quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

FALSAS LEMBRANÇAS



                                                              Reinaldo Lobo*

       O paciente lembra para poder esquecer, dizia Freud. Dito de outra maneira, uma boa análise pode facilitar a revelação da lembrança, mas com a finalidade de recuperar a saúde do paciente. O psicanalista propicia a análise das defesas que formam obstáculos à recordação e uma das maiores dificuldades para recordar é a própria lembrança. “A lembrança falsificada”, escreve Freud em seu ensaio “Lembrança Encobridora”, já em 1899, “é a primeira de que tomamos consciência”.
     Em sua análise de neuróticos, ele concebeu que aquilo que foi pensado antes como recordação -- seja uma narrativa ou uma imagem interiorizada do passado--, não é de fato uma lembrança até que tenha sido interpretada. Em outras palavras, até que seja analisada e elaborada, ela é o que Freud chama de uma lembrança encobridora, uma fantasia sobre o passado. Assim, inúmeras recordações banais podem esconder conflitos insuspeitados pela consciência, imagens simples da própria infância podem revelar verdades dolorosas distorcidas e conflitos traumáticos inconscientes, os quais precisam ser recordados em sua verdadeira dimensão, para que a pessoa que sofre se recupere. Lacan dirá mais tarde, em seus “Escritos”, com seu gosto pelos paradoxos: “O paciente não está curado porque se lembra, ele se lembra porque está curado”.  
       Usando a metáfora psicanalítica, pode-se dizer que o Brasil continuará muito doente enquanto não resgatar de verdade seu passado, e elaborar seus traumas e conflitos soterrados. Entre nós, temos o hábito de varrer tudo isso para debaixo do tapete, passar por cima dos conflitos em nome da conciliação nacional.
      A nossa anistia assimétrica, no final da Ditadura, foi assim: os crimes cometidos em nome do Estado não foram apurados, os criminosos estão soltos até hoje e personagens como o coronel Ustra se foram sem prestar contas à Justiça. Tudo em nome de um projeto de reconciliação proposto pela oligarquia dominante, com vistas a um hipotético futuro de paz social e política. Há até quem tenha saudades desse período ditatorial nefasto, pintado infantilmente com as cores de um sonho desperto e as tintas da idealização.
      A nossa miséria social tem o mesmo destino: sonhamos com tempos de milagres econômicos como se não fossem parte de um processo cíclico de crises capitalistas que não nos tiram do subdesenvolvimento e que agravam a desigualdade entre as classes. Também idealizamos outros povos mais desenvolvidos, como se a disparidade em escala internacional e o desenvolvimento desigual e combinado não existissem.
      Não há conservadorismo maior do que o daquelas pessoas que dizem existir apenas uma “crise moral” na sociedade brasileira, negando nosso passado colonial de exploração, de escravidão e de hipocrisia constante de nossas elites dominantes. Falar na maravilha da produção agrícola, negando uma histórica concentração fundiária no País e a condição subalterna de fornecedores de matéria prima aos mercados internacionais, enquanto a população rural ainda padece de trabalho escravo, é o mesmo que um neurótico falar de seu passado infantil feliz, sem reconhecer as causas do seu sofrimento.
       No Brasil, temos o hábito de lembrar o que nos convém: as lindas paisagens, a natureza “benévola” do povo em geral, recortes de anos dourados, como os de JK e aspirações a “País do Futuro”, e nos habituamos a negar as destruições da floresta amazônica, a poluição desenfreada das grandes cidades, a violência urbana que mata mais do que as guerras da Síria e do Iraque, a conversão nacional ao tráfico de cocaína mais intenso do mundo, superando a Colômbia, a Bolívia, além de muitas outras mazelas.
       O sistema corrupto revelado pela Operação Lava Jato inspirou nostalgia em muitas pessoas em relação ao regime civil-militar de 64 a 85, como se este não fosse uma fonte importante da montagem do próprio sistema corrupto. Foram os “nacionalistas” militares que deram toda a força possível para que surgissem os conglomerados de empreiteiras brasileiras como a Camargo Correia, Odebrecht, Hidroservice, etc., que se alimentavam e algumas ainda se alimentam das grandes obras públicas do governo. Preocupados com a logística e a estratégia de defesa, os militares preferiram priorizar grupos de empresários nacionais em detrimento das empreiteiras norte-americanas ou de quaisquer outros países.
     Sabemos hoje, examinadas as causas e não apenas a superfície e os sintomas da “crise moral” brasileira, que os célebres “tocadores de obras” Paulo Maluf e Mário Andreazza, foram recordistas mundiais, nas proporções do dinheiro da época, nesse curioso fenômeno do superfaturamento. Os complexos viários de Maluf, sua “aventura” da Paulipetro, gastaram milhões denunciados pela imprensa amordaçada e nunca investigados devidamente. A ponte Rio-Niterói e a Transamazônica tiveram, àquela época, o metro quadrado mais caro do planeta, mas os nostálgicos da Ditadura fazem questão de não recordar exatamente.
      Os que justificam esse passado de exploração e violência tendem a esquecer e a banalizar. Fazendo novamente uma analogia metafórica com a situação analítica, vale a pena dizer que uma análise do passado mostra que as lembranças banalizadas, aparentemente periféricas e desimportantes tendem a omitir o principal porque, na maioria das vezes revelam o principal em sua forma e até sinais do conteúdo. O mesmo vale para a negação: quando uma pessoa diz “não que eu queira ofender ninguém”, podemos ter um indício de que teve a intenção ou já está ofendendo.
      Por isso, é difícil acreditar, hoje, que não seja uma grande mentira quando os governantes falam de “reformas” para corrigir injustiças do passado, sem examinar o que foram essas injustiças e esse passado. Suas intenções declaradas não só não correspondem aos gestos, como partem de autoridades ilegítimas e suspeitas de apenas repetir o passado. Em psicanálise, o sintoma gira em torno da repetição; é a pura repetição. Há que interpretar e mostrar. Sem isso, o paciente continua doente.


