quarta-feira, 10 de julho de 2013

UMA OUTRA ESQUERDA III

O viés racionalista de Marx era acompanhado, portanto, de um pressuposto idealista, segundo o qual os movimentos da História acompanhariam as linhas traçadas pela Razão (Dialética). Com isso, escapavam-lhe não só os elementos que não se encaixam na Razão, mas a própria riqueza da subjetividade humana. É preciso deixar claro que não se trata, aqui, de condenar a racionalidade ou a razão, a ciência e a operacionalidade do discurso científico, em nome de uma suposta espontaneidade da Imaginação ou de uma "intuição" bergsoniana ou, mesmo, de um imaginário poético, como em Gaston Bachelard. Nada disso. Entendam, por favor. O "ser" , dizia Aristóteles, pode ser dito de várias maneiras. O ser não se reduz a um só estrato-- como. p.ex., a razão--, mas podem estar co-presentes e, às vezes, co-extensivamente relacionados diversos estratos do real. Podem ser, inclusive, vários estratos contraditórios entre si, compondo a complexidade do ser, como sugere a dialética marxiana. As dicotomias tradicionais, como as do senso comum e até a cartesiana, cortam o ser em Espírito e Corpo, estabelecendo a primazia de um ou outro polo. Mas há autores como Maurice Merleau-Ponty, Castoriadis e a psicanalista Piera Aulagnier , para os quais é na imbricação e na interação de Carne e Significação que se dá o estar-no-mundo. Não há pensamento sem corporeidade, não há corpo humano vivo sem pensamento. Estabelecer o primado de um estrato significaria romper a ambiguidade da condição humana. Por essa ótica, o ser é corpo e espírito, e flui da constituição magmática de uma imaginação radical que não se confunde com o Inconsciente, mas que é sua fonte e pressuposto. A criatividade primária da imaginação radical, cujo fluxo constante de imagens, afetos, representações, fornece e sustenta configurações e reconfigurações da vida-- pessoal, política e mesmo racional. Que não se confunda imaginação com a capacidade, de resto presente nos seres humanos, de reproduzir imagens, mimetizando o "mundo"; nem é o campo do erro, do engano e da distorção subjetiva. Até mesmo Lacan caiu nessa armadilha de reduzir o imaginário ao erro e à ilusão, descrevendo-o como o registro do equívoco, deixando ao registro do Simbólico a função de desfazer os equívocos da imaginação. A imaginação radical produz, sem dúvida, disfuncionalidade no ser humano. O ser da Psique é disfuncionalizado pela ruptura produzida por essa capacidade da imaginação radical de inventar. É o que distingue, dizia Castoriadis, o homem do animal. O animal é "racional" pois segue funcionalmente seus instintos. É racionalmente programado no plano biológico. O homem, não. Ele tem essa possibilidade de criar monstros, como Hitler ou uma perversão, mas também a ciência, a arte e a tecnologia. O homem criou regimes políticos e religiões. Tudo fruto dessa disfuncionalidade criativa que podemos chamar de imaginação radical. Castoriadis postula que ocorre no ser humano uma ruptura entre os mecanismos psíquicos e o seu substrato orgânico-- que não se opõe ao espírito, mas o sustenta em sua criatividade. Isto significa que o psíquico não está submetido a "processos" regulatórios instintivos e biológicos. Mas isto não quer dizer que Castoriadis separasse ao final corpo e alma, ou que hipostasiasse esta última na forma de "imaginação". Afirmava ele: "Não pode haver, em nível filosófico, distinção última essencial entre alma e corpo, psique e soma. Como já dizia Aristóteles, "o cadáver de Sócrates não é Sócrates", mesmo se ainda está quente. É impossível conceber o espírito de Kant no corpo de Ava Gardner, e o inverso. Aristóteles tinha razão quando dizia que a alma é forma de um corpo vivo. A alma é ,antes de tudo, a vida -- e a vida é a própria existência do corpo".( 'Fait et à faire',v.V dos "Carrefours du labyrinthe", pg.90) A psique humana distingue-se, pois, do animal não pela racionalidade, mas por sua disfuncionalidade.(Este post vai continuar).

2 comentários:

  1. É cedo para comentar, mas lembrei-me de uma consideração de Ines Pedrosa em que ela diz "Racionalidade é o que demonstra um leão quando mata um veado para se alimentar. Um homem que se lança para dentro de um prédio em chamas para salvar desconhecidos não age racionalmente."

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