqüência freqüente do "falso self". 
      A futilidade em questão é -- "tecnicamente", digamos -- um sinal da presença de um "falso si mesmo" e o fracasso da defesa armada para esconder um "verdadeiro si mesmo", cindido, recolhido e ignorado pela própria pessoa. O falso self ajuda alguém a se adaptar ao meio ambiente, quando está dividido entre um núcleo verdadeiro, silencioso, e uma área visível explícita, relativamente adaptada..
     Não é um teatro consciente que um ser humano monta, mas uma operação inconsciente destinada a  proteger uma intimidade desconhecida das ameaças ambientais e poder  funcionar na vida.  A criança pequena teme mostrar-se inteiramente à mãe ou aos pais e,para isso, esconde seu núcleo mais verdadeiro, a fim de garantir a proteção e o amor parentais. O "verdadeiro self" fica guardado para ser -- um dia-- vivido e utilizado. Muitas vezes, forma-se uma camada de intelectualização e um estilo de vida para proteger cuidadosamente a área mais secreta e autêntica de um ser humano.
      A personagem do professor-filósofo de Woody Allen funcionava muito bem na vida de superfície e na área intelectual. Era um acadêmico bem sucedido com trabalhos publicados, prêmios, histórias de aventuras e lendas. Seu carisma dando aulas era elogiado e seu desempenho, tido como brilhante. No entanto, faltava-lhe uma consistência existencial, falta sentida na crise só por ele mesmo, mas que acaba afetando todos ao seu redor. Seu brilho era "fake", em relação a um núcleo que poderia ser vivo e criativo na transgressão.
     Quando se fala de "falso" e "verdadeiro", aqui, não significa atribuir nenhuma conotação de valor. Mas pode aproximar-se do que chamamos de "inautêntico" e "autêntico". O "verdadeiro self" é o que vem de dentro, do mais intimo do ser humano. Muitas vezes, a autenticidade só aparece na crise de identidade ou na transgressão. E nada melhor do que a arte para desvelar o que há de transgressivo e verdadeiro no ser humano.

     Vejam esse filme, vale a pena. Pode despertar o mais estranho, secreto e revelador dentro de todos nós.