terça-feira, 5 de dezembro de 2017

UM PENSADOR DA LIBERDADE



                                                                  Reinaldo Lobo

      Na nossa época da rapidez, da imagem fugaz, do consumo infinito, da destruição das significações, da retirada da população da esfera política, da decomposição dos instrumentos de direção da sociedade, do espetáculo da alienação e da superficialidade, faz uma falta imensa uma figura da grandeza do filósofo Cornelius Castoriadis, falecido há exatos 20 anos, em dezembro de 1997.
      Filósofo e psicanalista, o greco-francês Castoriadis (1922) não só diagnosticou a insignificância de nossa época como também apontou o prognóstico implícito e as possibilidades de cura.
     Desde que saiu em 1945 de Atenas, onde estudou economia, direito e filosofia, o filósofo elaborou uma obra diversificada na França, trabalhando décadas como economista da OCDE, entidade que deu origem à União Europeia. Militante revolucionário, fundou com outro filósofo, Claude Lefort, a revista “Socialismo ou Barbárie”, motivo de um grande impacto intelectual junto às esquerdas por sua originalidade de pensamento e sua crítica do totalitarismo.
     Ainda que a obra singular de Castoriadis alcance campos tão diferentes quanto a psicanálise, a economia, a política, a história e a filosofia, ela tem uma unidade em torno de um problema básico – colocar em ação o conceito de imaginário social para gerar e alimentar uma filosofia da história e da transformação.
    O pensamento castoriadiano estabelece a liberdade humana e a imaginação radical, que movem o indivíduo e a sociedade, como os centros da história, cuja natureza é, em grande parte, indeterminada. A imaginação não é definida por ele como representação ou simples combinatória de imagens, ou como erro e distorção, mas como um fluxo de prazer representativo, imagens, fantasias e afetos que atravessam permanentemente o sujeito, de forma aleatória e indeterminada. A imaginação é o disruptivo em nós. Equivale à “vontade” de Nietzsche, só para dar uma ideia aproximada.
    Apesar de não negar os conflitos e as determinantes sociais, Castoriadis privilegia a liberdade como fundamento da ação humana. Ele se situa, assim, no polo oposto da filosofia liberal e do marxismo mais determinista. Ambas as filosofias postulam uma racionalidade calcada no inelutável progresso econômico e tecnológico (em direção ao crescimento da liberdade, no liberalismo), determinados pelo primado da economia e da propriedade (no caso da ortodoxia marxista e, também, do liberalismo). A filosofia marxista pressupõe não só a primazia do fator econômico em todas as instâncias do corpo social, mas também as inescapáveis Leis da História e a chegada inevitável do comunismo.
    Ao contrário desses dois modelos, o projeto claro de Castoriadis é o de pensar a sociedade (e suas instituições) como uma criação humana que não é previamente determinada. A sociedade se constitui não só sobre uma dimensão de base material, mas também pela criação de significações imaginárias sociais (como a religião, os mitos, os ritos e outras obras culturais) que estabelecem as relações entre os homens e que dão sentido às suas ações.
     O filósofo foi marxista durante um certo tempo e militou na corrente trotskista, da qual divergiu porque esta sustentava que a União Soviética era um “Estado proletário degenerado pela burocracia”.  Para Castoriadis a sociedade nascida da Revolução de 1917 não era apenas uma distorção da via correta do marxismo, mas uma entidade nova, com novas relações de exploração de classes, com uma hipertrofia estatal que procurava abranger tudo e todos, isto é, um sistema totalitário. Um novo monstro: o totalitarismo.
     Ao contrário de muitos ex-trotskistas e ex-marxistas, ele não foi para a direita, mas reconstruiu o pensamento de esquerda a partir do anti-capitalismo e do anti-totalitarismo. Não se limitou a uma “decisão ideológica”, impensada e cômoda; foi mais fundo e construiu uma complexa nova filosofia da História.
    Conhecedor de Platão e de Aristóteles, com sólida formação na história da Grécia antiga, Castoriadis não se preocupou a apenas em “desconstruir” (palavra da moda) a filosofia clássica ou o pensamento político – procurou renová-lo de um modo original, apesar da resistência que encontrou nos meios acadêmicos por ter uma cultura erudita, polivalente, e que não ignorou a prática política revolucionária.
     As referências de Castoriadis foram a Paidéia grega, a filosofia clássica, sobretudo Aristóteles; o marxismo do primeiro Marx (o chamado “jovem Marx”); Hegel; os economistas tradicionais e os contemporâneos; a psicanálise, que ele praticou desde os anos 60 até morrer. Em relação a essa última, dizia que era um “fervoroso freudiano”, mas se nota também duas influências importantes, que ele admitiu para mim pessoalmente: Melanie Klein e Lacan.
    Do lacanismo, dizia que aproveitou os erros e os exageros, sobretudo na questão da linguagem e também teria aprendido com Lacan “o que não fazer”. Criticava a “impostura” dos lacanianos ao exacerbar a importância do silêncio na análise e seu equívoco em confundir a lei simbólica com a Lei real, da sociedade efetiva. Curiosamente, há uma semelhança muito grande entre a teoria e a prática de Castoriadis com um autor pós-kleiniano jamais citado: Winnicott, que, como ele, dizia haver uma lacuna a ser preenchida na teoria freudiana da sublimação. Para ambos, a cultura não se explica exclusivamente por um deslocamento sublimatório dos indivíduos, mas há uma autonomia do cultural que interage com o individual, e vice-versa.
    Do ponto-de-vista castoriadiano, a imaginação e o imaginário são constitutivos do homem e da sociedade, cujas metas paralelas poderiam ser a autonomia e a democracia calcada na ação coletiva “de baixo para cima”. A sociedade é uma entidade (uma “mônada”, termo que emprestou de Leibniz) que se autocria organizando-se sobre o que se apresenta a ela em decorrência de um fundo comum de significações (o imaginário social, constituído por crenças, ideologias, mitos, etc.). O “projeto de autonomia” consiste naquilo que define a palavra autonomia: dar-se as próprias leis. Um sujeito é autônomo quando se emancipa das autoridades paternas e vai para o espaço público lidar com as instâncias e instituições de autoridade, legítimas ou não.
   Vivemos, dizia Castoriadis, sob as democracias liberais, sob as primitivas ou sob o totalitarismo, em sociedade heterônomas, onde a liberdade vem “de fora” e “de cima”. Dependemos de leis abstratas que não criamos, de deuses a que nos submetemos, de autoridades impostas. Apenas em alguns momentos da História, o projeto de autonomia prosperou: na Grécia, com a criação da democracia incipiente, nas revoluções antimonárquicas do século XVIII, nos movimentos operários nascentes do século XIX e nas suas sequências de lutas do século XX, como as revoluções russa de 1917 e a húngara, de 1956, autonomista e antitotalitária.
   Hoje, o projeto de autonomia humana consiste em revolucionar a política para tirar a humanidade da alternativa entre democracia liberal capitalista e regimes autoritários falsamente socialistas. A revolução, misto de utopia no sentido mais nobre e de reatualização das ideias do jovem Marx, não será necessariamente feita de sangue ou da tomada de palácios. Será a progressiva consciência de homens lúcidos e da vontade democrática dos povos diante dos abusos do poder: lucidez de que podem fazer suas próprias leis e modificá-las permanentemente. Será uma revolução permanente.
    
      



quinta-feira, 16 de novembro de 2017

A MALÍCIA IDEOLÓGICA


                
                                                                         Reinaldo Lobo

       Puxa, a gente não pode ser nem “um pouquinho racista”, meio de “brincadeira”, que logo vem a turma dos Direitos Humanos querendo impor o “politicamente correto”! Esses chatos sem senso de humor estão inventando, “de cima para baixo, uma sociedade mal-humorada, neurastênica e hostil à liberdade de expressão”.
       Esse raciocínio simplista acima, difundido pela mídia conservadora, como a revista Veja, contém vários truques maliciosos próprios da ideologia. O discurso ideológico tem a capacidade de inverter tudo, esconder o principal e apresentar uma racionalização—no sentido psicanalítico, uma justificativa defensiva para evitar o contato com alguma verdade incômoda ou inconveniente.
      Um exemplo: quando se diz no papel “todos são iguais perante a Lei”  --uma vez que existem na realidade os “Mais Iguais” do que outros--, essa declaração é pura falsificação e generalização ideológica.
      O primeiro truque proposto pelos argumentos em defesa do racismo “leve” é a suposição de que a pessoa que faz “piada de preto”, “piada de judeu”, “piada sobre mulher”, como se fossem apenas “piada de papagaio”, está apenas “se divertindo”. Ora, ela está expressando um preconceito enraizado na sociedade a fim de extravasar seu desprezo e seu ódio contra segmentos discriminados da população.
      Uma parte da sociedade brasileira já aprendeu a distinguir o teor das piadas racistas, graças à assimilação de valores contemporâneos mais avançados e às lutas das comunidades negras para sua integração e reconhecimento. Não somos mais um país tão atrasado que ainda canta a “mulher do cabelo duro”, sem saber “qual o pente” que a penteia. Nem uma nação exclusiva de uma elite que, além de matar mais jovens negros no mundo, proclamava que “negro ou c...na entrada, ou c... na saída”.
      A juventude negra hoje se revolta e a classe média branca tem um pingo de vergonha do que nossa sociedade tem feito há séculos com sua população mais rejeitada e pobre. A própria classe média evoluiu e essa vergonha é o resultado de valores mais recentes adquiridos pelos embates históricos aqui e em outras partes do mundo.
     O “politicamente correto”, assim chamado pelos recalcitrantes e ambíguos das nossas classes dominantes, é desprezado por setores que, justamente, estão na vanguarda da defesa de valores ultrapassados.
     O segundo grande truque dos sutis argumentos racistas é a inversão do papel de vítima. Quem é apresentada como vítima generalizada das críticas ao racismo é a própria sociedade, em sua totalidade, e não a sua parte verdadeiramente vitimada, como os negros e pobres. E quem critica o racismo é acusado de “impor de cima para baixo”, como se a nossa sociedade hierarquizada e estruturada em torno de poder e privilégios.  Ou seja, são esses “intelectuais esquerdistas” que querem doutrinar o povo e torná-lo racista ao contrário, de negros discriminando brancos. A sociedade “neurasténica” não é a da imposição e a educação por meio dos valores de privilegiados, mas é “inventada” justamente por quem resiste a esses valores.
      O fato é que existem hoje setores da sociedade, como as mulheres, os gays, os jovens simpatizantes de causas progressistas e libertárias, muito mais sensíveis às violações dos direitos civis e humanos. E isso incomoda os setores dominantes, que fingem aderir à democracia, mas, na prática, resistem a que seja exercida.
      Quando a causa se torna relativamente inócua, toleram um pouco mais. Aconteceu uma trajetória curiosa com a defesa do meio ambiente: no início, os setores dominantes e suas gazetas acusavam todos ecologistas de serem “ecochatos”. A citada revista Veja repetiu várias vezes o refrão contra os ambientalistas, até pela pena dos mesmos articulistas, como se a defesa da vida e a sobrevivência do planeta fossem lutas vãs.
      Foram necessários anos de provas científicas e evidências da vida cotidiana para que nossas gazetas mudassem um pouco o tom das críticas. À medida em que surgiu uma consciência mundial a respeito do clima e que a própria população começou a perceber a necessidade de uma visão mais séria sobre a sustentabilidade, o assunto da esfera do sarcasmo e do riso irônico e foi parar nas capas e manchetes.
     A democracia permite a criação de novos direitos, como o do divórcio, do aborto, do casamento de pessoas do mesmo sexo. Isso assombra as áreas mais conservadoras do País, como as Igrejas e os ideólogos fundamentalistas. No caso do racismo, o perigo ainda é maior: os conservadores temem que se “crie” abertamente uma “luta racial”, que, por sinal, já existe em parte nos morros e favelas, sob outra denominação.
    Enquanto houver distância social entre as raças, tudo bem, existirá a “paz racial”. Os arautos do conservadorismo querem manter a crença hipócrita de que não há racismo enquanto estiver debaixo do tapete. O que muitos de nós já percebemos é que o racismo cotidiano “escapa” por meio de desabafos involuntários -- ou não-- na forma de piadas e agressões mais ou menos veladas. O extravasamento do ódio racial não é mais encarado como uma brincadeira com a “nega fulô” ou a “negrinha sarará”, como acontecia até o século passado. E a há uma razão para isso: a modernização, que acarreta uma maior consciência negra.
      A chave para compreender a ideologia conservadora é a operação que torna vítimas os poderosos, e as verdadeiras vítimas são acusadas de ter o poder de impor suas ideias e valores. Essa é a inversão predileta de certa mídia.
     Os conservadores na mídia corporativa, nas classes dominantes e na classe média branca são saudosistas de um País que foi o último a abolir a escravidão e que mantinha o negro “no seu devido lugar”.

    Como estamos vivendo uma onda de conservadorismo aqui e no mundo, é de se temer que a democracia esteja ameaçada e que os saudosistas de velhos valores vençam. Já estão elogiando até mesmo Bolsonaro, que ridicularizou os simpatizantes dos quilombolas, e condenando aquela juíza que repreendeu o deputado dizendo que “política não é piada”. Talvez nossas classes dominantes mereçam um candidato a presidente que seja, ele próprio, uma perigosa piada de mau gosto.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

A CRISE SEM FIM

                       

                                                                      Reinaldo Lobo

   Um traço das sociedades contemporâneas é a crença de que o crescimento ilimitado da produção, das forças produtivas e do consumo infinito é, de fato, a finalidade central da vida humana. O resto seria a cultura, a arte, as religiões, as identificações pessoais, os afetos, os sonhos, a esperança, a solidariedade, o reconhecimento e muitas outras inutilidades.
     Essa “ideia” do crescimento sem fim é o que Cornelius Castoriadis chamava de significação imaginária social. A ela correspondem novas atitudes, valores e normas, uma nova definição da realidade e do ser, uma seleção do que conta e daquilo que não conta.
     Os cientistas e os filósofos de plantão determinam uma nova virada para o pensamento e o conhecimento: não há limites para os poderes e as possibilidades da Razão em seu casamento com o capitalismo. Essa significação imaginária se refere também à “aplicação da ciência à indústria”, como dizia o racionalista Marx--o que implicaria em constantes transformações tecnológicas. Nesse ponto, os neoliberais e os marxistas se encontram, isto é, na crença do “progresso permanente”.
     O fato de a natureza estar sendo destruída sistematicamente e de haver crises constantes ou cíclicas na sociedade, com grandes prejuízos humanos e materiais, passam a ser “normais” sob esse ponto de vista da produção e do consumo infinitos. Já não há limites para a progressão do conhecimento, dizem os cientistas em paralelo com os ideólogos. É como se a Razão, de crise em crise, de forma fragmentária e irregular, progredisse em direção a uma Verdade Absoluta que nunca é atingida. Assinalou Castoriadis: “a ideia da expansão ilimitada do domínio racional (“pseudo domínio”, “pseudo racional”) fala de um totalitarismo imanente ao imaginário capitalista”.
      Essa visão-de-mundo capitalista, que se imagina científica e racional, tem destruído sistematicamente os valores, a arte e a cultura, hoje diminuídas a reflexos do “mercado”. Também têm sido detonadas as identificações pessoais pelo rebaixamento das instituições e da política. É como se os sujeitos apresentassem um superego “frouxo”, sem marcos e referências no imaginário social.
      A predominância da significação imaginária do capitalismo produz várias características e efeitos particulares na sociedade atual e nos seus indivíduos. Um deles, é o conformismo generalizado: sua origem é a diminuição da participação dos cidadãos na vida pública. As instituições políticas cumprem a função de afastá-los dos assuntos públicos, convencendo-os da inutilidade de sua participação. É minúscula a parte da sociedade que governa e decide sobre seus sucessores—é a chamada “oligarquia liberal”. Em face da significação hegemônica capitalista desaparece o conteúdo de toda oposição verdadeira entre “direita” e “esquerda”. Tudo isso produz um sujeito conformista e privatizado, que recusa responsabilidade social e política, virado de costas para as questões de toda a comunidade e preso cada vez mais na esfera privada, isto é, na sua família e em algumas relações pessoais. Isso é o que se pode chamar de privatização e despolitização da vida.
         Na democracia contemporânea, quando uma pessoa vota, sua atitude é cínica; não crê no programa que lhe é apresentado, mas considera que o candidato escolhido entre vários é apenas um mal menor em comparação com o governante anterior.
         Na sociedade atual, o indivíduo deixou de ser um cidadão e um produtor na acepção da palavra e se tornou um consumidor. Seu objetivo está em grande medida na aquisição de mais bens, mais diversão, mais sensações, mais turismo. Está passivo e envolvido por uma inundação de ofertas propostas pela mídia.  O sujeito é o espectador da exposição das mercadorias e do espetáculo da alienação.
         O contorno da sociedade é capitalista, e sua meta principal é o consumo desenfreado, além da acumulação do capital. Isso leva a uma operação destrutiva dos laços e da vida social, à privatização do sujeito e ao seu conformismo. Castoriadis chama a essa operação de “avanço da maré de insignificância” em uma “sociedade de lobbies e de hobbies”.
         Do ponto de vista psicanalítico, essa fase desestruturante do espaço social gera uma “crise do processo identificatório”. Isso acontece porque a significação imaginária do capitalismo, entregue a si mesma, entra em crise-- em um tipo de espiral auto-desestabilizante-- e, com ela, as instituições.
       O resultado é, então, ninguém mais saber a sua função na sociedade, qual o sentido da vida social e a sua participação nela. Fica confuso o que se espera de um homem, de uma mulher, de um professor, de um operário, de um profissional. Essa crise identificatória acelerou-se desde os anos 80, com o triunfo do neoliberalismo em 160 países do mundo. Só restam traços remotos dos “tipos antropológicos” anteriores, da década de 70 para trás.
       Não se pode falar de um sujeito no sentido pleno quando as pessoas são levadas a não pensar, não refletir sobre si e sobre a sociedade. Para existirem sujeitos é preciso que os indivíduos possam falar de um “nós” coletivo e possam instituir um campo de conhecimento reflexivo, uma lucidez e responsabilidade pela sociedade a que pertencem.
       A dúvida atual é se as chamadas democracias liberais têm como produzir esses indivíduos autônomos e em quantidade suficiente para restaurar a esfera pública e uma liberdade digna desse nome.





    

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

UMA DEMOCRACIA DE TORCEDORES

                            
                                                             Reinaldo Lobo

    O governo brasileiro continua a produzir pacotes de maldades, atendendo as camadas mais privilegiadas da sociedade. A última foi a portaria do Ministério da Agricultura facilitando o trabalho escravo no campo, velha reivindicação dos “ruralistas”. A medida viola os direitos humanos, mas o cinismo de Michel Temer deixa claro que tudo não passa de uma manobra para atrair votos no Congresso a fim de livrá-lo da deposição e da cadeia.
     Estamos assistindo paralisados a um caso único de governo que não se importa com a impopularidade e só age para preservar interesses particulares. É o mais impopular da nossa História desde que existem as pesquisas de opinião. O mais cínico também. As decisões partem de uma constatação negativa: “já que possuímos maioria comprada no Congresso igualmente impopular, não temos nada a perder em adotar medidas contra a população mais pobre e os trabalhadores em geral”. É a “positividade do negativo” para os mais poderosos do País.
      A mídia – os jornais, as revistas, a TV, as redes sociais dirigidas, a publicidade política—têm parte na formação do que o linguista Noam Chomsky chama de “consenso” na opinião pública. Só que, no nosso Brasil, é um consenso negativo: “não há nada a ser feito; não temos nada com isso, pois são todos corruptos; não há solução para a crise política; a economia anda sem os políticos; a Justiça também está comprometida; só um milagre em 2018 poderia salvar-nos”.
       O consenso formado pela mídia era o de que havia uma única causa para os problemas nacionais: a presença do PT no poder. Removido o PT e neutralizada a candidatura de Lula, o que resta? O vazio e o consenso negativo, no qual se apóia Michel Temer.
       Não há modelos positivos em que se apoiar, porque, de fato, o Sistema Corrupto corroeu tudo e a Lava Jato, cujas origens no judiciário são anti-políticas, acabou por atingir potencialmente todas as esferas da área institucional -- inclusive os juízes, atualmente ultrapolitizados. 
    As revistas nacionais insistem que estamos num beco sem saída, eliminando a possibilidade de organização na esfera da sociedade civil e de manifestações populares. Como são conservadores em sua maioria, as revistas e os jornais evitam estimular qualquer pressão de baixo para cima que possa desestabilizar a “lei e a ordem”.
    Não por acaso, o governo Temer tenta aliar-se à mídia conservadora, adotando o slogan da bandeira, Ordem e Progresso, para dizer de que lado está, apesar de corrupto.
    Estabilidade, leis de contenção das reivindicações populares e “austeridade” – são as palavras-de-ordem atuais
     A mídia ocupa um papel dominante na política. Por isso mesmo, um papel perigoso. Rege o espetáculo político, determina quem presta e quem deve ser desprezado, às vezes julga e condena, seleciona os eventos a serem percebidos pelo público e os que devem ser ignorados.
    A seletividade não é resultado de qualquer censura, mas a própria imprensa, que hoje envolve o audiovisual e todo tipo de comunicação rápida, dá forma aos “fatos”. A morte de trabalhadores sem-terra, muitas delas em massacres, ocupa um espaço muito menor do que as brigas pelo poder entre notórios corruptos ou mesmo do que a novela das delações de corrupção. Denúncias contra Lula e o PT ocupam manchetes, enquanto as delações contra conservadores são minimizadas.
    Não se trata de má fé explícita, mas de percepção seletiva, automática e inconsciente. É o trabalho da ideologia, que determina a percepção sem que as pessoas saibam. Mas, muitas vezes, assume a forma de decisão consciente e proposital.
    Cito novamente Chomsky: “Considerando o papel que a mídia ocupa na política contemporânea, somos obrigados a perguntar: em que tipo de mundo e de sociedade queremos viver e, sobretudo, em que espécie de democracia estamos pensando quando desejamos que essa sociedade seja democrática? ”
     Essas observações do filósofo e linguista não valem apenas para o poder na sociedade norte-americana, onde o atual presidente utiliza a mentira e as “fake news” para governar. O fato mais importante é que Trump não inventou as “fake news”, mas elas são o resultado da disseminação dos novos meios de comunicação e da própria imprensa relativista e tendenciosa.
     A “pós verdade” hoje se confunde de modo grave com a própria notícia “regular” da mídia, pela falta de transparência quase generalizada. Se, por um lado, ficou difícil para qualquer governante esconder certos fatos, uma vez que as técnicas contemporâneas permitem até uma notável invasão de privacidade, também é possível, por outro, mascarar, inventar e armar situações onde as aparências podem ser tomadas como “verdades”.
     Aqui no Brasil, onde temos uma democracia de espectadores de TV, de consumidores e de torcedores que assistem às brigas de que o povo não participa, o consenso negativo foi criado para paralisar ações que não se dirijam apenas aos alvos selecionados e que deixem a chamada opinião pública incapaz de se tornar um movimento efetivo de cidadãos.



quarta-feira, 11 de outubro de 2017

O CINISMO PROTETOR

  

                                                       Reinaldo Lobo*

       O cinismo psíquico é uma defesa sofisticada, usada principalmente pelos adultos. Do que nos defendemos? Da realidade, ou melhor, da dor que ela provoca ou pode causar. Dizemos de algumas profissões como a de policial, de cirurgião, de juiz e de jornalista, que elas expõem seus praticantes a duras experiências da vida. Podem levar ao cinismo, que envolve uma certa indiferença cúmplice e uma anestesia diante da dor infligida ao outro.
     O Brasil é hoje um país com muitos cínicos nesse sentido, gente de quase todas as profissões.
     Uma grande parte do povo que foi às ruas a partir de 2013, pedindo a cabeça dos governantes, agora está paralisada, medrosa ou, sobretudo, cínica. Isso tem a função óbvia de não ver o próprio erro e de não reconhecer as consequências dos seus atos. O alcance de uma atitude política imediatista nos escapa com frequência e pode dar no que está acontecendo agora, no presente de recessão profunda e estagnação econômica.
    Além disso, pode revelar o que ninguém esperava—ou seja, que nossos aliados eram também corruptos, alguns até há mais tempo do que aqueles que imaginávamos.
    O cinismo protege também de ver a miséria, a destruição da natureza, as leis arbitrárias e regressivas, a perseguição às minorias, o fanatismo religioso a serviço do dinheiro, o massacre de jovens nas favelas, a inoperância do combate às drogas, a eliminação de direitos humanos e trabalhistas e a enxurrada de leis aprovadas em benefício de bilionários e aproveitadores dos recursos públicos.
      A irmã do cinismo é a hipocrisia, outro recurso pré-consciente e, às vezes, consciente, destinado a reassegurar uma pessoa ou um grupo.
     Não deixa de ser uma ironia bizarra sabermos que boa parte dos que ostentavam cartazes e gritavam contra a corrupção eram, eles próprios, notórios corruptos. Geddel Vieira Lima, por exemplo, estava na linha de frente das manifestações de camisas amarelas e, agora, tudo indica que é o dono daquelas malas com mais de 50 milhões de reais achadas em apartamento de sua propriedade. Assim como não deixa de ser ridículo, mas revelador, que personagens como o ator pornô Alexandre Frota esteja também à frente dos protestos moralistas contra a nudez em museus, ou, ainda, que se lance um olhar pedófilo recalcado sobre uma performance no MAM.
          O preconceito consiste em julgar um fato ou um fenômeno baseado em apenas informações parciais. É assim que um antissemita justifica sua generalização a partir de uma experiência com um judeu determinado ou por sua estranheza em relação a hábitos que não entende ou não conhece o suficiente.
         Essa extensão no julgamento é frequente igualmente na avaliação dos políticos, como defesa em relação à constatação de que aqueles nos quais votamos também prevaricaram: “Todos são iguais, devem ser punidos igualmente com a violência da Lei! ”.
        O cínico atribui a culpa ao outro e lava as mãos.  Pilatos pode ser considerado um dos pioneiros do cinismo comportamental. Interessante é o seu recurso à inação, que, na verdade, é um ato. Parece um gesto de complacência, neutralidade e de democracia, mas consiste numa tomada de posição. Pilatos escolheu o seu lado, romano, deixando para o povo a decisão que sua própria lei e seu pessoal executou.
         No Brasil atual, Pilatos encarnou na forma de uma parte do povo, que se recusa a agir contra a máfia que empalmou o poder na onda de ódio anti-petista. Aceitar que certos atores políticos são parte de um antigo Sistema Corrupto é dar aval ao petismo. O PT virou a Gení da atualidade. O ódio e o pseudomoralismo exacerbado de juízes e promotores estão levando a desastres como o suicídio daquele reitor da Universidade Federal do Paraná, que se jogou do alto do vão livre de um shopping.
        Agir saindo às ruas ou protestando contra o governo Temer seria reconhecer a precipitação, a parcialidade, o excesso, o erro, a ingenuidade política, mas, sobretudo, constituiria violar uma lei ideológica atacando um governo que, apesar de acusado de corrupto como o anterior, é conveniente para setores adeptos do capitalismo de resultados.
       Boa parte das nossas classes médias está surfando a onda do “todos são iguais, mas alguns são nossos iguais”. Há, para esses, alguns corruptos chiques que devem ser mais tolerados do que os sindicalistas “vulgares e deselegantes”. Daí o silêncio cínico.
       O cinismo a que nos referimos tem pouco ou nada a ver com o cinismo filosófico, aquela doutrina criada por Antístenes de Atenas (444-365 a.C.), que pregava uma vida simples e natural, uma felicidade desapegada de riquezas, artifícios e frivolidades e que tomava a vida dos cães como uma espécie de modelo ideal da simplicidade. A única ligação possível com o sentido original da palavra, hoje deformada, talvez seja a indiferença, comum ao desapego grego aos bens e riquezas vigentes e, hoje, o gesto de virar os olhos para lá diante da imoralidade evidente “dos iguais”, cheios de riquezas e de bens.

        O cinismo a que nos referimos é diferente da filosofia antiga, pois aplaca a consciência dos que não querem enxergar a corrupção, a riqueza ilegal e o abuso daqueles que amavam, toleravam, e até agora toleram. Muitos dos que votaram em Aécio Neves, por exemplo, só querem ouvir falar de outros corruptos e, apesar de prometerem não votar mais nele, lastimam sua decadência política: “um rapaz tão igual a nós, simpático e bem vestido”.
       O cinismo psíqu

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

O CAPITAL NUNCA DORME



                                                               Reinaldo Lobo

                 Dormimos uma grande parte de nossas vidas, o que é, do ponto de vista da sociedade de consumo e do capital, um desperdício de tempo e dinheiro. “Time is Money”, diz o velho clichê norte-americano. Só faltava o capitalismo invadir o nosso sono e instrumentalizar nossos sonhos. Faltava, pois já não falta mais.
              A história desse processo de conquista da última fronteira pelo capital—o sono e o dormir—está contada num livrinho intrigante traduzido aqui na praça, denominado “Capitalismo Tardio e Os fins do Sono -- 24/7”, de Jonathan Crary, lançado por uma nova editora, a “Ubu”, criada em 2016.
              O autor, professor de estudos culturais na Universidade de Columbia desde 1989, conta que milhões de dólares estão sendo investidos em pesquisas privadas e militares para produzir um ser humano que não durma muito, ou, pelo menos, seja capaz de ficar insone por 24 horas por sete dias, daí o subtítulo 24/7.
            Para o Pentágono, esse tipo humano seria um soldado perfeito, tanto que foram designadas equipes de psicólogos e neurologistas para realizar e estudar experiências de abstinência de sono, inclusive o exame dos  presos “extraoficiais” torturados também dessa forma em Guantánamo.
            Para a sociedade de consumo, “a imensa parte de nossas vidas que passamos dormindo, libertos de um atoleiro de carências simuladas, subsiste uma das grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismo”—o sono, escreve Crary.
           O autor sabe o que muitos de nós sabemos, isto é, o capitalismo cria “desejos” e “necessidades” artificiais aos quais estamos expostos e submetidos em nosso estado de vigília diurna. Também é conhecido o fato de que esses artifícios são destinados a provocar o consumo, nem sempre ao alcance de todos -- que vão desde um novo carro com maior potência e rapidez para estradas com limites de velocidade, até uma marca martelada pela publicidade ou um gadget eletrônico com recursos maiores do que usamos, ou um novo sabor de comida ou viagens para resorts turísticos que são verdadeiras ilhas de prazer construído e programado. Para isso, o consumidor precisa estar atento e desperto.
          Desde 2001, após o advento da maior onda de terrorismo internacional e a instauração de um “Estado de Exceção” nos EUA e vários outros países, a privação de sono tem sido uma prática de tortura aplicada a vítimas de “custódia extrajudicial” e a outros presos. Muitos desses “programas” para prisioneiros foram elaborados sob medida por psicólogos que, fazendo parte de equipes de consultoria de ciências do comportamento, procuravam explorar vulnerabilidades emocionais e físicas de cada detento.
         A privação do sono como forma de tortura é usada há muitos séculos, mas sua aplicação sistemática coincide historicamente com a disponibilidade de luz elétrica e a facilidade para amplificar o som de modo contínuo, diz Crary. A polícia política de Stálin, a NKVD, a usava rotineiramente em 1930, como parte de uma sequência de brutalidades e de violência gratuita que danifica irreparavelmente seres humanos. Sabe-se que, em experimentos, ratos morrem depois de três semanas de insônia. Em nós, humanos, é suficiente um período curto de alguns dias para tal prática induzir a psicose. Após algumas semanas, surgem danos neurológicos. A falta de sono produz um estado de extrema submissão e desamparo, tornando possível extrair informações relevantes da vítima, que confessará ou inventará qualquer coisa. O DOI-Codi, em São Paulo e no Rio, usava muito esse método durante a repressão à oposição à ditadura militar-civil de 1964-85.
          O que mudou no pós-11 de setembro foi a naturalidade com que a privação de sono e outras torturas passaram a vigorar, no combate ao radicalismo islamita. E isso serve de modo especial para as pesquisas sobre o sono no Departamento de Defesa dos EUA e em outras partes.
          Sabe-se que o Pentágono organizou uma equipe e investiu milhões de dólares na investigação sobre pássaros que migram, em função das estações, do Alasca até o México, entre eles o pardal da coroa branca, uma espécie que migra no outono para o sul e na primavera retorna para o norte. O detalhe é que o pardal da coroa branca tem a capacidade impressionante de permanecer acordado por até sete dias durante as migrações, o que permite que voem e naveguem de noite, e procurem por alimento de dia, sem descansar. Nos últimos seis anos, o Departamento de Defesa norte-americano gastou uma fortuna para estudar essas criaturas. Cientistas investigam a atividade cerebral desses pássaros durante a longa vigília, a fim de obter informações aplicáveis aos seres humanos e saber como as pessoas poderiam ficar sem dormir e funcionar com eficiência e produtividade. Se o objetivo inicial era conseguir o soldado que não durma, com a expansão da pesquisa por corporações privadas essa meta dirigiu-se ao mundo do trabalho e do consumo.
           Parece que o livro anuncia um admirável mundo novo, onde funcionaria uma distopia aterrorizante, onde o sono estaria abolido. Não é bem assim. Mas não há dúvida que o estudo dos pardais da coroa branca é apenas uma fração de um amplo esforço científico e militar para obter algum controle, mesmo que relativo, sobre o sono humano. Diversos laboratórios estão conduzindo hoje pesquisas avançadas e testes experimentais de técnicas de privação de sono, recorrendo a substâncias neuroquímicas, terapia genética e estimulação magnética transcraniana. A meta imediata é conseguir que alguém fique 24 horas sem dormir por sete dias.
        O autor se estende sobre questões filosóficas e políticas sérias a respeito do sono e do sonhar, lembrando inúmeros escritores, a começar por Freud, que associaram o dormir ao sonho, “esse guardião do sono” -- e o sonho a uma fonte de projetos para um futuro melhor da humanidade.
      Diante disso, é preciso ficarmos atentos, digamos acordados, para não ser possível que a sociedade humana se torne uma lúgubre e triste distopia de robôs sem alma.


terça-feira, 12 de setembro de 2017

O ESTADO EMOCIONAL DO PAÍS


                                                    
                                                                  Reinaldo Lobo

    Os brasileiros estão confusos com o espetáculo da crise brasileira na TV e nas redes sociais. Não é mais possível a simples polarização entre o Bem e o Mal, nem a busca de um único inimigo ao qual acusar. Não existe apenas uma Gení a servir de bode expiatório. Todos “são culpados” e não se sabe mais em quem confiar.
     A novela da Lava Jato, acompanhada em capítulos estudadamente vazados para a mídia a fim de ganhar “apoio da população”-- como disse o juiz Moro-- parece que não terá um final feliz. Ou, pelo menos, tudo indica que acabou em paradoxo e complexidade, mas os seus agentes ainda não perceberam. Moro ainda tem a chance de atingir um ponto de sua missão, Lula, principal alvo inicial da operação, mas até isso está difícil agora.
     Curiosamente, a oposição principal à operação parte hoje de quem fingia defendê-la e queria servir-se dela para seus objetivos políticos.  
     A onipresença da mídia na sociedade, a manipulação dos estados emocionais dos cidadãos pelo impacto das notícias e dos comentários, o partidarismo da nossa imprensa – tudo isso leva à crença de que teríamos um povo mais politizado e consciente, mas não é bem assim.
    Os brasileiros estão perdidos com as mensagens contraditórias emitidas pelo Judiciário, pelos partidos e pelos meios de comunicação. Os que saíram às ruas de camisas amarelas pedindo o fim da corrupção estão perplexos e paralisados. Viram mais tarde muitos dos corruptos notórios nas fotos de suas próprias passeatas.
   Como entender que a Rede Globo, principal geradora dessa novela e formadora de opinião no País, passe de uma uma posição a outra, por motivos pouco conhecidos do público?
    Quem é o sujeito da ação política por trás do comando do espetáculo? Essa é uma indagação sem resposta visível para o povo.
     Os segmentos mais populares, sem camisas amarelas, estão numa angustiante expectativa sobre quais direitos sociais terão depois das chamadas “reformas”, desencadeadas em curto espaço de tempo pelo governo pós-impeachment. Só os sindicatos e frações de movimentos sociais fazem manifestações ignoradas em grande parte pela mídia.
     Os jovens, estudantes e profissionais, estão divididos entre apoiar os trogloditas da direita, a turma do Bolsonaro, os “gestores” do tipo Dória ou a paralisia da esquerda desmoralizada pelas acusações de corrupção, dividida e relativamente impotente na ação.
      No ataque ao sistema corrupto, está acontecendo no País algo semelhante ao que fez o novo prefeito de São Paulo na dita Cracolândia: atacou um ponto como se fosse o único alvo e o crack se espalhou para muitos lugares da cidade, alguns inesperados. As pessoas não sabem se o crack foi eliminado ou se apenas se diversificou.
      Os que tinham como referência política um determinado partido -- para combater os principais focos de corrupção nacional, segundo sua visão--, perderam a referência ao ver o líder em quem votaram aparecer indigitado por graves denúncias.
     Antes, os inimigos eram Lula e Dilma, então como é possível que Aécio Neves e mesmo o “mal menor” apoiado taticamente, Temer, surjam como chefes de quadrilhas?
       A essa dificuldade de percepção contraditória chama-se, em psicologia, “dissonância cognitiva”. Essa mesma dissonância afeta a esquerda, quando se vê o principal partido originalmente contrário à corrupção, o PT, com vários líderes citados em listas de propinas e manobras pouco republicanas.
      Contra quem dirigir o ódio neste momento, uma vez que a situação de crise econômica, também difícil de compreender, induz a essa emoção forte e politicamente poderosa? Já não é tão fácil achar um culpado, inclusive, pela própria crise econômica.
      Como recuperar uma visão de mundo binária, capaz de operar de modo semelhante aos computadores: sim ou não, isto ou aquilo? Apesar desse maniqueísmo não ser desejável, ele oferece às pessoas algum solo onde se apoiar. Não é justificável, mas compreensível. Até esse “consolo” está faltando neste momento da vida do País.
       Quando a perplexidade parece diminuir um pouco, logo vem alguma  notícia perturbadora e com linguagem de dupla mensagem. A mídia não para de dizer, por exemplo, que as “reformas” do governo pós-impeachment são essenciais para salvar o País e acabar com a crise.
    O uso da palavra reforma é enganador nesse caso e passa uma mensagem dúbia. Primeiro, porque nada indica que são verdadeiras reformas, mas medidas de “austeridade”, restaurações, acertos e legislações liberais à moda antiga, quase anteriores à revolução de 1930 -- quando houve, aí sim, uma série de reformas que deram maior segurança aos cidadãos em geral e aos trabalhadores, em particular. E nada garante que as tais “reformas” atuais vão tirar o País da crise econômica e, menos ainda, da precária situação política. Apenas ameaçam lançar o ônus da crise para os mais pobres.
    Um ponto parece certo: as mudanças propostas afetam negativamente a vida dos trabalhadores, retirando garantias conquistadas por décadas de lutas sociais e políticas.

     Como é possível confiar nas diretrizes propostas por quem dirige a vida nacional se as próprias palavras usadas são ambíguas ou contraditórias? Certamente, os mais pobres são os que têm as maiores expectativas, mas são também os que mais desconfiam e temem o futuro.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

MEIA DEMOCRACIA


                                             
                                                                    Reinaldo Lobo*

         A democracia está sob ataque no mundo inteiro. A pretexto de suas falhas de representação, muitos ideólogos de diversos países encerraram o namoro democrático que vinha desde o fim dos regimes totalitários do Leste Europeu, em 1989.
        Associada ao capitalismo de livre mercado, a democracia liberal era a receita ideal apregoada em toda parte. Foi até imposta pela força das armas em alguns países do Oriente Médio.  
        Hoje, não é bem assim. O discurso liberal foi substituído por uma crítica dos limites da democracia e, ainda que mantida formalmente nas Américas, na Europa e em boa parte da Ásia e África, está sob suspeita de enfraquecer o espírito coletivo, promover o individualismo e a ineficiência. A lembrança de que a maioria das nações reivindicava até há pouco tempo a qualificação de democrática, vem sendo deixada para trás.
       Comparado com empresas privadas, o Estado Democrático é pintado como um resquício de burocracia que entrava o fluxo das decisões de mercado e um obstáculo à manutenção do capital internacional. É comum ouvirmos empresários declarando seu amor à China, onde há um capitalismo totalitário no qual imperaria, segundo eles, uma grande facilidade decisória, sem as amarras e meandros democráticos.
       O capitalismo chinês teria, por exemplo, o mérito de impor suas decisões  com mais rapidez e fluidez entre a ponta da produção e da comercialização, sem falar da repressão às reivindicações salariais e da submissão dos trabalhadores. A Rússia do autoritário Putin costuma receber elogios parecidos, por reunir restos centralizadores e a estabilidade do regime anterior combinados com a dinâmica do capital.
       O risco de abertura excessiva da democracia à criação de novos direitos e à participação popular constitui uma ameaça à “oligarquia liberal” que dá as regras e governa nos chamados países ocidentais. A preferência por Estados de Exceção é cada vez maior e talvez constitua a forma política e jurídica ideal a serviço da ideologia neoliberal. 
       Todo Estado é, num certo sentido, fechado em si mesmo. Forma um círculo de poder. É oligárquico. Dizia um célebre teórico da oposição entre democracia e totalitarismo, o sociólogo Raymond Aron, insuspeito de anarquismo ou de esquerdismo: “”Não se pode conceber um regime que, em algum sentido, não seja oligárquico”. Um outro autor, o clássico Robert Michels, de orientação mais à esquerda e estudioso dos partidos políticos, falava de uma “Lei de Ferro” da burocratização pela existência inevitável de oligarquias que empalmam o poder.  De fato, os que defendem a democracia como uma resistência ao avanço do poder sobre a sociedade, sabem perfeitamente que mesmo ela dá espaço às oligarquias dominadoras.
       No entanto, o que está ocorrendo no período histórico presente, cuja culminância foi a eleição de Trump para a presidência dos Estados Unidos, parece ser algo mais sério, na forma de uma ofensiva de direita que busca, no mínimo, obter a fórmula ideal da “meia democracia”. Imagina-se a situação em que o Estado seria aparentemente mínimo, mas sua ação ultra eficiente prescindiria da aprovação das maiorias e os representantes do povo estariam desconectados ainda mais do que hoje de suas bases, a fim de tomar as decisões convenientes ao livre mercado e ao capital internacional. Sua meta seria uma desconexão entre as instituições como o Judiciário, o Executivo e os Legislativos, de um lado, e a soberania popular, do outro.
        É como se a direita tivesse roubado alguns argumentos da esquerda marxista, para dizer, por exemplo, que os Direitos do Homem são os direitos egoístas do individualismo burguês e que, agora, é preciso reduzir a esfera de sua legitimidade em nome da eficácia da ação política e econômica.
       Vários autores perceberam esse deslocamento, como o filósofo italiano Giorgio Agamben, cujas análises procuram demonstrar que os estados de exceção tendem a se tornar permanentes, como se constituíssem a essência das democracias contemporâneas. Ou, sobretudo, como o francês Jacques Rancière, para quem está-se desenvolvendo um verdadeiro ódio à democracia na cultura atual, cujos críticos do sistema, de direita e de esquerda, reduziram o “homem democrático” seja ao “indivíduo egoísta” ou ao “consumidor ávido”, suprimindo a dimensão original da revolução democrática, germinada lá atrás, na Grécia, que é a emancipação e a plena cidadania.
        O discurso do elogio da democracia, presente nos tempos do totalitarismo no século XX, vem sendo substituído por narrativas sobre os seus riscos. Curiosamente, há uma coincidência entre as palavras e os fatos. Os golpes parlamentares de direita, como em Honduras, no Paraguai e no Brasil, assim como a crise da esquerda, ainda sem desfecho, da Venezuela, mostram aqui em nossa América Latina que o fogo é disparado não pelos militares, mas pelos políticos e os membros do Judiciário.
        A democracia corre o risco de morrer pelas mãos dos que mais deveriam defendê-la, promovendo a sua institucionalização.
       A ilusão de que a democracia é o regime mais compatível com o capitalismo leva muitos a acreditarem que basta o seu funcionamento conjugado para que sua sobrevivência esteja garantida.

      Ao contrário, pode-se pensar que a maior ameaça contemporânea a esse regime venha justamente desse binômio, uma vez que o capital se conjuga apenas com sua própria lógica de reprodução e de crescimento. O sonho do crescimento sustentável e constante pode ser também a lenta agonia da democracia.

segunda-feira, 31 de julho de 2017

UMA OUTRA ESQUERDA

   
                                               
                                                                Reinaldo Lobo                                                               

       Existe uma esquerda fácil de se identificar. É a dos slogans, do entusiasmo militante, das palavras-de-ordem, da adesão cega a um lado, do maniqueísmo e até fanatismo, da falta de espírito crítico em relação aos seus próprios erros e do conforto burocrático. Costuma ser animada por valores éticos, pela busca da igualdade, justiça e liberdade, mas nem sempre sua ação se sustenta nos seus princípios ao longo da luta. É conciliatória e radical, muitas vezes contraditória nos seus fundamentos. A tentação do populismo é frequente. Pratica eventualmente um maquiavelismo barato ou, então, se fecha em algumas ideias simples e em posições extremas.
       Há, porém, uma outra esquerda mais difícil de localizar em meio à guerra ideológica e pouco reconhecida em seu valor inestimável. Esse grupo é tão esquerdista quanto o outro, mas não hesita em proclamar sua independência e dirigir um “fogo amigo” ao PT e a todos os partidos localizados nesse lado do espectro político.
     Sua visão é mais circunspecta e reflexiva, ainda que bastante crítica tanto em relação ao capitalismo quanto ao que chama de “socialismo de caserna”, dogmático e autoritário. Filia-se a uma ancestralidade mais libertária, respeita autores como o francês Merleau-Ponty, o neomarxista alemão Theodor Adorno e os epígonos da célebre Escola de Frankfurt, assim como os franceses Claude Lefort, André Gorz e, sobretudo, o greco-francês Cornelius Castoriadis, cujas teorias foram construídas, simultaneamente, nas lutas antitotalitária e anticapitalista.
     Para essa esquerda contemporânea não é apenas importante a diferença entre esquerda e direita, mas igualmente entre totalitarismo e democracia. Pode-se até arriscar dizer que se fala de uma geração intelectual “pós-totalitária”, que não ignora a monstruosidade do que se construiu em nome do socialismo no Leste Europeu e em outras partes do mundo, sem negar, contudo, avanços obtidos nas esferas sociais e políticas por muitos movimentos e governos que reivindicaram o rótulo de socialistas ou mesmo de comunistas.
     Essa posição singular é, como se vê, difícil. Obriga a navegar pela complexidade histórica atual e exige muita lucidez e sutileza nas suas análises. O que não falta, aliás, ao livro “Caminhos da Esquerda—Elementos para uma Reconstrução”, recém lançado pela Companhia das Letras, e ao seu autor, o filósofo Ruy Fausto, professor emérito da USP, também professor e doutorado pela Universidade de Paris I.
     Um livro raro na nossa Pindorama, que traça um diagnóstico duro sobre a trajetória dos governos Lula e Dilma sem perder de vista a brutal ofensiva da direita contra eles, inclusive a forma assimétrica das decisões da Lava Jato e do Judiciário, bem como o avanço direitista no mundo, sobretudo após a eleição de Trump nos Estados Unidos.
       Fausto é severo no diagnóstico geral quando diz, com razão, que um “trabalho de reconstrução” da esquerda, posta em xeque desde o evento simbólico da queda do Muro de Berlim, em 1989, “deve começar pela percepção de que, por diferentes razões e sob diferentes formas, vivemos nos últimos cem anos um período de alienação radical do projeto de esquerda em relação ao que ela representou na origem, e deveria continuar representando”.
      Uma objeção que geralmente parte da direita seria: “para salvar a esquerda, ” o autor estaria pondo entre parênteses a esquerda “realmente existente” e se refugiando numa outra, ”que só existe no seu espírito”. É a crítica sobre a falta de realismo em propor um projeto socialista depois do stalinismo, do Gulag, de Pol Pot e outros fenômenos aberrantes.
      Fausto apresenta uma resposta interessante a essa acusação frequente, ao fazer uma analogia com o destino do cristianismo sob o poder da Igreja, que teve “a Inquisição, as Cruzadas, o papa Bórgia, a noite de São Bartolomeu, o reacionarismo de uma fieira de papas, a atitude do papa Pio XII na Segunda Guerra Mundial, a homofobia, a oposição ao divórcio, o fanatismo nas diretrizes sobre a escola, enfim, uma longa história de erros e horrores do cristianismo realmente existente”. E pergunta: “Seria tão irrealista assim dizer que, apesar de tudo, o cristianismo verdadeiro é outra coisa? ”
       A esquerda não é, bem entendido, religião, mas a analogia é útil como ilustração – diz ele. Ora, houve sempre uma esquerda fora do poder de Estado e dos partidos. Mesmo dentro dos partidos e do Estado nem tudo foi sempre negativo—pense-se, diz ele, no “Front Populaire” francês dos anos 1930 ou no socialismo nórdico. Pensemos também nos movimentos sindicais de esquerda que empurraram o próprio capitalismo a fazer concessões aos trabalhadores, fornecendo condições menos desumanas de trabalho nos países mais civilizados. No plano da produção de ideias, então, nem se fale: a esquerda tem brilhado e, como diz Fausto, “para dar um exemplo, o pensamento clássico de Frankfurt não foi nenhuma brincadeira”.
      O autor não pretende substituir tudo o que foi feito ou existe na área da esquerda por algo inteiramente novo ou um plano utópico, do que não existe. Faz a crítica da corrupção em que o PT se envolveu, da sua aliança de classes típica de governos populistas com banqueiros, industriais e fazendeiros, mas não considera o projeto inicial do partido um caso perdido. Nem desdenha das conquistas em direitos humanos e sociais dos governos Lula e Dilma.
     Há que se fazer, contudo, uma profunda autocrítica, desintoxicando o PT do que ele chama de patologias da esquerda—o reformismo adesista, o populismo e o neototalitarismo. Se não fizer essa purgação ou desinfecção, esse partido não terá um futuro sério e cairá no grupo das aberrações que deformaram a esquerda ao ponto de, em alguns casos, se tornar irreconhecível, como, por exemplo, na social democracia, cuja mutação em neoliberal chega a ser risível.
      O que Fausto oferece em seu livro é muito mais do que resenhamos aqui, mas o principal é assinalar que, além da crítica, fornece elementos para a reconstrução de um projeto de esquerda que seja ao mesmo tempo democrático, anticapitalista, antipopulista, obviamente antitotalitário e com consciência ecológica.

     Uma excelente leitura para quem ainda se considera comprometido com uma ética humana de esquerda.

terça-feira, 20 de junho de 2017

FIOS QUE SEGURAM TEMER


 

                                                                 Reinaldo Lobo

 

     No romance “O Leopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, a personagem de um aristocrata e latifundiário comenta, em face de uma possível revolução republicana: “Se não nos envolvermos nisso, os outros implantam a república. Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro? ”

     Esse tipo de cinismo das classes dominantes --retratado nessa obra clássica reeditada agora primorosamente no Brasil—é também uma tradição das nossas elites conservadoras. Muitos conhecem a frase do mineiro Antônio Carlos que antecedeu a Revolução de 30: ”Façamos a revolução antes que o povo a faça”.     

      Hoje, essa tradição se renova no apoio da nossa “oligarquia liberal” (latifundiários, industriais, managers de fundos de pensão, burocratas do Estado, políticos, tecnocratas e mesmo juízes e promotores) a duas atitudes dominantes na cena política e econômica:

As “reformas” implementadas pelo governo do melífluo e oportunista Michel Temer, que são, na verdade, medidas ultraconservadoras destinadas a proteger os interesses dominantes em nome da restauração da estabilidade econômica, atingida pela crise e pelos erros do “inimigo populista”.

 

A alardeada campanha anticorrupção do tipo “Mãos Limpas”, desencadeada por uma parte do Judiciário e pela mídia, apoiada pelas classes médias e a população em geral, cujo alvo, a corrupção, foi instituída historicamente por essas mesmas elites “liberais” e incrementada recentemente pelo empresariado das empreiteiras da indústria da construção, pelos burocratas estatais e por bancos públicos e privados.     


     O fio principal que ainda sustenta no poder o governo corrupto de Temer é o cinismo. De seus próprios ministros e do presidente, em primeiro lugar. Como tiveram inicialmente uma carta branca das classes dominantes para dar o golpe parlamentar que derrubou a presidente Dilma, os membros do atual governo não dão a menor importância para sua impopularidade e descrédito. Foram colocados lá -- à custa de muito dinheiro das mesmas propinas do empresariado denunciadas pela operação Lava Jato-- com uma única missão: realizar as “reformas” restauradoras da ordem e da hierarquia social tradicional e restabelecer a “confiança do Mercado”.
      O cinismo prevalecente afeta também a parte da classe média decepcionada com as mais recentes revelações da louvada Lava Jato, que parecia atingir só o odiado PT, mas trouxe à tona fatos escabrosos envolvendo o ex-candidato tucano Aécio Neves, o próprio Temer, cujo assessor foi apanhado com a mala cheia de dinheiro vivo e uma série de quase dois mil políticos. Muitos deles ajudaram na deposição do governo anterior em nome da luta anticorrupção e agora estão presos ou delatando seus pares.
      Se dependesse dessa fração da classe média, todos os políticos iriam para a cadeia, mas, constrangida por seu próprio engano em relação a seus heróis, não faz nada sobre isso nas ruas, como fez a partir de 2013.
      As bases de apoio do governo estão ameaçadas por pressões de vários lados, mas mesmo assim ele sobrevive com o argumento de que não há alternativa viável a ele no momento. E todos os setores conservadores engolem isso.
     É como se Temer dissesse: ”se me puserem na cadeia, que é o meu maior temor, quem vocês teriam com a minha desfaçatez de promover a compra dos cerca de 300 picaretas que conheço muito bem no Congresso? Liberei para eles emendas parlamentares de, no mínimo, seis milhões, além de outros benefícios menos publicáveis! ”
      O apoio sem graça do PSDB é mantido apenas a favor da “agenda das reformas”. Alguns de seus líderes mais cínicos querem trocar essa sustentação pela salvação da cabeça do Senador Aécio Neves, apanhado com a mão na cumbuca e ameaçado de ter a cabeça raspada em algum momento.
     No Supremo Tribunal Federal, sede hoje de decisões políticas, há uma divisão entre ministros que censuram os excessos da Operação Lava Jato e os que exigem o “cumprimento da Lei”. O apoio governamental é mínimo, portanto. Há uma certa paralisia da ação dos seus ministros, que engoliram o fiasco da absolvição do governo corrupto no TSE. Existe uma guerra não declarada entre a Procuradoria Geral da República, o Governo e alguns ministros do STF que querem apaziguar tudo, contendo a Lava Jato, em nome da “estabilidade”.
     Para os setores dominantes, a Lava Jato pode ter ido longe demais em sua sanha punitiva, deixando assim um fino fio de sustentação a Temer. Um fio muito frágil. A “oligarquia liberal” bem pode mudar de opinião a qualquer momento, assumindo o combate à corrupção como sua própria bandeira e procurando abrir caminho para o “novo”, que poderia significar o recurso às Forças Armadas ou forjar candidatos “anti-políticos” como Trump, Macron ou qualquer outro na moda.
     Vários setores da elite dirigente já aceitaram a “aliança populista” com Lula e o engoliram temporariamente graças ao êxito econômico do seu governo. Durante um bom tempo, Lula e o PT não eram os inimigos, pois acionaram um certo desenvolvimento, inclusive social, ampliando o mercado.
     Então,   por que não aceitariam Temer cujo slogan como vice-presidente era: “Meu gabinete sempre estará aberto aos empresários”? Hoje se sabe por quê e para quê.
     O governo não tem representatividade nem autoridade para muita coisa, mas possui a legitimidade conferida pelo cinismo dominante. Cinismo que mantém a equipe econômica do seu lado até onde lhe convier, pois é ela que sustenta o ideário neoliberal conservador.
    Os analistas “frios” da ciência econômica e política temem que todos esses polos de manutenção do poder abandonem de uma vez o governo, trazendo o caos constitucional e social, pois há dúvidas na linha de sucessão e nenhum nome capaz de manejar com facilidade o Congresso, um dos baixos, se não o mais baixo, em matéria de qualidade humana e política. O perigo estaria na hipótese impensável de o povo assumir o controle da situação.
    A frágil democracia brasileira continua nas mãos da “oligarquia liberal”, incapaz de uma hegemonia fundada em princípios e sempre ameaçada de decadência, como a aristocracia de Lampedusa. Igual ao diagnóstico do romance, está claro que o que temos de pior são as nossas elites.